Categorias: LITERATURA

Família tóxica: os silêncios que sufocam e machucam

Apesar do imaginário que cerca a ideia de família, na maior parte dos casos, não há compreensão ou acolhimento neste ciclo social. Pergunto, se não fosse o laço sanguíneo, o endereço ou documentos, o que torna a sua família, sua? Você consegue ter uma conversa franca com eles? Sabe que suas dores serão acolhidas e você será respeitado? Que haverá um abraço a sua espera? É estranho pensar que você pode viver e ter memórias com pessoas que, no fundo, são estranhas. Das quais você não conhece os sonhos e teme compartilhar os seus. Na literatura encontramos alguns exemplos dessas famílias que se cercam dos silêncios e de meias palavras.

Atenção: este texto contém spoilers

O silêncio que corrói

Em Tudo o que Nunca Contei (2018), Celeste Ng nos leva para o interior da família sino-americana Lee, que vive no subúrbio de Middlewood, Ohio. A única família não-branca na região em meados dos anos 1970. A história começa com o sumiço de Lydia, a filha do meio e o centro de todas as relações que se desenlaçam ao longo da narrativa.

O maior acerto de Ng é oferecer o ponto de vista de cada membro da família: James (pai), imigrante chinês que tenta provar para a sociedade que é tão norte-americano quanto qualquer um; Marilyn (mãe), uma dona de casa que se conformou com a posição de cuidar da família apesar de ter passado a juventude toda tentando fugir deste posto; Nath, o filho mais velho, que tenta provar o seu valor para os pais; e Hannah, a caçula esquecida pela família.

A família toda órbita ao redor de Lydia, que carrega o peso dos sonhos incompletos da mãe, os desejos do pai por aprovação social e encara a mágoa do irmão, outrora parceiro para lidar com os conflitos dos pais, mas que se ressente por toda atenção que ela recebe. Os capítulos de Lydia nos oferecem pequenos lampejos dos efeitos da pressão familiar em seu psicológico.

“Lydia sabia o que eles queriam tão desesperadamente, mesmo quando não pediam. Todas às vezes, parecia algo tão pequeno em troca da felicidade dos dois. Por isso, ela estudou álgebra no verão. Colocou um vestido e foi ao baile do primeiro ano. Matriculou-se em biologia na faculdade, tendo aulas às segundas, quartas e sextas, durante todo o verão. Sim. Sim. Sim.” (p.103)

Lydia aceitou o papel que os pais lhe ofereceram pois queria agradar, manter a família unida. Assim, ela aceita estudar disciplinas avançadas para cursar medicina, como a mãe quer. Ela finge ligações demoradas ao telefone e encontros com amigos que não tem para que o pai pense que ela é popular.  Apesar do desejo do pai por aceitação social afetar os dois filhos mais velhos, a forma como lidam com a questão é diferente. Enquanto Lydia finge alcançar os objetivos traçados para ela, Nath se ressente com os pais por não conseguir estar a altura de seus sonhos. Ainda assim, em nenhum momento os irmãos conversam claramente sobre o que está acontecendo ou expõem aos pais suas dores. Todos esses conflitos internos acabam se cruzando com a questão do preconceito racial, que dobra o peso das escolhas tomadas pela família e fragiliza ainda mais a saúde mental das crianças Lee.

“Você não está com vontade de sorrir? E daí? Obrigue-se a sorrir. Aja como se já estivesse feliz, e isso provavelmente deixará você feliz. Lydia enrolou o cabelo e o puxou para trás. Então encarou o olho negro da câmera, recusando-se a sorrir, sem a mínima curva nos lábios, mesmo depois de ouvir o clique do obturador.” (p. 115)

Para Nath e Lydia, a rivalidade entre irmãos e o carinho que sentem um pelo outro se tornam sentimentos conflitantes, mas que alimentam um mesmo desejo: fugir. Ir para o mais longe possível dessa família. Hannah, a caçula, é um corpo tão distante destes conflitos que se torna a observadora mais confiável dessas relações. É ela quem busca as respostas para o colapso tão silencioso da família Lee que resultou na morte de Lydia.

