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Allen v. Farrow: uma saga familiar que evidencia o paradoxo de Hollywood

Mia Farrow e Woody Allen tiveram um dos relacionamentos mais comentados de Hollywood na década de 1980. A atriz de O Bebê de Rosemary (1969) e O Grande Gatsby (1974) conta que eles passaram a se relacionar antes do primeiro filme em que ele a dirigiu (A Midnight Summer Night’s Sex Comedy), mas já nessa época Woody era um personagem exaltado na cena artística de Nova York. Premiado por Annie Hall (1977), estrelado por Diane Keaton, e aclamado por Manhattan (1979), o cineasta construía seu caminho sob a fama da genialidade autoral, afinal, escrevia, dirigia e produzia os próprios filmes, que tinham como cenário principal e pseudopersonagem as muitas nuances da cidade de Nova York, seus habitantes, seus costumes e seus cenários atemporais: Woody era a cidade e a cidade era Woody numa relação de devoção mútua.

Aviso de gatilho: este texto fala sobre abuso e agressão sexual contra crianças.

Mia, de outro lado, acabava de sair de um relacionamento com o músico André Previn, com quem havia tido os gêmeos Matthew e Sascha, Lark Song, Fletcher, Daisy e Soon-Yi. A separação aconteceu quando Moses estava em processo de adoção, por isso, o órfão coreano inicialmente foi adotado apenas pela atriz, que o descreve como fascinado por Woody, o qual começava a frequentar o apartamento da família. A relação do casal sempre se manteve mais distante, embora trabalhassem juntos. Como ele desejava viver sozinho em seu apartamento em Nova York, os dois nunca chegaram a se casar ou constituir casa e, por muito tempo, viveram como vizinhos na cidade, tendo apenas o Central Park como obstáculo para se encontrar e, vez em quando, se comunicarem por meio das luzes do prédio.

Allen v. Farrow

No documentário Allen v. Farrow (HBO Max), a atriz descreve esse período de maneira bastante lúdica, de forma que não resta dúvidas de como o relacionamento não demorou a progredir, especialmente na frente das câmeras. Nos bastidores, no entanto, Mia conta que Woody nunca teve ambições de ser pai ou, literalmente, constituir família, e que sua convivência com os filhos dela sempre foram bastante superficiais, dando a entender que o estilo de vida boêmio nova-iorquino era encarado como peça essencial de sua criatividade.

Assim eles seguiram por ao menos quatro anos quando Mia expressou seu desejo de ser mãe novamente e, embora, o papel de pai nunca tenha despertado nele qualquer apreço, Woody concordou que eles poderiam tentar ter um filho biológico, o que não vingou. Daí, surgiu a ideia de adotar, com a qual ele nunca esteve animado até que, um dia, concordou, se a criança fosse uma menininha loira sob o qual ela teria toda a responsabilidade, da educação até os gastos. Em 1985, Dylan Farrow foi adotada.

Apesar de inicialmente estar desinteressado, Woody aos poucos se tornou intensamente ligado à menina. No audiobook Woody Allen’s Apropos of Nothing (2020), ele admite que estava indiferente a tudo aquilo até notar que, cada vez mais, brincava a interagia com a bebê Dylan, se tornando “completamente apaixonado por ela, adorando ser pai dela”. Assim, após o nascimento de Ronan em 1987, o primeiro e único filho biológico do casal, Woody passou a desempenhar a função plenamente, adotando legalmente Dylan e Moses, de forma que sua presença paterna estava inteiramente consolidada no lar de Mia.

O “comportamento inapropriado” de Woody

Em gravações de conversas telefônicas ilegalmente grampeadas, a atriz revela ao cineasta que sempre se preocupou com o comportamento dele com a filha mais nova deles. Amigos da família e ex-funcionários corroboram que Woody tratava a menina com uma espécie de idolatria, que extrapolava seu papel de pai, bem como chegaram a presenciar atos impróprios antes da separação oficial do casal em 1992.

Caisey Pascal, amiga da família, começou a perceber que havia algo errado com a “intensidade” de Woody sobre Dylan quando notou que a menina se afastava dele, o que foi atestado por outros membros da família, que testemunharam como Dylan foi se tornando mais e mais retraída com o passar do tempo — especialmente quando Allen chegava em casa.

Allen v. Farrow

Mais próximo de Dylan por terem idades parecidas, mas ainda uma criança na época, Ronan Farrow lembra de notar que quando estavam brincando juntos e Woody chamava a filha para sair, ela ficava tensa e tentava fugir, chegando a verbalizar que “não queria ficar com o papai”. E, apesar de não saber como contextualizar esse comportamento à época, atualmente entende como o modo de agir da irmã era um sinal de que algo sério vinha acontecendo. Além disso, Dylan se recorda — apenas vagamente — de como Woody a abraçava na cama usando apenas cueca, apertando seu corpo contra o dela, mas descreve com muita vividez um acontecimento perturbador onde ele a ensina a chupar seu dedo:

“Eu me lembro… De me sentar com ele nos degraus da casa de campo. Não havia ninguém por perto e ele estava me ensinando a chupar o dedo dele. Dizendo o que eu tinha que fazer com a minha língua e… Acho que aquilo durou um tempo. Pareceu muito tempo.” 

