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Está na hora de conhecer o Rio Grande do Sul, respeitá-lo e ajudar as vítimas

As enchentes no Rio Grande do Sul atraíram a atenção de todo o país e despertaram grandes ações solidárias. Mas nem tudo são flores e boas ações, principalmente na internet. Assim como em qualquer tragédia, as redes sociais logo se tornaram um espaço de disputa de narrativas, notícias falsas e comentários maldosos. Enquanto gaúcha, me chamaram a atenção comentários xenofóbicos que reduziram o estado a certas características e posicionamentos políticos.
Alguns chegaram ao ponto de sugerir que as enchentes eram merecidas pelas escolhas eleitorais de uma parcela da população, enquanto outros negaram ajuda devido à existência de movimentos separatistas no estado. Uma influenciadora insinuou que as enchentes eram um castigo pelo número de terreiros no estado. Em outro caso emblemático, Flora Mattos sugeriu que outros estados não receberiam a mesma ajuda por não serem brancos. Claro que, historicamente, a questão racial é fundamental para analisar a mobilização diante de tragédias. Porém, em uma das maiores tragédias do país, em que pessoas de diferentes raças, religiões e origens foram atingidas, a fala não deixa de ser inoportuna.

Felizmente, esses comentários são de uma minoria e ganham repercussão pela indignação dos demais. Ainda assim, essas falas mostram que o Brasil não conhece o Rio Grande do Sul. E para ser honesta, o próprio Rio Grande do Sul não conhece a diversidade social, política, racial, étnica e de gênero que abriga. Historicamente, criou-se um mito de que este é um estado branco, cristão e conservador. O próprio presidente Lula disse que se surpreendeu ao ver a quantidade de pessoas negras vítimas das enchentes sendo entrevistadas nos telejornais. E existem uma série de razões para que essa crença perdure até hoje em todo o país.

A começar, de fato o perfil descrito anteriormente reflete características da maioria da população do estado. O Rio Grande do Sul é o estado proporcionalmente mais branco do país. Os dados do Censo Demográfico do IBGE de 2022 indicam que a população negra corresponde a 21,1% da população gaúcha, sendo 6,52% desse contingente declarados pretos e 14,67% pardos. Além disso, a população indígena é inferior a 0,5% e a população quilombola é composta por 17,5 mil pessoas. Portanto, a diversidade é menor do que em outros estados brasileiros. Ainda assim, essas populações existem e representam uma porção significativa da população gaúcha, sendo também parte importante da identidade do estado.

Rio Grande do Sul

Levando isso em conta, temos razões para acreditar que essa percepção de um estado branco está muito mais relacionada a outros fatores históricos e sociais. Para começar, temos o mito da democracia racial, teoria que defende que miscigenação teria feito do Brasil um país livre de racismo e segregação racial.

No caso do Rio Grande do Sul, crescemos ouvindo que o estado possui poucas pessoas negras. E é mais fácil ainda acreditar nisso quando há a predominância de brancos em tantos espaços, especialmente em ambientes elitizados, como universidades e associações de classe. Assim como no resto do Brasil, os negros ainda são a maioria entre a população de baixa renda e com menos escolaridade. Além disso, na própria mídia e no jornalismo, a presença negra ainda está engatinhando. Até pouco tempo atrás, profissionais negros eram quase exclusividade de segmentos como cultura e pautas identitárias, mostrando a “realidade da comunidade”, com poucas exceções.

Mesmo a questão da autodeclaração de raça é uma problemática. Passamos por um longo processo de embranquecimento da população e desumanização de pessoas negras. Portanto, muitas pessoas têm dificuldade ao se declarar negras ou pardas, especialmente em um estado “branco”.

Outro aspecto importante é a diversidade religiosa no Rio Grande do Sul. Trata-se do estado com maior percentual de pessoas que declaram pertencer ao candomblé, umbanda e outras religiões afro-brasileiras, com 1,48% da população, de acordo com o Censo de 2010 do IBGE. A intolerância religiosa ainda limita a declaração e disfarça a existência desses grupos, já que muitos preferem se proteger escondendo a própria religiosidade.

Rio Grande do Sul

Em termos políticos, novamente temos uma diversidade surpreendente: apesar da guinada à extrema direita nos últimos anos, o estado está longe de um consenso. No próprio segundo turno das eleições de 2022, Bolsonaro fez 56,35% dos votos e Lula 43,65%. A despeito da predominância da direita na política estadual, esse resultado mostra que, assim como no resto do país, o Rio Grande do Sul vive um processo de polarização política e abriga pessoas de todos os espectros políticos. Além disso, o estado tem uma longe história de protagonismo político no âmbito nacional,, projetando nomes que vão desde Getúlio Vargas a Leonel Brizola. Diversos movimentos políticos, inclusive de esquerda, também tiveram suas origens no Rio Grande do Sul.

Desumanização

Agora, nas enchentes, diversos estudos e pesquisas mostram que as populações mais atingidas estão, justamente, entre as mais pobres e negras do estado. De modo similar, comunidades quilombolas do interior ficaram totalmente isoladas por dias. Essas informações são importantes porque mostram o que cientistas vêm alertando há décadas, de que essas populações seriam as mais atingidas por desastres climáticos e precisam de atenção e medidas para adaptação às mudanças climáticas. Elas também mostram que os discursos xenofóbicos e insensíveis que culpam a população do estado pela tragédia  são, além de tudo, sem fundamento.

A polarização política pela qual passamos e a radicalização tornaram difícil a convivência e o debate. É óbvio que todos podemos definir limites e devemos considerar certas opiniões e escolhas e posicionamentos políticos como inaceitáveis, assim como reprimi-los e, em alguns casos, condená-los. Ninguém deve ser condescendente com o nazismo, o racismo e a homofobia, por exemplo. No entanto, isso é diferente de reduzir outro ser humano — ou, neste caso, a população inteira de um estado — a uma condição sub-humana, como se não merecessem solidariedade ou ajuda em um momento de calamidade. Essa atitude é resultado de um processo de desumanização política que compromete a empatia. Por isso é preciso definir limites, ter consciência e respeitar direitos humanos básicos — sem esquecer que a tragédia é também política e que políticos negacionistas sobre as mudanças climáticas devem ser apontados. Aqueles que cometeram negligências devem ser responsabilizados. A tragédia climática é política e deve refletir em atitudes contundentes e em mudanças.

O Rio Grande do Sul agora passa por um longo período de reconstrução, com traumas profundos e perdas gigantescas. A ajuda será necessária por um longo tempo, considerando que milhares ainda estão em abrigos, que casas foram destruídas, empregos foram perdidos e que muitos precisarão sair dos locais onde viviam. Felizmente, a maior parte do país está consciente e solidária. É importante ressaltar que os comentários xenofóbicos são uma minoria e não se limitam a nenhum grupo específico. Porém, eles mostram a importância do Brasil conhecer o Rio Grande do Sul e do próprio estado abraçar sua diversidade e respeitá-la.