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Big Brother Brasil 19: um reality show da intolerância

Há alguns anos voltei a acompanhar o reality show mais batido da TV aberta brasileira, o Big Brother Brasil. A versão verde e amarela da cria de George Orwell deixou de ser um ruído no caminho do quarto para a cozinha e da cozinha para o quarto, para se tornar, novamente, uma fonte de entretenimento. Nos últimos anos, acompanhei mulheres ganharem o prêmio mais cobiçado do programa. Assisti ao embate da participante mulher que levantou a voz para o participante pedófilo. Houve a edição da moça que se encantou pelo médico e aí descobriu que ele não passava de um machista manipulador e agressivo. O ano passado foi marcado por uma edição ótima, que colocou Gleici, a menina simples do Acre, como a grande vencedora do programa. Se as últimas edições do programa trouxeram boas discussões e genuíno entretenimento, a versão de 2019 não só deixou a desejar, como escancarou grandes problemas da realidade brasileira.

Em primeiro momento, a edição parece mais diversa do que as anteriores, embora longe de encontrar um equilíbrio que representa a vida daqui de fora. A mesma fórmula ainda se repete: há umas quatro mulheres iguais, magras, loiras e cheias de privilégios; há um ou dois participantes de mais idade. Também há os fazendeiros, empresários, homens que gostam de festa — todos, inegavelmente, com a masculinidade tão frágil quanto possível —, que começam a falar de jogo no primeiro dia e encontram, de pronto, algum alvo para não ter afinidade. E então há os demais participantes, aqueles que geralmente fazem o programa valer a pena. Nesse ano, inicialmente apostei algumas fichas em participantes como Danrley, Rízia, Rodrigo, Gabriela, Hana e Carolina. Com exceção da última, até certo ponto de fato foram estes que carregaram a edição nas costas e fizeram desta um pouco mais interessante.

Para o bem, mas principalmente para o mal, o programa, que já estava fadado ao fracasso por ter um elenco pouco carismático, conseguiu acelerar o processo de atingir o fundo do poço quando não suficiente em faltar carisma, trouxe para a TV aberta a personificação do cidadão de bem — racista, intolerante, machista e que, no fim do dia, tenta esconder tudo isso sob um escudo de “é só a minha opinião”. Para além da chatice de um apresentador que pensa fazer parte do jogo, e narra, com comentários pessoais, tudo o que acontece no reality para o telespectador, a edição de 2019 é e foi um show de horrores que, infelizmente, combina muito com atual conjuntura do país.

Hana, por exemplo, figurou como alvo de ataques machistas, especialmente por ser uma mulher jovem de opiniões fortes e posição assertiva — algo que é tido como arrogância quando vindo de uma mulher. Apesar de ser uma participante que movimentava o jogo, foi eliminada na terceira semana em um paredão triplo, para o horror da produção do programa. No embate, composto por Hana, Hariany e Rízia, Hana saiu por uma margem de 0,48% a mais que a segunda colocada, Hariany — esta que desde cedo serviu como sombra de participante racista. Nessa esteira, Gabriela (que mulher!), Rodrigo, Rízia e Danrley de fato trouxeram discussões e trocas maravilhosas e pertinentes sobre pobreza, privilégios, raça e vivências, deixando mais politizado um programa que se esforça para não entrar em tópicos atuais e necessários. Tais discussões, no entanto, muitas vezes vieram a troco de intolerância, preconceito e racismo, todos estes perpetuados não só por alguns participantes da casa, como, por óbvio, o público votante: Danrley, o décimo eliminado do programa, saiu com mais de 60% dos votos em um paredão contra Paula e Carolina. Elana deixou a casa logo em seguida, quando enfrentou o paredão contra Carolina e Paula, a última recebendo um total de 3,85% dos votos. Rodrigo foi o décimo segundo a ser eliminado, também com mais de 60% dos votos, quando concorria com Hariany e Carolina. Com mais de 60% dos votos, Gabriela foi eliminada quando foi ao paredão com Rízia, na semana passada. Na última segunda, Rízia, a última negra do programa, deixou a casa com um percentual também superior a 60% dos votos, justamente quando enfrentou o paredão com Paula, a intolerante de carteirinha.

É emblemático que uma edição tão problemática tenha eliminado sua última participante negra quando esta concorreu com a participante que, desde a primeira semana, deixou transparente seu racismo. Nos primeiros dias da casa, em uma conversa para lá de preconceituosa, a bacharel em direito incessantemente pressiona Danrley, o estudante vendedor de picolé que nasceu em uma comunidade no Rio de Janeiro, a confessar o uso de drogas ilícitas, mesmo quando este repete que nunca fez uso das mesmas. Na cabeça da loira rica, que fala com tranquilidade em um programa de alcance nacional que já fez uso de psicoativos, Danrley só poderia estar faltando com a verdade quando diz que nunca usou drogas. O mesmo questionamento não foi estendido a outros participantes da casa.