A ex-namorada de Fletcher Previn, Priscilla Gilman, adolescente à época, conta que presenciou um desses acontecimentos e Woody chegou a dizer que isso a “acalmava”; além disso, diz que via Dylan querendo se esconder do pai quando ele chegava, mas inicialmente pensou que se tratava de uma brincadeira entre eles. Contudo, o que Tisa Farrow, irmã da atriz, testemunhou num dia de verão, quando as crianças brincavam na praia do lago, foi muito mais grave e definitivamente abusivo:

“Mia deu o protetor solar para o Woody e ele estava passando nas costas de Dylan… Minha mãe estava lá também… As mãos dele desceram até o meio das nádegas dela, meio que ficaram um tempo ali, e de um modo sugestivo… Tenho que dizer ‘sugestivo’ porque é isso o que era. Ele colocou entre as nádegas dela e tirou. A Mia também viu e tomou o protetor solar dele.”

Na produção fica claro como Mia estava relutante em acreditar que todos esses pequenos momentos significassem que algo pior estava acontecendo e tentou de todas as formas evitar que os sinais se concretizassem, desde colocar Dylan na terapia devido ao seu comportamento retraído, pois vivia “triste, isolada e com medo” até fazer Woody concordar em ir à terapia para tratar o “comportamento inapropriado”, que mantinha em relação à filha.

Segundo a atriz, a especialista que o cineasta frequentou por um tempo assegurou que aquela “intensidade” poderia parecer sexual aos olhos de terceiros, mas se tratava do jeito dele de demonstrar afeição, especialmente por nunca ter tido contato com crianças. Todavia, apesar de tentar seguir em frente com sua relação e com a família que tinha construído em todos aqueles anos, especialmente por se deixar envolver tanto com a persona Woody, Mia continuava com a sensação de que algo estava errado:

“Comecei a me sentir uma policial, indo até ele e pensando: ‘será que vou ver algo que não deveria estar acontecendo?’ Uma vez, estávamos todos sentados no chão, então ele deu um tapa na mão dela. E perguntei ‘porque você fez isso?’ E ele disse ‘ela estava agarrando meu pênis’. Então, eu estava consolando Dylan, mas ao mesmo tempo pensando ‘porque uma menininha faria aquilo?’”

Então, o ano de 1992 chegou e, com ele, o maior drama vivido pelos Farrow até então: a descoberta do caso de Woody Allen e Soon-Yi.

A relação de Allen e Soon-Yi

Em janeiro de 1992, Mia foi até o apartamento onde Allen vivia em Nova York sem avisar. Ele não estava em casa, mas o que ela encontrou foi muito pior do que isso: fotos nuas de sua filha, Soon-Yi, que na época tinha cerca de 21 anos, as quais a atriz descreve não apenas como sensuais, mas realmente vulgares “como as que se via Playboy” (nas palavras dela). A realidade do envolvimento entre o cineasta e Soon-Yi a deixou sem chão, pois todo o tempo deixa explícito como o amava na época, expressando esse sentimento de maneira que parece tê-la tornado dependente da persona de Woody na época.

“[…] Ao lado do telefone, à direita, estava sua pilha de fotos polaroid, de fotos pornográficas de uma mulher, uma menina. E eu as peguei e percebi que todas eram de Soon-Yi. Era minha própria filha. […] Eu lembro de lutar para respirar, sabe?”

Segundo relatos da família, os dois nunca pareceram próximos e o caso pegou todos de surpresa. Woody chegou a relatar em seu audiobook que, por muito tempo, foi indiferente à presença de Soon-Yi na casa e que, quando eles ficaram repentinamente mais próximos, a enxergava como uma “aventura” que acabaria dali um tempo, embora o relato da jovem seja diferente: apesar de realmente não rotularem o relacionamento naquele tempo, Soon-Yi chegou a afirmar que estava apaixonada já após o primeiro beijo.

Nessa época, o cineasta tinha 56 anos e a diferença de idade entre ele e Soon-Yi era de 35 anos. Além disso, Woody começou a frequentar a casa de Mia quando ela tinha apenas dez anos e, ainda que se repita exaustivamente na imprensa que ela “era a filha adotiva de Mia” para diminuir o peso do acontecimento, ele era seu padrasto, pai de seus irmãos mais novos, fazia parte daquele núcleo familiar, apesar de negar a responsabilidade parental.

