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Uma Família Feliz, de Raphael Montes

Desvendar o que acontece no final está entre as premissas dos suspenses. Porém, os bons thrillers não se sustentam apenas na solução de um mistério, mas envolvem toda uma construção de personagens, ambientação e ritmo. Uma Família Feliz, livro mais recente de Raphael Montes — roteirista de Bom Dia, Verônica e autor de Suicidas, conhecido como o mestre do suspense brasileiro — mostra que trazer o final logo para as primeiras páginas pode tornar a narrativa ainda mais atraente.

A protagonista — e narradora — de Uma Família Feliz é Eva, uma mulher que tem, aparentemente, a vida dos sonhos: é casada com um advogado em ascensão (Vicente), mora em um condomínio de classe média alta — o Blue Paradise —, tem filhas gêmeas (Angela e Sara) e acaba de descobrir que está grávida do terceiro bebê, para completar o combo da “família tradicional brasileira perfeita”. Essa realidade encantadora apresentada no segundo capítulo é um contraste chocante com o desfecho brutal e caótico que acabamos de ler nas páginas iniciais. A contraposição nos leva à mesma pergunta feita pela protagonista:

“Como tudo pode terminar assim?”

Uma Família Feliz

Conforme avançamos na leitura, a família idealizada de Eva vai se desmontando e mais camadas da protagonista são reveladas. Além do suspense, Raphael Montes levanta várias temáticas contemporâneas ao longo da trama, como: lógica do condomínio, vida de aparências, papeis de gênero, abusos psicológicos e sexuais, midiatização e espetacularização de casos criminais e, principalmente, maternidade.

A maternidade é a base da narrativa de Uma Família Feliz. Aliás, as imperfeições da família de Eva começam a aparecer justamente quando ela descobre que está grávida de um menino. Ela se sente apreensiva pois é a primeira vez gestando, já que as suas filhas gêmeas são do primeiro casamento de Vicente. Adicionando camadas à história, Eva tem um passado traumático com a mãe e se pergunta diversas vezes se ela realmente deseja ter um bebê ou se está apenas cumprindo o papel idealizado e as pressões sociais de  “ser mãe”.

“Quero provar que posso ser diferente da minha mãe. Ser feliz é a minha vingança.”

Um dos acertos de Uma Família Feliz é a narração em primeira pessoa. Temos acesso ao que Eva realmente pensa sobre a gravidez, sobre o marido, sobre a vida no condomínio, deixando ainda mais transparente a farsa e a fragilidade da vida de aparências. Além dos pensamentos da narradora, outras situações demonstram a dissimulação da vida da classe média alta: Eva diz se sentir segura e protegida pelos muros do Blue Paradise, mas, ao longo da história, as intrigas, as acusações e até agressões contra ela acontecem dentro do “paraíso”. Quando Eva é acusada de agredir seu filho e as gêmeas, há toda uma espetacularização e perseguição que partem do interior do condomínio, de pessoas que a protagonista considerava amigas. Além disso, Vicente se queixa de não conseguir pagar uma babá para ajudar Eva com as crianças levando a uma série de discussões entre o casal sobre o que deve ser priorizado: as necessidades reais ou a aparência da vida perfeita.

“Não importa se a casa está um caos, Vicente só quer saber de continuar comprando suas polos de marca, seus ternos finos e seus relógios caros. Mesmo que a nossa vida não seja confortável e luxuosa, para ele é importante que pareça ser.”

Em um dessas intermináveis bate-bocas, Vicente lança: “Alguém tem que trabalhar de verdade enquanto você brinca de boneca”, se referindo à profissão de Eva. A protagonista é uma “cegonha”, artesã de reborns, bonecos que se parecem com bebês reais, feitos sob medida. Silvia, uma cliente de Eva, por exemplo, encomenda um reborn com as características do seu filho falecido, para tê-lo como lembrança. Para a trama, os reborn representam mais uma idealização: ao contrário dos bebês de verdade, os bonecos não choram, não ficam doentes, não sofrem, não dão trabalho e podem ser moldados de acordo com os desejos de cada pessoa.

Apesar do bom ritmo, diversas questões ao longo de Uma Família Feliz são subaproveitadas apenas como um recurso narrativo para deixar a trama mais “sinistra”. É o caso da maternidade em certos trechos: algumas passagens caricatas sobre as dificuldades da gravidez, por exemplo, deixam escapar a limitação de um homem cis ao escrever sobre o processo complexo da gestação e das expectativas sobre ser mãe.

“Então, como um estalo, um peso enorme sai dos meus ombros e consigo respirar. Não preciso me sentir culpada. Nem por ter sofrido durante a gravidez nem por ter odiado meu marido durante o parto e nem por ter vomitado quando vi o bebê.”

Passagens com resoluções um tanto simplistas são um exemplo de vários temas que poderiam ser melhor trabalhados para complexificar a protagonista e a narrativa. No entanto, acabam se tornando apenas um elemento para avançar a história mais rápido e não perder o ritmo. Dessa forma, a adaptação para o cinema — que tem Raphael Montes no argumento e no roteiro — funciona bem pois é majoritariamente guiada pela trama e não pelo consciente da protagonista, como é no livro.

Se geralmente é uma reviravolta que marca os suspenses, no caso de Uma Família Feliz, é o plot twist que enfraquece o que estava sendo bem amarrado até o momento. De início, há de fato uma surpresa, mas ao terminarmos o livro, ficam várias indagações mal resolvidas e pontas soltas. Mesmo que algumas questões e julgamentos pudessem estar contaminados pela perspectiva de Eva — que narra a história — sobram muitas perguntas que não fazem sentido e desestruturam a história. Temas sérios que vinham sendo construídos, como maternidade, abuso sexual e violência contra menores, são sacrificados para surpreender o leitor momentaneamente.

Em resumo, Uma Família Feliz é um ótimo entretenimento, que te prende e te faz questionar sobre uma série de assuntos, sobretudo a respeito da vida de aparências da classe média brasileira e da idealização da maternidade. No entanto, os temas  que poderiam ser melhor explorados acabam servindo apenas para dar ritmo à trama. Como a família perfeita de Eva, o livro de Raphael Montes tem rachaduras quando vamos além da superfície, mas nos envolve desde a primeira página.