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Girlboss: pelo direito de ser imperfeita

“A seguir uma releitura livre de eventos verdadeiros. Muito livre.” É com essas duas frases que a Netflix apresenta sua mais nova série de “dramédia”, Girlboss. Baseado no livro biográfico escrito por Sophia Amoruso, Girlboss chegou completa, com treze episódios, ao serviço de streaming no último dia 21 de abril. Produzida por um time de mulheres de peso — de Kay Cannon, criadora de A Escolha Perfeita, à Charlize Theron, que dispensa apresentações, além da própria Sophia —, a série é uma releitura bem-humorada da trajetória de Amoruso no mundo dos negócio, desde as pedras até o sucesso da Nasty Gal, sua marca milionária, passando por momentos de epifania, amizades, romances, festas, conflitos familiares — em resumo, situações que fariam parte da vida de qualquer pessoa.

Atenção: este texto contém spoilers!

Mas Sophia não é qualquer pessoa, e ela faz questão de deixar isso muito claro desde o início. Sua história começa em São Francisco, em 2006, quando Sophia (Britt Robertson), então com 23 anos, é demitida do último emprego — em uma loja de sapatos onde ela faz tudo, menos o que é paga para fazer. Sem perspectivas, Sophia decide entrar em um brechó, onde se depara com uma jaqueta da década de 1970 que, conforme lhe assegura seu olhar afiado, vale muito mais do que os 12 dólares cobrados na etiqueta. Ela barganha e consegue levar a jaqueta por 8 dólares, a mesma que, pouco depois, seria vendida por ela no eBay por algumas centenas de dólares, levando Sophia a ter a epifania sobre o funcionamento do mundo e o que ela gostaria de fazer pelo resto da vida.

Mesmo nos anos mais obscuros da adolescência, Sophia já se interessava por moda, como a série demonstra em flashbacks. Pegar uma peça e transformá-la em objeto de desejo na internet era uma tarefa simples para ela, que viu no eBay uma chance de comercializar suas criações e manter-se financeiramente sem muito esforço — ao menos, como ela pensa no início. Ao adentrar o mundo de vendas on-line, Sophia descobre que erguer o próprio império não é uma tarefa tão simples: suas experiências com o trabalho somam decepções, clientes insatisfeitos, lojas rivais, mercadorias devolvidas e receios que ela precisa enfrentar e é a persistência ao encarar cada um desses desafios — às vezes com choro, grito e ataques de raiva — que a faz um ponto fora da curva.

Girlboss

Como protagonista, Sophia não é uma pessoa fácil. Ela é uma força da natureza, uma mulher sem papas na língua que encara a vida como uma eterna batalha. Ao mesmo tempo, é vulnerável e contraditória, sente medo, angústia, receio, amor. E sua humanidade é incômoda. Os defeitos de Sophia são expostos de forma agressiva, tanto quanto ela própria, e não é por acaso que ela seja tão complica e ambígua, a ponto de se tornar insuportável. Girlboss brinca com essa representação, oscilando entre a admiração e a perplexidade ao observar os avanços e reveses de Sophia, enquanto ela aprende a navegar pelo mundo sem perder sua essência.

Uma das frases mais repetidas no decorrer dos episódios — “I just need to figure out a way of growing up without becoming a boring adult” [“Eu só preciso descobrir um jeito de crescer sem me tornar uma adulta chata”] — exemplifica o sentimento de Sophia em relação ao mundo, mas também sugere a existência de uma percepção sobre si mesma como alguém que merece um futuro brilhante simplesmente por ser quem é — o que, como já deixamos claro no caso de outra personagem, não é o suficiente. Eventualmente, Sophia descobre que, para obter sucesso, ela precisará de mais do que a certeza de ser especial, e a quebra de expectativas se tornam a força motriz que a impulsionam na direção do seu sonho. Embora se sinta injustiçada, vista a máscara e figurino de mártir, seja egoísta e culpe todos que supostamente não a compreendem — o pai, a chefe, seus amigos e namorado; as pessoas chatas que ela despreza e que a puxam de volta para a realidade —, Sophia, ao menos, encontra uma forma de reagir.       