O que a mídia, nas suas chamadas, têm denominado como polêmica, se trata de crime. Paula não sossegou desde que entrou na casa e de forma reiterada emitiu declarações de cunho preconceituoso: fez piada com dependência química, se posicionou de forma homofóbica, reproduziu machismo e associou o movimento feminista a determinados partidos em um grande repeteco de polarização política, e não parou por aí. A participante também acredita em racismo reverso e se demonstrou contra as cotas nas universidades. Ao contar sobre uma amiga que havia sido esfaqueada, referiu-se ao autor do crime da seguinte maneira: Pensei que ia chegar mó faveladão lá, e quando eu vi o cara era branquinho, morou não sei quanto tempo na Austrália ou no Canadá, não sei. Em conversa com a até então melhor amiga dentro da casa, Hariany, as duas acham de bom tom dizer que são adeptas ao bullying, ao deboche e ao humor negro. Hariany ri e concorda, e muito embora seu fã clube esperneie em defesa da sister, a realidade comprova o contrário. As risadas de deboche, no entanto, deram efeito rebote e voltaram, ontem, para cobrar de Hariany sua paciência e sua permanência dentro casa. O episódio de intolerância religiosa envolvendo Hariany, Diego e Paula não foi o único da edição do programa, tendo sido ainda mais grave o protagonizado por Maycon, um dos mais imaturos e birrentos participantes que a casa do Big Brother viu nos últimos anos. Na ocasião, Maycon diz sentir algo ruim ao ver Gabriela e Rodrigo curtindo uma música do cantor Jorge Aragão. A cena toda e toda a continuidade que dela assistimos parece quadro irônico de um programa de comédia, mas não é: é a vida real acontecendo ali, sob as câmeras. Não contente em ser racista, Maycon ainda admite ter praticado maus-tratos aos animais e zoofilia, para completar o show de atrocidades.

A produção do BBB não veiculou todos os muitos episódios dignos de delegacia na edição mas, em um raro momento de transmissão de um desses momentos, de forma desconfortável o interlocutor do programa anunciou que os participantes “sabem o momento de falar sério e o momento de brincar…”, configurando uma grande passada de pano digna da emissora. É de inocência pensar que a produção seja a (única) responsável pelo fiasco do BBB19. Caíram por terra as suspeitas de manipulação no game: Hana ter sido eliminada apesar do apresentador interceder, de forma velada, em seu favor, provou isso. O BBB19 foi um fiasco porque o público que vota assim o quis.

O público que vota — e votou — é o mesmo público que orquestrou um ataque em massa contra Rodrigo, a envolver até mesmo ameaça de morte. São as mesmas pessoas que concordam, silenciosamente ou não, com as muitas atitudes e frases intolerantes que inundaram o dia-a-dia do programa. Não há espaço para abstenção aqui, não há espaço para alegar que injúria racial, intolerância religiosa e preconceito são produtos de um “erro inocente” — o coro dos fã-clubes que tentam escusar esses participantes. Quando esse público — e todos nós — escolhemos fazer vista grossa para algo, somos, automaticamente, coniventes com a situação. Talvez o público que ano passado tenha votado para premiar Gleici esteja exausto depois de uma eleição presidencial (e todo o seu desdobrar) que tenha (n)os deixado amuados, paralisados e com medo, a ponto de não aguentar(mos) mais assistir ou tentar modificar um programa que representa tudo aquilo que esse público (a gente) mais luta contra. Talvez o público que não votou no ano passado apareceu para curtir a edição problemática do programa depois de uma eleição presidencial que tenha dado tanto espaço para que as pessoas sejam (ainda mais) racistas. “Numa sociedade racista, não basta não ser racista, é necessário ser antirracista”, diria Angela Davis. Mas na mesma semana que um “erro” custou a vida de um homem negro, morto com oitenta (!) tiros na frente da família, a audiência brasileira deixou chegar na final do seu maior reality show a figura mais intolerante da edição do programa. Talvez esse resultado seja um reflexo da nossa sociedade, talvez nossa sociedade seja um reflexo de quem ganha palco nacional e afago midiático para incorrer em atitudes criminosas e preconceituosas. Não podemos tirar muita coisa boa da vergonha que foi o BBB19, mas tudo o que de bom tivemos vieram do mesmo pequeno e incansável grupo de pessoas — e nenhuma dessas dançou na pista Villa Mix.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Vieira