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Maiara, Maraísa e Marília: permissão para ser

Vez em quando ressurge nas redes sociais, principalmente no TikTok, um trecho do vídeo da influenciadora Jout Jout, em que ela comenta sobre amizades antigas. No trecho, ela fala sobre as amizades que permanecem independente das fases da vida, algo que acompanhou a dupla Maiara e Maraísa e Marília Mendonça desde suas alçadas ao sucesso no início da década passada:

“Tem pessoas que aparecem e ficam, a quem podemos dar o nome de amigas antigas. […] E elas permanecem, mesmo com o sacolejar de tabuleiro, mesmo longe, não se vê há anos, mas você sabe que elas estão disponíveis e elas sabem que você está disponível. E não só disponível, feliz em estar disponível, topando esse cargo de companheira de jornada, que é um cargo que exige muito desprendimento, um amor muito maduro e… Paciência. […] Essas amigas que permanecem, elas só permanecem porque elas conseguem te ver — e você a elas — para além dos momentos, para além das fases. Quando você recebe uma amiga e ela vê, na tua cara, que ali não tem julgamento e não tem controle e domínio, nada, é só recepção… Você abre espaço para aquela pessoa ser quem ela é, ao seu lado. E é justo o que te dá ingresso pra assistir de camarote a jornada de alguém e ir acompanhando essa jornada. Esse, eu acho, que é o conforto que uma verdadeira companheira de jornada traz, que é ‘aqui eu posso ser eu mesma, aqui ninguém vai querer me mudar’”.

Jout Jout interrompeu sua carreira de vídeos filosóficos e reflexivos no YouTube e no Canal GNT há cerca de cerca de dois anos, já depois do falecimento de Marília Mendonça, em novembro de 2021, durante a queda de um avião no interior de Minas Gerais, que chocou todo o país. Como muitas pessoas que se recordam onde estavam durante o 11 de setembro ou ao receber a notícia do acidente, que também levou à morte, dos Mamonas Assassinas, em 1996, o mesmo aconteceu com Marília.

É difícil encontrar alguém que não se sentiu diretamente impactado pela morte abrupta de uma pessoa que parecia falar com o público de forma tão íntima, que soava como uma amiga. Que, em poucos anos de carreira, revolucionou todo um gênero musical para abrigar mais pessoas, histórias e pontos de vista, conferindo não só o espaço como a visibilidade necessária ao olhar feminino na música sertaneja, o qual se encontrava totalmente marginalizado antes dela em detrimento dos pequenos passos de muitas outras mulheres. Marília era uma rainha de muitos méritos e talento inquestionável e o maior deles foi construir esse espaço da maneira mais humilde e honesta possível, para além dos negócios.

Antes de se lançarem como cantoras, as três compunham para nomes masculinos e foram responsáveis por grandes hits, que moldaram o sertanejo pós-universitário, caso de Henrique e Juliano (“Deixa Ela Saber”/“Cuida Bem Dela”), Cristiano Araújo (“Caso Indefinido”/“É Com Ela Que Eu Estou”) e Jorge e Mateus (“Prisão Sem Grade”/“Calma”) e foi Henrique, da primeira dupla, que pediu que passassem a compor juntas para aumentarem as chances de criarem mais canções de sucesso. O resto é história.

Maiara Maraísa e Marília

Ao longo dos anos, com o sucesso da dupla e da carreira solo com os álbuns, Maiara e Maraísa Ao Vivo em Goiânia e Marília Mendonça – Ao Vivo, por volta de 2016, respectivamente, os quais chegaram como novos clássicos do gênero, em um cenário propício para o crescimento do trio envolto pelo talento inquestionável e atenção a um nicho ainda pouco explorado no sertanejo, a amizade apenas cresceu, rendendo diversas participações em shows e momentos marcantes. Em 2018, a dupla falou ao Arquivo Confidencial, do quadro Domingão do Faustão (Globo), sobre a amizade com Marília, que consideravam um irmã, com destaque para a fala de Maiara, a qual refletiu:

“Tem horas que paro mesmo pra olhar e ver a grandiosidade do ser humano dela. Cada vez que a gente se encontra eu aprendo mais e mais e mais. Sem palavras para descrever o que é ter Marília Mendonça como amiga, companheira, irmã… como alguém que você pode contar 24 horas. Toda vez que eu precisei, ela nunca me disse ‘não’. Sempre me deu até mais do que ela podia dar. Acho que por isso que ela é do tamanho que é, porque é muito generosa e faz sempre o máximo, o melhor para as pessoas”.

Os elogios a pessoa de Marília sempre foram unanimidade e, talvez, seja isso que a tenha feito uma estrela que reinou sem questionamentos em tão pouco tempo. Porém, o sentimento em relação às gêmeas sempre foi uma via de mão dupla e quem melhor do que a própria para definir como era a relação entre as três. Em 2023, durante o programa Conversa com Bial (Globo), um trecho da fala de Marília foi relembrado durante a participação das irmãs:

“[…] Outra coisa que deveria receber premiação é aguentar Marilia, Maiara e Maraísa juntas. Ninguém fala mais. Ninguém fala mais. Só fica as três tatatatata… Porque com elas é onde eu me sinto à vontade pra ser eu, sabe? […] Então, eu, junto com as meninas, me sinto livre pra ser quem eu sou, entendeu?” 