Embora seja um discurso idealizado, que ignora múltiplas realidades — incluindo aquela em que existe a própria Sophia —, não deixa de ser interessante a forma como a protagonista lida com os obstáculos e alcança seus objetivos. Como uma jovem mulher inexperiente que decide criar o próprio negócio, é bonito que Sophia não duvide de sua capacidade ou do trabalho que está fazendo. Acreditar talvez seja a palavra chave em sua história, e é esse acreditar, somado às horas de trabalho, frustrações e dedicação, que a leva tão longe, tão rápido. Seria fácil se contentar com algumas vendas mensais ou um emprego que não a agradasse, mas oferecesse estabilidade. Sophia, no entanto, jamais se contentaria com uma vida que não lhe trouxesse, também, satisfação.

Girlboss

É claro que Sophia não chega a lugar nenhum sozinha, embora por muito tempo vá acreditar que o mérito pelo o que construiu seja somente seu. A ideia de que vender roupas repaginadas on-line, sem o suporte de pessoas próximas, jamais a teria transformado em um fenômeno se fosse movido apenas por sua ambição. Quem melhor personifica o papel de braço direito é sua melhor amiga, Annie (Ellie Reed), uma jovem adorável que está sempre com um sorriso no rosto e faz um contraponto perfeito a toda a rabugice de Sophia, que às vezes se torna difícil de aguentar: se a protagonista é desenhada como uma espécie de anti-heroína, com atitudes grosseiras e egoístas, Annie é a pessoa que lhe lembra que a vida não é fácil, mas que é possível realizar sonhos, e ajuda Sophia em sua tarefa. Annie e Sophia mantêm uma amizade verossímil, que começa de maneira improvável, e não é perfeita, mas não deixa de ser benéfica e importante para ambas as partes. São mulheres que cuidam uma da outra e, por mais diferentes que sejam, conseguem pautar sua relação em um sentimento mútuo de cumplicidade, amor e compreensão.

Outro personagem a girar ao redor da órbita de Sophia é Shane (Johnny Simmons), seu interesse amoroso, que devia ser apenas um envolvimento casual — como ambos não cansam de repetir, numa tentativa de acreditar na falácia de sua própria história. Os dois se conhecem em um bar, quando Shane tocava bateria na banda que se apresentava no local, e uma troca de olhares é suficiente para dar início ao relacionamento. A princípio, Shane é o típico bom moço: um cara que não é perfeito, mas chega muito perto de ser. Ele aceita Sophia por completo, com todos os seus defeitos, e gosta dela, mas nada é tão bom quanto parece ser. O relacionamento é, por algum tempo, uma troca interessante entre duas pessoas que sentem carinho um pelo outro e vivem bons momentos, mas que não tem uma relação idealizada. Há certa mágica em suas interações, mas não se trata de algo irreal: o sexo não é perfeito e um banho de chuveiro é muito mais inconveniente do que romântico. Ainda assim, são momentos especiais e românticos, como acontece na vida real. Não demora, contudo, para que Shane tenha uma atitude equivocada e destrua o que eles construíram ao longo de dois anos. Sophia não é uma pessoa doce, e Shane parece aceitar isso bem, mas alguns erros não são tão facilmente esquecidos e perdoar nem sempre é uma tarefa fácil.

Muitos dos conflitos que surgem entre o casal acontecem, em parte, porque Sophia possui prioridades além do relacionamento, algo com o qual Shane nem sempre é capaz de entender. Em “The Trip”, oitavo episódio da temporada, os dois viajam para curtir um final de semana juntos após passarem algum tempo separados, mas a pequena fuga se transforma em um palco para discussões, quase sempre motivadas pela não-aceitação de Shane em relação à Sophia. O problema são as batatas-fritas que ela come sozinha, é o fato dela não querer ir para a piscina do hotel, é o trabalho dela que não termina nunca; mas não o próprio Shane, incapaz de aceitá-la, que espera ser aceito quando faz exatamente o mesmo. Mais tarde, é o mesmo Shane que trai a confiança de Sophia ao ignorar o relacionamento e o momento especial que vivia a parceira.

