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Rock Story: uma novela moderninha, mas nem tanto

Com narrativa consistente e interessante durante todos os seus 179 capítulos, Rock Story terminou sua jornada no início da semana como uma das melhores novelas das 19h dos últimos tempos. Arcos de narrativa bem fechados, contados em ritmo próprio e diferente do que estamos acostumados, contribuíram para que a novela prendesse a atenção dos telespectadores. O formato parece pronto para exportação e a narrativa gostosa de acompanhar faz com que poucos duvidem da capacidade da novela de fazer sucesso em terras estrangeiras, como já é o caso de outros produtos da Globo, como Verdades Secretas e Avenida Brasil.

Os personagens complexos ajudaram Rock Story a fugir dos arquétipos clássicos e do enredo de mocinho versus vilão, enriquecendo a narrativa e aproximando a novela do dia a dia dos telespectadores. A desglamourização da vida de músico e do trabalho em uma gravadora trouxeram um pano de fundo rico para os personagens, o que proporcionou também músicas originais melhores do que muitas que vemos nas paradas de sucesso — foi o caso de “Sonha Comigo”, que na trama é original de Gui Santiago (Vladimir Brichta), gravada também por Léo Régis (Rafa Vitti), e também “Não Vá”, da boyband fictícia 4.4.

Rock Story, no entanto, não foge dos clichês completamente, como o da mocinha boa e pura, que vai passar toda a trama tentando se defender de uma falsa acusação, ou o do casal adolescente que se odeia, mas na verdade se ama. Porém, a novela os usa a seu favor, apresentando-os de uma forma original. Por ter essa roupagem “moderninha”, atraente para o público jovem — metade do seu elenco é formado por atores na casa dos vinte anos, vários saídos diretamente do elenco de Malhação —, era mesmo esperado que a novela abordasse temas atuais. Foi o que Rock Story tentou fazer em diversos arcos, não necessariamente obtendo o efeito final desejado.

Com personagens masculinos complexos, tanto Gui Santiago quanto Léo Régis tiveram evoluções como seres humanos completos na trama. Apesar de apresentar ações machistas, as consequências foram pequenas ou quase nulas para um desses protagonistas: Léo Régis vazou nudes de Diana (Alinne Moraes), sua ex-noiva, como forma de vingança e abusou da DJ Malu (Antonia Morais) beijando-a à força. No primeiro caso, o que poderia ter sido uma grande lição sobre pornografia de vingança acabou com a própria mãe do moço tomando o lugar dele para acobertá-lo, mentindo que foi ela quem havia vazado as fotos. O máximo que aconteceu com Léo foi a perda de alguns fãs por poucos dias, já que logo em seguida os mesmos voltaram a seguir o garoto pra cima e pra baixo. No segundo caso, que configura assédio sexual, além de ele não ter sofrido absolutamente nada, o abuso foi relegado ao famoso “ela estava pedindo”, já que a moça em questão estava fazendo topless quando foi agarrada por Léo. Apesar disso, ao final da novela, o cantor teve sua redenção e acabou com Stefany (Giovana Cordeiro), sua amiga do bairro de periferia que ele morava antes da fama, em uma espécie de “felizes para sempre” sem que ele sofresse nenhuma consequência.

Infelizmente, Rock Story, salvo algumas exceções, não tratou suas personagens femininas com o mesmo cuidado ou atenção. Até quase o meio da trama Diana tinha sido apresentada como uma personagem completa. Independente, sócia de uma gravadora importante e ex-mulher de Gui Santiago, ela não foi tratada como vilã da história, mas também apresentada como vítima da situação — afinal, era possível ver em cada atitude da produtora que ela não aguentava mais estar casada com um homem agressivo e alcoólatra, apesar de ainda amá-lo. Porém, a personagem se perdeu no momento em que Gui estava prestes a se casar com Júlia (Nathalia Dill): parecia que os autores não sabiam bem o que fazer com Diana. Seu principal traço de humanidade e o que a diferenciava de outras vilãs de novela sumiu. O cuidado incondicional que ela tinha pela filha Chiara (Lara Cariello) foi deixado de lado para que Diana vivesse em função de ser o principal impedimento para o encontro de Gui com a felicidade. Com isso, a personagem começou a apresentar traços de obsessão e histeria, infelizmente comuns na representação de personagens femininas.

Ela inventou uma gravidez, que ainda por cima teria acontecido em uma possível tentativa de estupro por parte de Diana, uma vez que o ato ocorrera quando Gui estava bêbado, sem controle sobre si mesmo. Em um país onde estatisticamente mulheres são estupradas a cada 11 minutos, segundo pesquisa da FBSP de 2016, uma novela escolhe colocar um homem como vítima. Não só isso, mas essa “tentativa de estupro” é afirmada várias e várias vezes como um “erro de bêbado” e talvez a novela não quisesse colocar a mulher como estupradora, mas o que é mostrado é o que é mostrado, independente das falas dos personagens. Além dos personagens não tomarem conhecimento do que supostamente aconteceu como um estupro, ainda ocorre uma culpabilização da vítima — no caso, o roqueiro. Todos os personagens do convívio de Gui, até mesmo seu próprio filho e o melhor amigo, continuam a afirmar que o que ele fez foi uma “besteira”. Que ele dormiu com a Diana porque estava bêbado, mesmo que Guilherme não consiga lembrar de nada que acontecera na noite em questão.

