O livro Canção para Ninar Menino Grande, de Conceição Evaristo, se propõe principalmente a contar uma história sobre negritude, masculinidade e amor em seus diversos níveis. Como é de praxe, a escrevivência da autora atravessa quem lê, e uma narrativa tão intimista não poderia ser diferente.
No meio a tantos elogios e aplausos à obra, algumas críticas me saltaram os olhos. Será que Canção para Ninar Menino Grande é um livro sobre mulheres acomodando homens? Ou então, uma ficção construída no eterno adolescimento dos homens negros?
O que conta a Canção para Ninar Menino Grande?
Em resumo, a obra narra a história do emblemático Fio Jasmim, um homem descrito com todas as características de um príncipe negro, desde sua aparência física robusta e beleza arrebatadora até a presença marcada pelo carisma que o carrega pela vida. No entanto, ainda que seja o personagem principal, Jasmim não é nem de perto tão protagonista quanto as mulheres que passam em sua vida.
Com uma aproximação curiosa com a narração construída em Mary Ventura e o Nono Reino, de Sylvia Plath, toda a história acontece a partir das viagens de trem do personagem por diferentes cidades, enquanto atua como ajudante de maquinista.
Seguindo a profissão do pai, figura importante para a construção da masculinidade presente no mais novo, Jasmim inicia sua carreira como ajudante, e ao longo do livro evolui na profissão até sua velhice.
Desde a primeira página, somos apresentados a personagens femininas, como Pérola Maria, a mulher com quem Jasmim escolheu se casar e ter dezenas de filhos, mas também à misteriosa Juventina Maria Perpétua, que conhecemos melhor no final dessa viagem — e, assim como elas, tantas outras.
Em cada cidade que o trem parava para desabastecer recursos, novas mulheres, novas demandas emocionais, e sempre o mesmo Fio Jasmim. Com sua inesgotável virilidade, juventude e paixões, que cativava mulheres de todos os perfis e idades — e são elas que fazem da canção do menino grande uma harmonia muito maior do que as 134 páginas da obra.
Quem canta a canção?
São várias as mulheres que nos cativam de volta durante a leitura, mas, entre elas temos duas que são minhas favoritas. A começar com Dalva Amorato, também apresentada como Dalva Ruiva.
Moradora da cidade de Águas Infindas, a mulher se tornou acompanhante de luxo em segredo para conquistar sua emancipação financeira e realizar o sonho de ser farmacêutica, mesmo com filhos criados e anteriormente casada com um médico no interior. Ela, que encontrou em Jasmim um amor tão intenso quanto maternal, ao ponto de ter vários filhos com ele pelo prazer de ver a mistura entre os genes europeus e brasileiros no mundo.
E há, ainda, Aurora Correa Liberto, moradora de Vila Azul que vivia perpetuamente imersa nas águas do Rio Naipã no auge de sua nudez. Uma jovem, como tantas outras da literatura brasileira, que via no encontro com a natureza e com a própria sexualidade o sentido da vida, mas que acabou encontrando em Fio Jasmim um novo tipo de conexão. Uma garota, que assim como ele, ouviu a vida inteira que era desajuizada por algo tão ancestral como uma moleira que demorou a fechar, e isso os fez desmiolados por natureza.
Muitas são as que cantam a canção, e quando colocamos o foco nessas figuras, a leitura se torna outra experiência. Digo porque até uma parte do livro, acreditava nas críticas que me fizeram redigir esse artigo, de que Fio Jasmim era o tal menino grande a ser ninado. Mas é preciso seguir viagem com outra perspectiva.
Por que ninar menino grande?
O que faz Canção para Ninar Menino Grande tão simbólico não é o jogo de conquista que marca o personagem principal como um príncipe negro realizado, garanhão e conquistador ou o ciclo repetitivo da infidelidade de Jasmim com sua noiva, Pérola Negra. O maior marcador do livro, na minha perspectiva, não é o ninar do menino grande, no sentido de acolher ou acomodar esse personagem e suas representações. Não é nem mesmo o menino grande, na figura de Fio Jasmim. É sobre as mulheres e personagens femininas, as grandes protagonistas dessa experiência literária. Desde a mulher que compõe a canção para ninar que intitula a obra, até todas as outras que cantam a mesma melodia ao longo da história, o livro transcende o personagem principal.
Veja bem, Fio Jasmim nos traz diversos pontos simbólicos dentro da discussão sobre negritude e masculinidades, o que tem seu valor por conta própria. Ao longo das páginas, lemos sobre sexualidade de homens negros, relação com parentalidade, construção de afetos, linguagem e sentido com o mundo, mas o marcador de todos esses atravessamentos começa, revolve e retorna aos amores de Jasmim.
Mais do que escrevê-las como corpos no caminho do trem Vapor Azul, ou como vítimas de um amor fugidio, como é comum das personagens femininas escritas por homens, Conceição Evaristo as torna universos particulares. Aqui, não são pontos de parada como as cidades do jovem maquinista, mas grandes chegadas que levam Fio Jasmim ao encontro consigo mesmo.
Quando, no auge da obra, Fio Jasmim se vê diante da amizade honesta com outra mulher, questionando-se sobre seu passado, chorando suas dores de infância até então reprimidas, vemos exatamente que a canção para ninar menino grande é um ato tão libertador quanto a escrevivência. No cantar, assim como na escrita, as mulheres da vida desse personagem se emancipam para outras experiências de vida, sempre com Jasmim na memória e no coração, mas com diferentes formas de amor.
Seja com os filhos, frutos dos encontros casuais com o personagem principal, com a joia possuída, mas ainda assim presenteada ou até no mergulho em um rio que nunca mais foi o mesmo, Conceição Evaristo nos presenteia com algo além de histórias de amor, entregando aos leitores uma verdadeira confraria de mulheres.
Quer ir além?
Recomendo que a imersão nessa obra seja feita em paralelo com o livro A Gente é da Hora, Homens Negros e Masculinidades de bell hooks. Como a própria autora diz: “As mulheres negras não podem falar pelos homens negros. Nós podemos falar com eles.”