Sempre foi ponto de dúvida entre os Farrow, contudo, o período de tempo em que o caso veio a acontecer, uma vez que, apesar de Woody e Soon-Yi afirmarem que só começou quando ela tinha 21 anos, funcionários do prédio em que ele morava chegaram a testemunhar no julgamento de custódia pela guarda das crianças que a jovem frequentava o local bem antes disso: o porteiro e o zelador contaram que a viam visitar o apartamento de Woody há muito tempo e a camareira depôs no mesmo sentido, contando que havia encontrado manchas de sêmen e camisinhas usadas após Soon-Yi sair do apartamento no período em que ainda estava na escola.

Allen v. Farrow

Segundo o documentário, essa não foi a primeira vez que o cineasta se envolveu com uma mulher bem mais jovem — ou, possivelmente, menor de idade. A modelo Christina Engelhardt detalha que se relacionou com Woody dos 17 aos 23 anos. Segundo conta, ele não parecia estar interessado em sua idade e ela não fez questão de dizer, era uma situação de silêncio mútuo entre eles. Ainda, ele chegou a confirmar que a personagem de Mariel Hemingway em Manhattan, uma garçonete de 17 anos que se envolve com o personagem de Woody (42), era inspirada nela e no que viveram, transformando-a em uma espécie de musa.

Porém, Engelhardt frisa que, na época, era uma pessoa mentalmente fragilizada, traumatizada por um passado de violências sexuais cometidas por pessoas próximas, então seu sentimento mais latente era não saber em quem podia confiar, admitindo também que isso a prejudicou em seus relacionamentos quando adulta e a tornou uma mãe super protetora.

Woody soava confiável, assim como os personagens que ajudaram a criar uma aura de inofensivo em torno do cineasta. No entanto, ao mesmo tempo em que escrevia esse tipo de personalidade para si mesmo, tantas vezes repetidas em suas dezenas de filmes, escrevia protagonistas muito mais jovens, mulheres esperando para serem desvendadas por esse “eu-compreensível” de seus protagonistas. A própria Mariel Hemingway, que é neta do conceituado escritor americano Ernest Hemingway, detalha em uma entrevista à revista The Daily Beast em 2020 sua relação com o diretor:

“Aquele filme me colocou no mapa. Quer dizer, me tornou uma atriz e me fez querer atuar. Eu vivi uma época maravilhosa filmando aquele filme e Woody Allen foi maravilhoso comigo. Ele gostava de mim. Sim, ele gostava de mim. Apesar disso, eu não tive um relacionamento com ele. Eu não queria e ele respeitou isso. Eu era muito jovem, realmente jovem — mais jovem do que a garota que estava interpretando no filme. […] Eu não conheço mais Allen e minha experiência com ele não foi essa coisa obscura. Sim, eu era uma jovem mulher. E sim, ele gostaria de ter estado comigo? Sim, mas eu era muito nova…”

Ainda, comenta um episódio em que o cineasta foi até sua casa pedir autorização aos seus pais para que pudesse viajar com ele a Paris logo depois das filmagens de Manhattan:

“Sim, ugh… Eu estava tipo ‘Não vou para Paris com você, porque não acho que vou ter meu próprio quarto’ […] As pessoas podem interpretar isso de diferentes maneiras, mas eu fui respeitosa quando disse ‘não, não posso fazer isso porque não está certo’, então ele foi embora. O que foi triste pra mim, na época, porque eu sentia que ele me achava inteligente e todas essas outras coisas, [então] pareceu que estava perdendo um membro da família ou um amigo. […] Eu disse ‘Isso não pode acontecer’ e isso foi respeitado — e assim foi com Allen. Mas… Certamente julgo essas coisas. Eu não aprovo um homem idoso perseguir garotas de 16 anos, principalmente porque garotas de 16 anos são realmente crianças. E, ainda que eu me achasse super inteligente e expansiva, nunca tinha tido um namorado — ou dormido com alguém. Então… Eu não sabia no que eu estava entrando. “

Conforme os jornalistas entrevistados para o documentário, o cineasta repete o mesmo padrão de relacionamento entre homens mais velhos e mulheres jovens em alguns de seus filmes, explorando isso de diferentes maneiras. Por isso, ainda que o relacionamento com Soon-Yi tenha sido uma bomba familiar, era como se Allen estivesse a todo o tempo preparando seu público, acostumando sua mentalidade, para esse momento em que a vida — como que inevitavelmente, da forma que as coisas acontecem na ficção — o levaria a esse relacionamento extremamente desproporcional e, no caso, moralmente questionável porque há um nítido fascínio por mulheres mais jovens.

Fato não abordado na produção é que, para além da dedicação quase que integral para com a família, o que tornava conveniente que Mia e Woody trabalhassem frequentemente juntos (o que resultaria em treze produções em parceria), a atriz já passava dos quarenta anos, uma idade muito distante daqueles trinta e poucos de quando começou a se relacionar com o cineasta e bem mais distante dos 21 de Soon-Yi. Não seria de surpreender que esse detalhe tenha contribuído para a propensão dele em buscar essa nova “aventura”, uma vez que parece enxergar a vida real como algo tão lúdico e manipulável quanto o cinema, tornando-a sua própria peça pessoal, onde não teria de arcar com as responsabilidades da realidade ordinária, como a paternidade e a família.

