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O mundo invertido de Silvina Ocampo

Chamadas de Eríneas pelos gregos, as Fúrias são divindades da mitologia romana incumbidas da vingança e do derramamento de sangue dos mortais. A palavra também é sinônimo de raiva, ira ou ódio. A relação entre o mito e o significado corrente é clara e está mais próxima da realidade diária do que se possa imaginar. No livro de contos homônimo da escritora argentina Silvina Ocampo, considerada a maior contista de seu país, seus personagens são tomados por esses sentimentos tão crus e que podem trazer as consequências mais cruéis. Lançado na segunda metade de 2019 pela Companhia das Letras e traduzido por Livia Deorsola, A Fúria, escrito em 1959, é o primeiro livro de Silvina publicado em português.

Sua outra breve aparição por aqui foi na coletânea Antologia da Literatura Fantástica, publicada pela mesma editora, que reúne 75 contos fantásticos selecionados pela autora, junto com Adolfo Bioy Casares e Jorge Luis Borges, duas figuras importantes não somente na literatura latino americana, mas também na vida pessoal de Silvina, sendo o primeiro seu esposo e o segundo um grande amigo. Sua irmã mais velha, Victoria Ocampo, foi fundadora e editora da revista Sur, importante publicação no meio literário argentino a partir da década de 1930. E foi assim, cercada de famosos intelectuais, que Silvina passou a vida, em contraponto à sua individualidade reclusa e misteriosa. Se por um lado Silvina era ofuscada (ou optava por estar em segundo plano) pelas personalidades que a cercavam, seus contos trazem uma força difícil de esconder ou ignorar.

A Fúria é uma obra marcada pelo estranhamento. O universo criado por Silvina Ocampo remete a uma atmosfera onírica, mas que, em vez de conter os sonhos mais belos, retrata as ideias mais esquisitas, absurdas e até mesmo aterrorizantes. O conto que abre o livro emula uma fábula infantil, usando de uma lebre esperta e cachorros raivosos, explicitando a tensão que será explorada nas páginas seguintes. Desse ponto, as tramas podem ser agrupadas em três tipos de pesadelos: crianças perversas, amores contraditórios e eventos que beiram o absurdo e deixam o leitor abismado.

A imagem retrata a escritora Silvina Ocampo deitada em uma poltrona e a capa de seu livro "A Fùria"

Se em Stranger Things, série a que o título deste texto faz referência, são as crianças que enfrentam monstros que vêm do Mundo Invertido, para a autora argentina, as próprias crianças são os monstros em questão, mesmo que não tenham consciência disso. A infância para Ocampo pode ser um período sombrio ou, no mínimo, desajustado. Em um dos primeiros dos 34 relatos que compõem a obra, “O rebento”, três adultos planejam o assassinato de um idoso tirano, envolvendo seu neto de poucos anos no plano. No conto-título, uma mulher narra um evento da juventude onde ela provocou a morte de sua melhor amiga. Em “A casa dos relógios”, um jovem conta em carta para uma professora sobre a tortura de um homem após uma festividade, e durante “O casamento”, uma menina aparentemente inocente coloca uma aranha venenosa no cabelo de uma noiva. A profusão de crianças performando atos caóticos, mesmo que inconscientemente, é marca da antologia ocampiana.

Os relacionamentos amorosos não ficam muito distantes do surrealismo estabelecido em outras passagens. “A casa de açúcar” é a história de uma mulher que é enganada pelo marido quando o casal resolve se mudar para uma casa melhor, o que traz consequências sérias, já que a jovem começa a se parecer cada vez mais com a antiga moradora da residência. O conto é um dos mais célebres e o favorito do autor Julio Cortázar. Em “A paciente e o médico”, a narração dupla revela uma paixão platônica de uma jovem mulher por seu médico, que não só não corresponde às suas investidas, como a deixa para morrer. Já em “A continuação”, Silvina Ocampo brinca com as vozes e com a revelação do gênero de seu narrador raivoso e enciumado.

A autora também trabalha com a distorção do trivial, apresentando situações que a primeira vista seriam inofensivas, como em “As fotografias”, conto onde uma festa de aniversário de uma jovem paraplégica é arruinada pelo destino. Uma mulher é levada a loucura na história sobre a perda e o reencontro de bens materiais, intitulada “Os objetos”. E em “O vestido de veludo”, uma prova de roupa de uma mulher afortunada acaba mostrando-se uma atividade mortal.

Disse o amigo Jorge Luis Borges: “nos seus contos há algo que não consigo compreender: um estranho amor por certa crueldade inocente e oblíqua”. A transformação do normal em excepcional é mais uma característica dos contos de Ocampo, seja pela crueldade a que Borges se refere ou por uma criatividade intrínseca à escritora. A literatura de Silvina Ocampo é excêntrica, irônica e perturbadora. Aproxima-se do fantástico, mas não pode ser classificada apenas como literatura fantástica, porque isso seria ver seus escritos de maneira rasa. Aproxima-se do horror por sua facilidade em provocar espanto e repulsa, mas também é uma classificação vaga, pois muito no livro não se adéqua às características do gênero. É insólita e irreal porque simplesmente é, porque Silvina era, o que faz dela uma escritora tão singular.


** A arte do topo do texto é de autoria da editora Paloma.

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