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O que aconteceu em Paris, fica no Brasil

“Brasil, o país do futebol”. “Ninguém no mundo é pentacampeão”. “O Brasil de Pelé. Assim fomos conhecidos por décadas, mas já foi o tempo de sermos conhecidos por algo além do futebol, por alguém além de Pelé.

O assunto que estourou nas redes sociais, com direito a memes, trends e análises, foram as Olimpíadas de Paris, com destaque para a presença feminina nas competições e, principalmente, nos pódios. Desde seu início em 1896, foi necessário um século para que o evento questionasse e buscasse alcançar a igualdade de gênero entre os atletas. No Brasil, o marco foi a conquista do primeiro ouro feminino, com Jacqueline Pires e Sandra Silva no vôlei de praia, em 1996. No entanto, a vitória é obscurecida pela lembrança de que as atletas foram obrigadas a subir no pódio de biquíni, uma exigência jamais feita aos homens.

Olimpíadas

O esporte é mais um espaço que historicamente foi negado às mulheres — fosse pela lei, fosse pelo senso comum. Entre 1941 e 1983, a prática do futebol feminino foi proibida, pois desafiava a “natureza feminina” e os padrões de feminilidade da época. Ainda é possível se lembrar das infâncias em que as meninas eram direcionadas ao balé, enquanto os meninos iam para o futebol. Em aniversários, ganhávamos bonecas, enquanto eles recebiam bolas de futebol, basquete ou vôlei. Quantas vezes ouvimos: “Isso é coisa de menino, fique quieta no canto”? O interesse pelo esporte não nos era permitido.

Esse espaço nos foi negado para manter intacta a feminilidade idealizada, uma vez que a prática esportiva exige força, velocidade, domínio físico e, de certa forma, a permissão de ocupar e se movimentar livremente. Às mulheres era reservado um lugar demarcado e delimitado, para preservar a delicadeza e a sutileza, características associadas à feminilidade patriarcal. Sabemos, no entanto, que é possível construir diversas formas de feminilidade, que podem coexistir com essas características. Marta é um exemplo vivo disso: com mais de 20 anos de carreira, eleita seis vezes a melhor jogadora do mundo, tendo de seis olimpíadas e levado três medalhas olímpicas, teve que ouvir que era “o Pelé de saia”, como se para exaltar uma mulher naquilo que só ela faz, fosse necessário compará-la a um homem para que entendessem a sua grandeza.

Até que chegou Paris e, com a nova edição dos jogos olímpicos, o burburinho de que a seleção masculina de futebol não tinha se classificado — justamente o país do futebol. O fato, porém, logo se tornou notícia velha diante do fato de que a edição trouxe 55% da delegação nacional composta por mulheres, que foram responsáveis por 60% das medalhas conquistadas (número que cresce ao avaliarmos as vitórias brasileiras na última edição das Paralimpíadas).

Paris

Esses resultados não vieram da noite para o dia, muito menos de uma edição para outra: foram décadas de reivindicação por espaço e investimento. Fernanda Gentil, nas crônicas compartilhadas em suas redes sociais, destacou como o grupo de ginástica artística feminina fez história ao levar o Brasil para um lugar, até então, desconhecido: o bronze. Olhamos para as cinco meninas no pódio sabendo que antes delas tivemos Daiane dos Santos, sabendo que só ouvimos “Baile de Favela”, porque em 2008 ouvimos “Brasileirinho”, porque Daiane foi uma das que acreditou em Rebeca. E, entre elas, houve Jade Barbosa, que precisou de tempo, paciência e perseverança para conquistar essa medalha, sendo referência dentro do grupo.

No futebol, nos angustiamos com Marta no banco, ao mesmo tempo em que tivemos a chance de ver o futuro de uma seleção que agora seguirá sem ela em campo, mas presente no legado que construiu e que convida outras meninas e mulheres a jogarem. Quem não se emocionou ao gritar Lorena a cada defesa nos acréscimos?

Já fazem alguns anos deveríamos ter deixado o bordão de “país do futebol” de lado para sermos o “país do vôlei”, que teve uma campanha forte de não perder um set até a semifinal, em um jogo tenso até o último segundo do quinto set. Nas redes sociais, a esperança pelo ouro recaía sobre as mulheres, e os memes compartilhados exaltavam a força e a garra das jogadoras, com Rosamaria destacando-se por sua determinação, Ana Cristina por sua técnica, Gabriela por sua liderança e Thaisa por sua experiência.

Paris

Embora nossos olhos estivessem voltados para Rebeca, antes que a medalha de ouro fosse dela, Beatriz Souza conquistou o título que nem sabíamos que desejávamos tanto. Em sua estreia nos Jogos Olímpicos, a atleta garantiu o primeiro ouro brasileiro em um esporte que, pela primeira vez, teve mais mulheres do que homens representando o país, e que tradicionalmente traz muitas medalhas para o Brasil. O grito “Eu sou campeã olímpica” foi seguido por “Mãe, é pela avó” — como em tudo que fazemos, é em honra àquelas que vieram antes de nós.

Vivemos em um país que historicamente negligencia o investimento em atletas, especialmente na categoria feminina. A falta de apoio se manifesta em áreas cruciais como o acesso a bolsas de estudo, infraestrutura adequada e programas de desenvolvimento. Isso torna comum ouvir relatos de atletas que, mesmo enfrentando dificuldades financeiras e a ausência de patrocínios, dedicam-se incansavelmente ao esporte. Para muitas dessas mulheres, o simples fato de conseguirem competir já é um feito extraordinário, digno de reconhecimento e celebração. Sair de Paris com a maioria das medalhas conquistadas por mulheres representa uma luz, uma força, e um incentivo para que mais mulheres pratiquem esportes, façam dele sua carreira e ocupem cada vez mais esses espaços.

Rebeca, Flávia, Jade, Lorrane e Júlia. Marta, Gabi, Lorena, Ludmilla. Gabi, Rosamaria, Thaisa, Ana Cristina. Bia e Rafaela. Rayssa. Ana e Duda. Bia. Tatiana. Esses nomes poderiam ser os de nossas amigas, primas, colegas de trabalho ou de faculdade. São os nomes das atletas que conquistaram as medalhas nesta edição, provando que o lugar delas — e o nosso — é no pódio. Para nós, basta saber que a possibilidade existe.

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