Allen v. Farrow

Além disso, Mia conta que a relação dela com Soon-Yi sempre foi conturbada, em partes pelo fato de a menina ter sido adotada mais velha, vinda de um lar onde a mãe biológica tinha problemas. Soon-Yi não deixava que Mia se aproximasse e criasse um vínculo maior de afinidade. Após a descoberta da relação com Woody, a atriz admite que, durante uma discussão que teve com a filha, chegou a dar um tapa em seu rosto.

Soon-Yi, por outro lado, já deu declarações na mídia de que Farrow era constantemente agressiva, utilizava os filhos mais velhos como babás para os mais novos e estava longe de ser a mãe-modelo que aparentava, uma versão contestada pelos outros filhos de Mia. No entanto, após os primeiros momentos de crise, houve uma reunião de família descrita por Priscilla Gillman para que todos fossem ouvidos e onde se mostraram dispostos a “aceitar” Soon-Yi de volta, mas a jovem se recusava a falar e apenas chorava.

Nesse ponto, em uma falha documental que adentra a falta de detalhes de meses sobre como a presença de Woody foi aceita de volta na casa da família, tudo o que se conta é que Soon-Yi nunca voltou para a casa e, embora com tensões, uma vez que os filhos de Mia não costumavam estar por perto quando ele se encontrava, o cineasta continuou a manter contato com seus filhos — Dylan, Ronan e Moses — até agosto daquele ano, quando tudo mudou.

4 de agosto de 1992: o dia do sótão

Ninguém sabe o que aconteceu ou como aconteceu. O que se tem é a versão infantil de Dylan Farrow, na época com sete anos; de Woody Allen, que sempre negou qualquer tipo de abuso; e das profissionais que cuidavam das crianças naquele dia.

Naquela tarde, Mia Farrow saiu para fazer compras com uma amiga e o cineasta chegou logo depois para ficar com a filha. A babá da amiga da família, Alison Stickland, contou em depoimento no processo de custódia das crianças, que viu Woody com Dylan na sala de TV em uma posição considerada descrita por eles como “adulta demais” para uma criança estar envolvida: de joelhos no chão, ele mantinha a cabeça no colo dela, com a boca muito próxima às suas partes íntimas, olhando diretamente para a menina sentada, a qual apenas olhava para o nada.

Durante cerca de vinte minutos, essa foi a última vez que pai e filha foram vistos. Quando a babá dos Farrow percebeu que Dylan e Allen não estavam à vista, começou a procurá-los pela casa e, inclusive, passou pela sala de TV mencionada antes, mas não os encontrou nem ouviu nada em qualquer cômodo à vista. A versão é a mesma da professora de francês, Sophie Bergè, que afirma não ter visto a menina com as outras crianças do lado de fora.

No dia seguinte, a amiga da família ligou para Mia contando o que sua babá presenciou, fato que foi confirmado pela criança, que emendou a tensa história do sótão. De acordo com Dylan, depois do episódio na sala de TV, Woody levou a menina para o cômodo inutilizado da casa e mais isolado naquele dia de verão e, nas palavras veementes de uma Dylan adulta, abusou sexualmente dela. A atriz conta que notou — e estranhou — ao chegar das compras, que a filha usava um vestido, mas estava sem calcinha. Após saber do acontecido, Mia ainda foi conferir com a própria babá, Kristi Groteke, se havia espaço para um acontecimento daquele tipo naquela tarde, o que a profissional confirmou, tanto naquele momento quanto à justiça, posteriormente.

Ciente de que precisava fazer alguma coisa, mas também de que a terapeuta que fazia o acompanhamento de Dylan não estaria na cidade até que o verão terminasse, Mia conta que teve a ideia de filmar o que a filha havia contado e o que segue abaixo é a transcrição de vídeos do dia 5 de agosto de 1992, em que a atriz pergunta à filha o que aconteceu e como aconteceu, como se para confirmar a história, verificar se não havia inconsistências, como que esperando e até desejando que nada daquilo fosse real, pois, segundo ela, tinha esperanças de que a babá dissesse que pai e filha estiveram à vista o tempo todo e aquilo era um engano. Porém, Kristi Groteke nunca deixou de afirmar que eles haviam sumido por aquele tempo.

Dylan: A gente foi até o seu quarto e foi até o sótão. Ele ficou falando coisas estranhas. Ele foi escondido até o sótão, veio por trás de mim e me tocou lá embaixo.
Mia: Ele tocou na parte da frente?
Dylan: Sim. Ele pôs a cabeça dele no meu colo, me abraçou forte e aí.. E aí ele… Ele enfiou uma mão escondido… Daqui e até aqui [ela coloca a mão na região das nádegas] e me tocou lá embaixo. Não gostei nada daquilo.