Maiara Maraísa e Marília

Tanta cumplicidade e talento reunidos só poderiam resultar em trabalhos em conjunto. O projeto Festa das Patroas, que marcou o sertanejo, tanto pela potência do trio quanto pela excelência e grandiosidade das composições, não foi a primeira vez que as vozes se uniram, mas foi definitivamente o mais ambicioso e, pelo timing, o mais emocionante. Com dois álbuns lançados entre 2020 e 2021, o projeto foi o último lançado em vida por Marília, o qual rendeu hits inéditos como “Todo Mundo Menos Você”, “Presepada”, “Uma Vida a Mais”, “Quero Você Do Jeito Que Quiser”, além de covers clássicos de outros artistas.

A união das vozes resultou no último e marcante clipe entre as três, “Esqueça-Me Se For Capaz”, que comungou toda a essência por trás do projeto, de incentivar o crescimento entre mulheres de todas as classes em uma sociedade tão desigual e estender a mão quando necessário. Na entrevista de lançamento, elas sutilmente deixaram claro que enfrentaram preconceitos para se firmar no sertanejo, mas o foco seria a sororidade fincada na forte imagem e amizade das três maiores cantoras do gênero.

Segundo o G1, Marília comentou, à época: “Já conquistamos bastante coisa, mas o foco agora, o principal, é mostrar a amizade. E como você estar ao lado de uma mulher, ou abaixo, acima de uma mulher, e mesmo assim você estar junto com ela o tempo todo. […] Vamos trazer para os fãs tudo isso e deixar sempre esse recado: ‘não precisa ter medo de outra mulher’. Está tudo bem. Pega na mão dela e vai crescer junto com ela que vai ser lindo”, enquanto Maraísa completou: “Nós entendemos que era o momento pra falar disso, porque nós temos que usar nossa voz sempre pra coisas que vão gerar mudança pras pessoas […]”. 

O lançamento da turnê Patroas, que nunca aconteceu, no Allianz Parque, foi uma das poucas oportunidades que elas tiveram de cantar as músicas do projeto ao vivo. Ao jornalista Pedro Bial, em 2023, Maraísa comentou que a gravação do último trabalho da dupla, em Lisboa, que contou com canções do projeto, era quase que uma continuação espiritual do que foi sonhado com Marília, pois tinham a intenção de alçar voos maiores com um trabalho ambicioso em termos de Brasil, apesar de cuidar pra não usar a voz e a imagem da cantora a todo o momento para equilibrar o que ficou daquela fase.

Maiara Maraísa e Marília

No entanto, a perda abrupta da amiga, especialmente após o período de imersão para compor naquela época, afetou profundamente o processo criativo da dupla. Tanto Maiara quanto Maraísa falaram sobre não conseguir voltar a escrever após o falecimento de Marília e, ao que passo que a última superou esse período mais rápido, a primeira segue com dificuldades para se expressar através das canções, muito por conta da forma como compunha com Marília, com a qual escreveu pela última vez a faixa, “Todo Mundo Menos Você”. Em entrevista ao Conceito Sertanejo, Maiara comentou que consegue escrever, mas não chega ao potencial para gravar:

“Assim, talvez seja uma questão minha de falta de confiança mesmo, sabe? E da falta que ela me faz também. […] Porque eu lembro muito da gente estudando aquilo e a Marília, além de ser uma excelente compositora, ela era minha amiga. Ela sabia da minha vivência, das minhas entranhas, de tudo o que eu pensava, de como eu… É, da minha ótica, de como eu pensava […]”. 

Certa vez, Marília comentou que Maiara era o “tumulto” da vida dela (“sozinha, ela é a aglomeração da minha vida, não tem silêncio onde ela tá, mas eu gosto”), e, parando para pensar, como é possível ser o tumulto da vida de alguém, ocupar tanto espaço, quando não se tem permissão para ser? Como é possível não ter essa permissão quando ela deságua em uma das últimas mensagens de Maraísa para Marília, na madrugada de seu acidente, falando que a amava? Não é, e as três tinham consciência disso, tanto que expressavam frequentemente esse sentimento e admiração que são raros e, como tentaram fazer com o projeto Patroas, que deveria ser mais e mais propagado.

Observando com um certo distanciamento, o trio demonstrava ter essa disponibilidade de ser, de estar, uma para a outra — pessoalmente, profissionalmente, criativamente, sentimentalmente. Marília permaneceu até o fim e Maiara e Maraísa, através de seu trabalho, seguem fazendo com que a amiga permaneça — nelas mesmas e no público —, ainda que, atualmente, o ser tenha um toque de dor em relação a todas as memórias do passado. Assim são as amizades antigas.

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