O elenco de Girlboss conta com algumas surpresas, como RuPaul como o vizinho de Sophia, Lionel, que trabalha na segurança de um aeroporto; Dean Norris como Jay, o pai da protagonista; e Melanie Lynskey como nêmesis/colega de vendas on-line, Gail, uma apaixonada por roupas vintage que vê no trabalho de Sophia um sacrilégio contra a autenticidade das roupas. Dois dos momentos mais memoráveis vividos por Sophia, curiosamente, são com a própria Gail, que sem mais nem menos bate em sua porta para reclamar e só sai de lá no dia seguinte, depois que as duas dividem confidências, drinks, roupas e uma balada. Poderia ser o início de uma amizade, não fosse uma atitude equivocada da própria Sophia, que coloca um ponto final na relação antes mesmo de começar. Mais tarde, Gail cria e modera um fórum on-line exclusivo para falar sobre roupas vintage e tramar uma forma de derrubar a Nasty Gal. A montagem da cena, com todos debatendo em tempo real sobre Sophia e sua marca, é um dos momentos mais divertidos da série.

Girlboss

Girlboss transporta para a tela alguns dos momentos mais icônicos relatados no livro, mas propõe uma releitura mais divertida que nem sempre dá certo — como os pequenos furtos cometidos por Sophia, que ganham ares de brincadeira ligeiramente glamourizada. No livro, a verdadeira Sophia enfatiza que não se orgulha desse período, e que foi preciso passar pela vergonha de ser pega em flagrante para que pudesse tomar a decisão que mudaria sua vida. Na série, no entanto, esse é apenas um detalhe sem importância, a brincadeira inconsequente de uma jovem em idade de formação — uma escolha curiosa em um roteiro que não se utiliza de saídas fáceis com frequência. Sophia não deixa de ter um pano de fundo complexo: para além da personalidade, ela vem de um contexto familiar conturbado, com uma relação difícil com o pai e problemas de abandono com a mãe, que a deixou aos doze anos.

Girlboss não demoniza a figura materna pela ausência, no entanto. O abandono é, na verdade, um problema para ambas as mulheres: Sophia, porque não tivera a presença da mãe durante seu desenvolvimento; a mãe, porque se culpa por não ter estado presente e por não ter desejado ser mãe. É o elefante na sala, mas nenhuma das duas fingem que ele não existe, e quando se encontram, elas o enfeitam, bebem vinho e dançam ao seu redor, e a culpa se dissipa para celebrar a imperfeição de duas mulheres que se amam, apesar de tudo.

Entre altos e baixos, alguns episódios interessantes e outros nem tantos, Girlboss parece alcançar seu objetivo. Sophia não é uma protagonista adorável, comete muitos erros, mas aos trancos e barrancos segue o seu sonho e confia em sua visão empresarial. Por mais difícil que seja gostar dela, não há como negar que sua trajetória no mundo dos negócios é, de fato, interessante. Nos primórdios da internet e do eBay, uma jovem teve a visão e garra para fazer sua ideia prosperar, lutando contra tudo e todos para manter seu objetivo vivo. Talvez seja difícil se identificar com Sophia e seu estilo de vida, mas ver uma mulher prosperar num mundo que nos diz incessantemente que não somos suficientes não deixa de ser inspirador.

Crítica escrita em parceria por Ana Luíza e Thay.

2 comentários

  1. Ainda não assisti a série, mas pelo texto parece ter ficado um pouquinho melhor que o livro. Este pra mim foi uma decepção, Sophia escreve como se tudo na vida fosse muito fácil sem aprofundar todas as dificuldades reais que ela teve que passar, deixando a impressão que ‘basta querer’ pra algo acontecer e me deu a ideia que ela era uma adolescente/jovem adulta mimada querendo ‘fugir’ da aba dos pais mas sabendo que podia voltar caso precisasse. Sem falar nas ‘ordens’ que ela dá às garotas incentivando, ao meu ver, uma segregação, dizendo que se a mulher faz isso, isso e isso ela é um girlboss, caso contrário, será uma perdedora. Sem contar os escândalos que a Nasty Gal se envolveu por demitir funcionárias grávidas. Espero que a série tenha consertado esses pequenos probleminhas.

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