[…] 

Dylan: Quando eu estava no sótão ele disse: “não se mexa. Tenho que fazer isso.” Então, eu mexi o bumbum pra ver o que ele estava fazendo e ele “não se mexa, tenho que fazer isso. Se você ficar parada, então podemos ir para Paris”.

[…]

Mia: Dylan, conta pra mim, de novo, o que aconteceu. Me conte pra eu saber direitinho. 
Dylan: Ele me levou para o sótão… Ele me tocou… Ele tocou lá embaixo. Aí, ele estava respirando na minha perna. Foi quando ele me apertou tanto que não consegui respirar…

[…]

Mia: Ele disse porque você não poderia contar?
Dylan: Ele disse “porque assim você pode fazer meu filme, se eu fizer isso’. Eu não queria que ele fizesse isso, mamãe”.
Mia: Eu sei, é claro que não.
Dylan: Eu não gostei.  
Mia: Não. Eu me sinto muito mal por você.
Dylan. Eu não gostei. Eu também não quero falar sobre isso. 
Mia: Vamos parar de falar e desligar isso.

Embora Dylan não pareça compreender a gravidade do que narra, é capaz de discernir que aquelas são suas “partes privadas” (como ela mesma repete), assim como o desconforto e o fato de que há algo errado naquilo tudo, algo que foge ao comum da relação entre pai e filha e que vai de encontro à inocência com que fala.

Segundo Camila Lobato, “O abuso sexual infantil é qualquer envolvimento de uma criança ou adolescente em uma atividade sexual que ela não compreende, nem consente, podendo ser com um adulto, ou entre uma criança, ou adolescente que devido à idade ou o grau de desenvolvimento está em uma relação de confiança, poder, coação e sedução com a criança abusada, nem sempre estando ligada a um ato violento, podendo ser beijo e toque lascivo, que não deixam marcas visíveis, o que dificulta a comprovação”.

Todas essas características podem ser identificadas na narrativa da criança, desde o fato de se tratar de um membro da família, à forma como Woody, segundo as testemunhas, se aproveitou de esperada falta da compreensão da família ante ações abusivas que vinham de tempos antes e como se utilizava até de sua profissão para justificar aquilo, como uma retribuição para algo lúdico que, provavelmente, era antecipado pela filha — ir a Paris, participar de um filme seu, etc.

Ou seja, é importante não perder de vista que eles realmente faziam viagens em família, e que ainda se trata de um diretor renomado que poderia deixar que ela participasse de seu filme, uma vez que até Soon-Yi, com quem supostamente tinha pouco contato, apareceu como figurante em uma de suas produções nos anos 1980. Woody ainda era o cineasta tanto durante, quanto depois dos acontecimentos, e ele fez questão de não se esquecer desse detalhe, nem deixar que o público o esquecesse.

Na mesma semana, a atriz resolveu levar a filha ao pediatra, para quem detalhou novamente o que se tem em vídeo — ainda que receosa — que seu pai a havia tocado em suas partes privadas. Contudo, atendendo ao seu dever profissional ante as descrições da criança menor de idade, o médico relata tudo à polícia e os acontecimentos, que daí em diante, se tornam realmente midiáticos.

Justiça vs. mídia

A partir da denúncia à polícia, 1992 efetivamente se torna o ano do caos para os Farrow. A imprensa toma conhecimento do comunicado à polícia, imediatamente tornando Woody e a família alvo de perseguições públicas. Tudo avança muito rapidamente: ao mesmo tempo em que o cineasta abre um processo em Nova York pela guarda dos três filhos com Mia — Moses, Ronan e Dylan —, também torna público seu caso com Soon-Yi, mudando radicalmente sua postura ante a cobertura midiática.

De personalidade de hábitos muito discretos, que vivia sua vida de modo privado camuflado à realidade urbana de Nova York, quase que num status mitológico tal era sua relação com a cidade, Woody Allen começa a repentinamente se deixar disponível para revistas e programas de TV onde fala abertamente sobre a acusação de Dylan, e, constantemente, alimenta a narrativa de que Farrow teria treinado a filha deles para que inventasse as acusações por vingança, em razão de sua relação com Soon-Yi, além de lamentar a falta de contato com a filha.

Uma investigação se inicia no estado de Connecticut, onde ficava a casa de campo da família Farrow, e Allen se torna efetivamente suspeito de abuso sexual infantil, ainda que perante as autoridades muito mais do que para a imprensa. A produção detalha como a equipe de relações públicas do cineasta travou uma guerra de informações por meio dos veículos de mídia da época, de maneira que pudesse manipular o público e não deixar que a imagem de Woody — boêmio, genial e inofensivo — fosse comprometida, escrutinando o aspecto de vilania de Mia, afinal que mulher não estaria com raiva depois de uma traição como aquela, dentro de sua própria casa?

