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Dançando no Silêncio: a arte como superação

As produções consideradas feministas do nosso tempo parecem ter a obrigatoriedade de conter algum tema violento em comum à experiência de socialização feminina: desigualdade de poder, abusos, estupros ou a cultura do estupro, relações tóxicas e violência doméstica. Estes são sim temas que ainda precisam ser muito debatidos, mas não são os únicos comuns às mulheres: as vivências da realidade são múltiplas e não se limitam a apenas estas violências específicas. Aliás, deixar que as histórias sobre mulheres tenham sempre essas questões como centrais é negar a elas a humanidade de terem problemas banais com os quais lidar retratados nas telas. O corriqueiro costuma ser negado de outras formas também: outra história típica dos roteiros ocidentais sinalizados como feministas são as jornadas de heróis adaptadas a uma personagem feminina, nas quais há um empoderamento artificial, limitado e individual típico do liberalismo.

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Há muito mais no universo feminino que é particular da socialização de indivíduos designados como mulheres, mas poucas grandes histórias que têm a intenção de se vender como para mulheres ou sobre mulheres fogem desses pontos. O filme Dançando no Escuro, lançado no Brasil pela Pandora Filmes, consegue fugir desses padrões e ainda assim adentrar o universo feminino como poucos que cumprem a checklist dos filmes feministas.

dançando no silêncio

O nome original do filme é o mesmo de sua protagonista: Houria. A jovem  vivida por Lyna Khoudri é uma dançarina de balé prestes a fazer um teste importante para sua carreira. Para se sustentar, ela trabalha como camareira e à noite busca dinheiro extra para comprar um carro para a mãe, apostando em rinhas de animais. Quando se aproxima do seu objetivo, um dos apostadores rivais se enfurece com as vitórias da dançarina e a ameaça e persegue, e isso acaba gerando uma fratura em seu tornozelo. Impossibilitada de fazer o teste e seguir a carreira no balé, Houría perde também a voz.

Sua reabilitação é lenta e dolorosa e, no centro onde faz fisioterapia, ela se integra lentamente a um grupo de mulheres com questões diversas, que aos poucos vão se revelando. Embora as personagens secundárias não ganhem tanto destaque quanto merecem, é interessante ver a receptividade delas e o acolhimento aos problemas umas das outras. Todas elas parecem compreender e aceitar a maneira de conviver da outra, apesar das muitas dificuldades que cada uma carrega: algumas nasceram com alguma questão que as impede de falar, outras são autistas, há aquelas que sofreram traumas que as deixaram debilitadas, e há as que passam por crises ocasionais. A construção dessas personagens não passa pelos estereótipos típicos de suas condições, e este é mais um ponto positivo do filme.

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Se sentindo acolhida, Houria volta a dançar, o que chama a atenção das colegas, que convidam a recém-chega ao grupo para ser professora de dança daquele centro médico. O desafio passa a guiar a personagem que havia perdido sua motivação depois de ter que se despedir à força daquele que parecia ser seu destino. Aos poucos, o retorno à dança faz com que a protagonista se reconecte com sua mãe e sua melhor amiga, Sabrina (Rachida Brakni), que desde o começo queria largar a dança para atravessar o oceano e encontrar uma vida melhor em outra terra.

Sem dar muitos detalhes do que acontece em seguida, é possível contar que a trama se desdobra a partir desses acontecimentos iniciais que revelam, aos poucos, as cicatrizes de um país com uma histórico recente de guerra. A guerra-civil argelina é a causadora de grande parte das dificuldades que o filme expõe, mas, ao invés de se voltar para o conflito em si, Dançando no Silêncio a revela a partir da recuperação de Houria e dos esforços daqueles que não estão diretamente envolvidos nas batalhas: as mulheres encaram a viuvez, a perda dos filhos, casas vazias, sequelas físicas, mentais e emocionais que agora habitam elas mesmas e aos homens argelinos. Entre os destroços ainda surgem mais tragédias e dores que são consequências de uma resolução não-definitiva do conflito: ainda ficam pessoas envolvidas em crimes de guerra e terrorismo entre a população, e ainda fica a desesperança no futuro daquele lugar.

dançando no silêncio

A diretora e roteirista Mounia Meddou escolhe um ponto de vista otimista, que aposta na possibilidade de reabilitação da protagonista e pode indicar também um otimismo em relação ao local, embora o destino final de Houria e do país fiquem em aberto. Mas essa conclusão positiva só acontece porque é a partir da convivência com as outras mulheres através da arte que a jovem mantém e retoma sua força. A relação da protagonista com a dança vai se desenvolvendo conforme as situações vão se desdobrando e, no fim, o que salva todas aquelas mulheres do grupo e a própria Houria é a possibilidade de expressar as dores em seus corpos com os movimentos coreografados. A arte ajuda aquelas mulheres a superar a morte — ou melhor, as mortes: das pessoas queridas, da esperança de um futuro melhor, das aspirações individuais. Além disso, o fato de Dançando no Silêncio ser um filme onde dançarinas se comunicam principalmente por sinais permite à diretora mostrar sequências poéticas onde a expressão corporal fala muito mais do que qualquer diálogo do roteiro. Juntando cinema e dança, a cineasta acaba por criar uma obra que mescla duas artes distintas de forma bela, sensível e impactante.

Dançando no Silêncio conta um lado da guerra e das tentativas de superação desta que é vivido pelas mulheres e acaba sendo um filme feminista que dá protagonismo e força à suas personagens de forma coletiva. Fugindo da individualidade dos heróis e suas jornadas, é através das conexões que todas as personagens — da protagonista às coadjuvantes — se empoderam, não pelo poder em si, mas para sobreviverem e superarem juntas um trauma que é também coletivo de um país que viveu e vive as mazelas da guerra. Fugindo também dos temas e conflitos já repetitivos nas telas, Dançando no Silêncio se torna um sopro fresco de arte poética, sensível e potente. Um filme feminista por permitir que as mulheres tenham outros dilemas que não os que sempre vemos nas telas.