É essa perda que desencadeia as descobertas da família sobre a menina de ouro que não queria brilhar. As certezas perdem sentido e a família vai se fragmentando de vez para buscar por uma resposta. Afinal, para cada um, as coisas estavam bem claras. É a torrente de raiva, dor e ódio após a morte de Lydia que finalmente liberta os Lee. Quando eles finalmente falam sobre o que esconderam, o que preferiam ignorar.

“Agora, olha para as duas caixinhas, presas na prega da sua saia, e os contornos da vida de Lydia — antes tão claros e definidos — começam a ondular. […] Vai descobrir tudo o que não sabe. Vai continuar procurando até entender como isso pode ter acontecido, até entender a filha por completo.” (p. 78)

O silêncio que machuca

Quando encontramos Marin, a protagonista de Estamos Bem (2017), de Nina Lacour, ela está prestes a lidar com as consequências de uma fuga. No fim do verão estadunidense, Marin deixou a cidade em que cresceu levando apenas a carteira, o celular e uma foto da mãe. Apesar dos amigos tentarem contato, ela se escondeu em um hotel até o alojamento da faculdade ser liberado. A fuga, causada por uma verdade silenciada, trancou Marin dentro de si.

Criada pelo avô após a morte da mãe quando tinha pouco mais de dois anos, Marin encontrou aconchego na solidão. Ela e o avô tem uma relação amorosa, mas cheia de receios e palavras não ditas. Marin tinha toda a liberdade para andar pela praia, jantar na casa da melhor amiga e chegar tarde em casa. O avô nunca cobrava nada, passando horas a fio em seu escritório escrevendo cartas. Marin nunca entrava lá. Para ela, o avô escrevia cartas de amor. Cada um vivia a própria vida e, eventualmente, se encontravam na hora do jantar. Havia trocas, brincadeiras e risadas, mas o silêncio é um membro extra dessa família.

“Eu estava com medo do jeito que vivíamos, sem abrir portas. Eu estava com medo de nunca termos ficado à vontade um com o outro. Tinha medo das mentiras que contara para mim mesma. Das mentiras que ele me contara. Eu estava com medo de que nossas pernas por baixo da mesa não tivessem significado nada. De que as roupas limpas e dobradas não tivessem significado nada. De que o chá, os bolos, as músicas, tudo não tivesse significado nada.” (p. 145)

É neste cenário que a relação com a família de Mabel, a melhor amiga, se torna o porto seguro de Marin. É através deles que, pela primeira vez, ela observa o que falta em sua própria família: as conversas claras, os cuidados nas pequenas coisas, a simples curiosidade sobre a vida do outro. Quando Mabel e Marin estão se arrumando para ir em uma festa e os pais de Mabel pedem que a filha troque de roupa, Marin se sente perdida e desejando receber a mesma ordem.

“Me vi parada na frente deles, usando o mesmo vestido e esperando que me dissessem alguma coisa. Queria saber como era. Queria que me dissessem não. Vovô nunca olhava para minhas roupas.” (p. 60)

A solidão do avô de Marin, que nunca superou a morte da filha, acaba sugando a menina também. A necessidade de se sentir amada e cuidada era um desejo que a acompanhava constantemente. Quando, enfim, descobre que o avô escrevia e enviava para si mesmo cartas em que “falava” com a filha e que o escritório escondia diversas coisas que haviam pertencido a ela, Marin não consegue lidar com a sensação de abandono e traição que sente. A fuga se torna uma necessidade porque tudo o que era real é contaminado pelas mentiras.

Enquanto remói esse sentimento dentro de si e resiste a pensar no luto pelo avô — que desapareceu na praia e foi dado como morto antes que pudesse confrontá-lo —, Marin aceita receber Mabel em seu alojamento para passarem o Natal juntas. Mabel está ali para acolher Marin, que, após relutar, escolhe se abrir para amiga pela qual havia se apaixonado. A raiva pelas mentiras do avô, o abandono e as dúvidas que deixou, marcam Marin de todas as formas. Contudo, ao finalmente dizer isso, ela consegue se abrir para receber o amor que a família de Mabel quer lhe dar.