Para tirar o foco da acusação mais grave, Woody e Soon-Yi foram transformados num caso de “amor impossível”. Assim, cinematograficamente, pois eles “não conseguiam se manter longe um do outro” e ela era apenas “filha de Mia”, como se não fosse parte da família e não houvesse algum grau de convivência entre eles, especialmente quando ele se torna pai de seus irmãos. Assim, o elemento do amor é usado como uma ferramenta de captação de simpatia do público, especialmente quando se conta que o cineasta, até aquele momento, não encarava a relação com Soon-Yi de forma tão romântica, surpreendendo até a jovem quando disse a uma revista — e não a ela — que a amava.

Enquanto isso, investigações realmente relevantes seguiam no mundo fora das revistas e tabloides. Dylan passa a ser excessivamente interrogada, testemunhas são ouvidas, a residência da família é esquadrinhada pelas investigações para cruzar informações com os depoimentos tomados, fotógrafos e redes de notícia passam a cobrir o local com frequência, buscando declarações dos envolvidos. Woody, por sua vez, convoca uma coletiva de imprensa para negar qualquer tipo de acusação, o que também fazia via telefone para Mia. Entretanto, quando perguntado o que fez com Dylan durante aqueles fatídicos vinte minutos do dia 4 de agosto, o cineasta nunca teve uma resposta e parecia culpar a atriz por toda a exposição que a investigação causou à família, como fica claro na transcrição de uma das inúmeras conversas por telefone com ela, grampeadas:

“Eu não sabia que os médicos tinham que reportar às autoridades. Eu não sabia. Só queria ter certeza de que ela estava bem. Mas ela não está bem, Woody. Ela anda pela casa segurando a vagina dela. Ela está dormindo comigo. Ela está com medo de você e você a machucou. Também me sinto culpada por não ter protegido minha menina. Ela disse: ‘Mamãe, você não me ajudou. O papai não deveria ter feito aquilo. Não deveria ter me machucado daquele jeito.’ Se tivesse ouvido, você ia chorar por dentro e desejaria estar morto. Não sei como consegue conviver com o que fez.”

Como parte das investigações que corriam em Connecticut, Mia concordou que Dylan fosse examinada pelos profissionais da clínica especializada em abuso sexual infantil Yale-New Haven, com a condição de que o relatório serviria apenas para a polícia e não se tornaria público. A conclusão dos especialistas da renomada clínica, após nove exaustivas entrevistas com a menina, foi de que sua versão era inconsistente e de que frequentemente confundia a realidade com imaginações fantasiosas, não havendo meios de afirmar que havia realmente sido vítima de violência sexual.

Diante disso, Woody quebra o pacto e convoca outra coletiva de imprensa para ler parte do exame, insistindo que aquela era a prova cabal de sua inocência. Não há como negar que o Relatório da Yale-New Haven caiu como uma bomba na opinião pública, de forma que a palavra de Dylan perdeu força ante o atestado de profissionais renomados que contestavam suas afirmações. Mia, por sua vez, teve de recuar, como se a narrativa de Woody sobre a mulher desprezada que inventara uma história de abuso sexual contra a filha houvesse se concretizado. Ainda assim, a investigação em Connecticut não estava finalizada e a menina foi sujeitada a novos especialistas em uma condução de caso totalmente inadequada: uma vez que existe uma suposta vítima envolvida no imbróglio, a orientação profissional é de que esta não sofra novos traumas pela burocracia pós-denúncia. Mesmo a condução pelos profissionais da Yale-New Haven são consideradas atípicas e inapropriadas, pois a repetição não serve para confirmar a versão, como inicialmente se pensa, mas para confundir. Em se tratando de uma criança de sete anos, incapaz de compreender totalmente o acontecido e respondendo incessantemente às mesmas perguntas, os profissionais entrevistados pelo documentário afirmam que chega um ponto em que a divagação ocorre como forma de tentar agradar o entrevistador nas respostas.

Em detrimento disso, os três especialistas da polícia atestaram a consistência da história contada por Dylan, concluindo que havia motivos razoáveis para afirmar que houve “estupro de vulnerável e abuso sexual por contato físico” com elementos suficientes para sustentar um mandado de prisão, o que dependeria do promotor de justiça, Frank Maco Jr., assim como o prosseguimento da ação. Também no ano de 1993, a Corte de Nova York dá início ao julgamento do processo pela guarda dos filhos do casal, onde efetivamente foram ouvidos todos os envolvidos no caso, desde familiares até funcionários e amigos da família. Embora não televisionado diretamente de dentro do tribunal, o caso foi intensamente coberto pela mídia: à imprensa, Woody reforçava seu desejo de se reconectar com os filhos, com quem não tinha contato desde agosto do ano anterior, o que ia de encontro ao pouco interesse que até então havia demonstrado ao papel de pai ou à constituição de uma família, além de reforçar as acusações contra a índole de Mia Farrow.