É aí que começa o caminho de Rock Story pelo desserviço: até esse momento havia alguma esperança de que a novela abraçasse o que se propôs a fazer; depois, fica claro que os autores não pretendiam ir muito fundo em questões importantes. Além de Diana, outra personagem feminina que sofreu com estereótipos negativos, caindo no perigo da “mulher louca”, foi Maria Fernanda (Kizi Vaz). Uma das únicas personagens femininas negras de Rock Story, Nanda era a assistente de Salomão (Herson Capri) na gravadora. No início, a moça tinha uma queda pelo chefe, uma paixão platônica não correspondida, mas, com o tempo, a paixonite inocente de Nanda evoluiu para uma obsessão aos moldes de Atração Fatal.

Ela inventava mentiras para a namorada de Gordo, Eva (Alexandra Richter), chegando até a se fingir de paciente da psicóloga para colocar dúvidas no relacionamento dos dois. Sua narrativa tem clímax no momento em que Nanda invade a casa de Salomão e arma uma situação para que Eva pense que ela foi agredida por ele. Eva termina seu relacionamento com o produtor, que estava em outra cidade sem saber de nada. É custoso para Salomão limpar seu nome, mas ele consegue, e então é revelado que Nanda sofre de doenças psicológicas graves. Salomão e Eva armam para que ela seja internada em uma clínica, com a ajuda de uma prima de Nanda, única parente viva da moça. E é isso. Maria Fernanda é usada como apoio narrativo para o relacionamento de Gordo e Eva, sem nem ao menos ter um desfecho na trama. Tudo o que se sabe da personagem depois que é internada é por uma amiga. Não sabemos nada sobre seu tratamento, apenas que “vai bem”, e muito menos tomamos conhecimento sobre sua reinserção na vida em sociedade. A loucura de Nanda só é importante para atrapalhar o casal e para dar emoção à narrativa.

A última mulher usada como instrumento de narrativa que vamos citar é Mariane (Ana Cecília Costa), a mãe de Zac (Nicolas Prattes). Um antigo caso de Gui Santiago dos seus tempos de sucesso, a “groupie” passou a novela inteira desaparecida, mas volta nos últimos meses para atrapalhar a vida do roqueiro. A cartada final de Mariane é fingir que foi agredida pelo cantor: ao sair da casa de Gui, emocionalmente desestabilizada após uma discussão, ela cai da escada; essa é a oportunidade que Lázaro (João Vicente de Castro), principal vilão da novela, precisa. Ele usa Mariana, que faz um vídeo denunciando a suposta agressão.

Não é preciso dizer que a narrativa repercutiu tão mal que foi preciso personagens da novela se desculpassem pelo ocorrido, o que acontece quando Júlia e Diana comentam sobre o quanto falsas denúncias são perigosas. Mais uma vez Rock Story escorregou nas estatísticas e propagou uma desinformação danosa. A própria Mariane se desculpa em um programa de TV, mas nesse ponto o estrago já estava feito. Em pesquisa do DataSenado de 2011, 63% das mulheres entrevistadas achavam que mulheres que sofrem agressão não denunciam o caso e sofrem caladas, e quando denunciam tem a possibilidade de sofrer com rumores de que inventaram as agressões. E mesmo quando as agressões são provadas, ainda são desacreditadasRock Story acabou cometendo o terrível erro do “faça o que eu falo, não faça o que eu faço” — as falas dos personagens dizem uma coisa, mas suas ações e as ações da narrativa nos mostram outra.

Se queriam abordar temas polêmicos, os autores poderiam tê-los abordado de forma um pouco mais profunda. Justamente por ter arcos mais fechados e completos, e muito mais curtos que outras novelas, os desfechos poderiam ter sido mais aprofundados também. Não era necessário um foco, mas apenas um final para assuntos que são importantes hoje em dia. O “quase lá”, o “vai mas não vai”, parece atrapalhar mais do que ajudar e acaba fazendo um desserviço. E uma novela com tanta repercussão como foi Rock Story, que bateu vários recordes de audiência, acaba tendo um papel não apenas de entreter, mas também de informar e esclarecer alguns pontos. Rock Story não esclarece o telespectador, mas o confunde mais ainda.

Apesar de todos esses problemas de falta de desfecho e finais abertos, Rock Story é uma novela que deixará saudades. É fato que acaba nos deixando querendo mais, desejando acompanhar as próximas jornadas tanto de Gui Santiago quanto dos ex-integrantes da banda 4.4. Até mesmo Léo Régis e as loucuras de sua mãe, Dona Néia (Ana Beatriz Nogueira), com a direção de cena do núcleo com referências que se aproximam de Sai de Baixo, nos deixam com uma sensação de vazio. O horário das 19h não será mais o mesmo. Agora é torcer para que o spin-off de Romildo, William e Xandinho saia da nossa imaginação e vá para as nossas telinhas: Dois Bandidos Trapalhões e Um Bebê.

1 comentário

  1. Nossa, concordo com tudo!!! Adorava acompanhar a novela, mas comecei a fazer faculdade na mesma época que esses plots problemáticos foram ao ar. Um dos principais trunfos de Rock Story era os arcos mais curtos, mas por causa disso alguns ficavam mal explorados e para ocupar o tempo da novela alguns deles foram bem desnecessários. Li que a autora se arrepende do arco da falsa gravidez da Diana. O arco da Nanda foi o que mais me irritou, junto com a personagem da Manu. Ela apareceu como uma personagem mais feminista, denuncia o assédio do Léo, mas depois os dois se envolvem e ela faz umas coisas horríveis por se sentir ameaçada pela Stefany. Total falta de coerência. No mais, tbm quero spin-off Romildo, William e Xandinho.

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