“Algo em mim está se abrindo, a luz que passa é tão forte que dói, e o resto ainda está aqui, ferido, apesar de eu saber que é melhor assim.” (p. 156)

O relacionamento das meninas, que estava dando os primeiros passos durante o verão em que as descobertas foram feitas, foi soterrado pela avalanche de sentimentos que destruiu a família de Marin. Apesar de não conseguirem continuar de onde haviam parado, a amizade entre elas e o cuidado de uma com a outra se mantém. A obra de LaCour nos mostra a complexidade de uma família e a extensão deste conceito.

O silêncio que afasta

Em uma road trip nada convencional, Mim — anacronismo para Mary Iris Malone — está indo encontrar a mãe. Esse é o norte de Mosquitolândia (2015), de David Arnold. Por meio de cartas e das flexões de Mim entendemos o porquê dela estar disposta a percorrer 1.500 km em uma viagem de ônibus até Cleveland, Ohio, com uma mochila e 1,5 mil dólares roubados da madrasta. Após o divórcio dos pais, Mim teve que se mudar para Jackson, Mississipi, para viver com o pai e a nova esposa grávida. É importante ressaltar que Mim não foi ouvida quanto as mudanças que ocorrem em sua vida. Ela simplesmente teve que aceitar.

Seu pai, colocado como um antagonista para ela, acredita está fazendo o melhor para a filha, mas não escuta ou vê quem ela é devido aos próprios medos. O conflito entre pai e filha se intensificou após Mim encontrar a tia morta no porão. Desde então, o pai de Mim passou a enxergar sinais do comportamento da irmã e seu quadro depressivo na filha. Na tentativa de evitar uma tragédia, que já estava destinada a acontecer em sua mente, ele passa a levar Mim ao psiquiatra e a iniciar uma medicação que ela toma desde os nove anos.

Para Mim, o pai sempre a cercou e tentou controlar seu comportamento devido ao medo de uma perda supostamente anunciada. Essa “não escuta” criou um fosso na relação dos dois, ampliada pela traição do pai à mãe, o divórcio, a mudança e o afastamento da mãe de sua vida. Quando Mim descobre que a mãe está internada numa clínica devido a um quadro depressivo — ninguém contou para ela, que só descobre ao entreouvir uma conversa por trás da porta —, ela parte em sua jornada.

“Aos oito anos eu já compreendia bem as coisas, mas me lembro de ter ficado confusa. Eu não conseguia entender o que na nossa conversa o deixara bravo. […] Mais tarde, eu pararia para pensar em como era estranho que essa obsessão de meu pai — que houvesse alguma coisa de errado comigo, algo sério o bastante para eu precisar de remédios sérios, médicos sérios e uma vida cheia de medidas séria para evitar uma loucura mais séria — o estivesse deixando louco também.” (p. 227-228)

Mim é uma menina intensa e difícil. Ela reconhece isso. Mas é um comportamento que se justifica ao percebemos como ela é ignorada quanto aos acontecimentos familiares, mesmo os que dizem respeito à ela. Esse “não falar” para proteger é o que alimentar a raiva de Mim e o que dificulta qualquer vínculo ou compreensão com o pai e a madrasta.

A viagem de ônibus oferece, pela primeira vez, o espaço de reflexão que Mim necessitava sobre a raiva que sente do pai e o silêncio da mãe. As reflexões se tornam mais profundas quando Mim encontra companhias inesperadas em sua jornada. É com Walt e Beck, dois jovens que também estão lidando com os seus próprios conflitos familiares, que Mim consegue entender o que significa estar em uma família. São eles que a ajudam a encarar as verdades ocultas do passado, a pensar sobre suas próprias ações e a negação que vivia dentro de si. Eles levantam os questionamentos que Mim precisava ouvir para perceber que havia pessoas dispostas a cuidar dela, mesmo que ela ainda não estivesse vendo isso.

“Não subestime o valor da amizade. Receio que qualquer elaboração só vá servir para diminuir a simplicidade poderosa dessa declaração. Então, por hora, vamos deixar assim.” (p. 291)


Participamos do Programa de Associados da Amazon, um serviço de intermediação entre a Amazon e os clientes, que remunera a inclusão de links para o site da Amazon e os sites afiliados.  Se interessou pelos livros? Clique aqui e compre direto pelo site da Amazon!