Dessa vez, fora das capas de revista, do jogo midiático e da influência do cineasta nos diversos âmbitos da cidade em si, o julgamento realmente foi capaz de levantar dúvidas sobre o comportamento de Woody Allen. Embora não estivesse no mérito a parte criminal do caso referente às investigações sobre Dylan, que ocorriam em Connecticut, o juiz Elliot Wilk deu sua sentença após dez meses, comentando o contexto daquela custódia:

“Eu concordo com Dr. Herman e o Dr. Brodzinsky de que, provavelmente, nunca saberemos o que ocorreu em 4 de agosto de 1992. O testemunho credível da Sra. Farrow, do Dr. Coates, Dr. Leventhal e do Sr. Allen, no entanto, provam que o comportamento do Sr. Allen foi grosseiramente impróprio e que medidas devem ser tomadas para protegê-la. […] Não está claro se o Sr. Allen um dia desenvolverá o entendimento e o juízo necessários para se relacionar com Dylan apropriadamente. […] Não fiquei convencido de que o vídeo de Dylan seja um produto de indução ou da fantasia da criança. […] Não há provas confiáveis que provam a alegação do Sr. Allen de que a Sra. Farrow treinou Dylan ou que agiu sob desejo de vingança contra ele por ter seduzido Soon-Yi. O recurso de Allen ao estereótipo de ‘mulher desprezada’  é uma tentativa imprudente de desviar a atenção de sua falha por não agir como um adulto e pai responsável. […]”

O juiz concedeu a guarda das crianças inteiramente à Mia, proibindo qualquer contato do cineasta com Dylan e o condenando a pagar as despesas jurídicas da atriz em mais de um milhão de dólares. Embora houvesse tentado apelar em instâncias superiores, foi entendido que havia indícios suficientes de que houve abuso sexual, portanto, não havia o que se discutir quanto à custódia das crianças.

No entanto, Allen tinha o relatório da Yale-New Haven a seu favor, o qual, apesar de contestado na Corte, ainda ressoava na mente do público de forma que as acusações rapidamente foram deixadas de lado em razão da pesada campanha midiática do cineasta. Além disso, após o término das investigações no estado de Connecticut, o promotor Frank Maco Jr., que dá seu depoimento à produção da HBO, concluiu que, apesar de causa provável para o crime, havia muito espaço para que fossem levantadas dúvidas razoáveis sobre o caso, que essencialmente dependia apenas da palavra de Dylan, aos sete anos, perante um júri de desconhecidos, o que somente a causaria maiores danos psíquicos sem garantias de que Woody fosse realmente punido.

Dessa forma, as investigações foram arquivadas e Woody nunca foi, de fato, legalmente acusado de abuso sexual infantil.

Pós-1993: o paradoxo de Hollywood

Até 2018, Woody Allen fez vinte e sete filmes, premiados, reconhecidos e aclamados. Os acontecimentos de agosto de 1992 e os desdobramentos seguintes não mudaram em nada seu ritmo de trabalho: os estúdios estavam prontos para produzir as ideias do lendário cineasta, bem como as estrelas prontas para serem garotas Woody Allen, um título que acompanhou mulheres como Diane Keaton, Scarlett Johansson, Cate Blanchett, a própria Mia Farrow, além da última e talvez mais infeliz delas, Selena Gomez.

Foi apenas com o boom do Movimento #MeToo e Time’s Up em Hollywood, que o caso de Dylan Farrow ganhou repercussão novamente. “Por que Harvey Weinstein vinha sendo tão condenado, enquanto Woody Allen continuava a ser constantemente celebrado pela obra de sua vida sem qualquer mancha em sua imagem, como se nada houvesse acontecido nos anos 1990?”, questionava a filha de Mia, já adulta, em um artigo de revista, reforçando a história que havia contado em 1992.

Até então, as acusações tinham ficado no passado, quase que como um mal entendido, e ninguém podia acreditar que um homem tão espirituoso e aparentemente inofensivo quanto Woody, literalmente um gênio em sua arte, fosse capaz de algo desse tipo: Scarlett Johansson, ao longo dos anos, foi uma das atrizes que mais deram suporte ao cineasta, dizendo que havia perguntado diretamente a ele se havia, de fato, feito aquilo, e ela acreditava em sua versão; Javier Bardem, em 2021, disse que nada foi legalmente provado sobre Woody para que ele fosse condenado por todos — o mesmo sentido da resposta de Cate Blanchett e Alec Baldwin.

Porém, talvez a maior defensora de Woody tenha sido Diane Keaton, que foi sua namorada por cerca de três anos, além de musa em suas obras mais expoentes, e ao longo do tempo usou seu espaço para reiterar o apoio ao amigo de longa data. Em 2014, após receber um Globo de Ouro honorário em nome do cineasta, Ronan Farrow alfinetou no Twitter:

“Perdi o Tributo a Woody Allen — eles mencionaram a parte em que uma mulher adulta confirmou publicamente ter sido molestada por ele aos 7 anos antes ou depois de ‘Annie Hall’?”

O jornalista e filho do ex-casal foi um dos responsáveis por apoiar a irmã, Dylan, na empreitada contra o pai deles. Ainda criança à época, contou que sempre se negou a ouvir a versão de Dylan até perceber como o fato de ter sido silenciada, enquanto a vida de Woody seguia normalmente, a machucava.

Depois de sentarem, conversarem e chorarem (segundo seus depoimentos à produção da HBO), Ronan passou a usar seu espaço na mídia para questionar o silêncio da imprensa sobre as acusações da irmã, anos antes de sua reportagem sobre Harvey Weinstein para a revista The New Yorker em 2017 — “De Abordagens Agressivas à Assédio Sexual: As Vítimas de Harvey Weinstein Contam Suas Histórias” — jogar uma luz sobre diversas acusações de assédio sexual a um dos nomes mais poderosos de Hollywood, o qual esteve diretamente envolvido com as produções dos projetos de Allen pós-1993 por meio da Miramax e da Weinstein Company, tendo dito à época: “A rejeição de Hollywood não significa nada para nós, estamos falando do gênio da comédia”. 

Pela matéria, Ronan ganharia o renomado prêmio Pulitzer por excelência jornalística, mas também abriria espaço, ao lado de colegas repórteres, para outras histórias de mesmo teor ganharem o foco necessário após muitos anos do que alega ser uma “cultura de cumplicidade” que impera em Hollywood e envolve nomes em todos os tipos de posições (mídia, política, cinema, televisão), agindo como uma rede de proteção aos problemáticos do meio, como o próprio Weinstein, Bill Cosby e Roman Polanski.

Dessa vez, como se a mentalidade social houvesse mudado nesses cerca de vinte e cinco anos, a história de Dylan foi ouvida e diversas estrelas repentinamente notaram que vinham trabalhando com um homem sobre quem pairava alguma dúvida de sua conduta moral e legal. A versão não esclarecida de 1992 sob as consequências dos movimentos feministas modernos ganha mais peso e os nomes que, antes, chegaram a defender Allen em ocasiões anteriores reviram suas opiniões.

Além de Natalie Portman, Rebecca Hall, Elliot Page, Timothée Chalamet e outros, esse é o caso de Kate Winslet, que não apenas trabalhou com o diretor em Roda Gigante (2017), como também com Roman Polanski, o qual confessou ter violentado sexualmente uma menina de 13 anos nos anos 1970 após um acordo que o livrava de acusações mais graves — antes da sentença, porém, o diretor fugiu para a França e nunca mais retornou aos Estados Unidos para não ser preso. Em 2020, a atriz se diz arrependida dos trabalhos:

“O que diabos eu estava pensando trabalhando com Woody Allen e Roman Polanski? É inacreditável para mim, agora, pensar como aqueles homens foram respeitados tão amplamente na indústria cinematográfica por tanto tempo. É vergonhoso pra caralho! E tenho que assumir a responsabilidade pelo fato de ter trabalhado com os dois. Eu não posso voltar no tempo. Estou lutando com esses arrependimentos, mas o que seria de nós se não fossemos capazes de sermos apenas verdadeiros sobre tudo isso?”

Ainda que haja alguma má-fé em questionar terceiros — especialmente mulheres — sobre o “comportamento inapropriado” de um colega ou superior, tentando raivosamente responsabilizá-los pelos atos dessa pessoa enquanto esta sai relativamente ilesa, é possível notar o quanto o modus operandi de Hollywood realmente funciona sob a política de cumplicidade ao analisar como todos relutaram, tanto em 1992 quanto em 2018, em apontar os holofotes do questionamento para um homem com a reputação de Woody e para um homem que, em algum momento, foi responsável por alavancar grandes nomes e carreiras.

Ainda que com alguns anos de atraso, esse tempo acabou e, para ele, foi profissionalmente devastador.

O desfecho

Sob a influência dos movimentos feministas pós-2018, o último filme do cineasta, A Rainy Day in New York (2019), estrelado por Selena Gomez, Elle Fanning, Jude Law e Timothée Chalamet, foi banido dos cinemas dos Estados Unidos e um acordo milionário com a Amazon Studios foi quebrado, fazendo-o enfrentar uma série de dificuldades para encontrar financiamento para seus projetos, demonstrando a importância que a pressão da opinião pública faz aos homens que sempre usaram seu poder em benefício próprio.

As alegações de que Mia Farrow teria treinado Dylan para inventar as acusações e prejudicar Woody surtiram efeito a longo prazo e parecem ter permanecido na mente do público ao longo dos anos, bem como dos grandes estúdios, pois, após ter sua carreira monopolizada e moldada por anos de projetos do cineasta, a atriz não conseguiu engatar outro filme de relevância depois de todos os acontecimentos.

Em 2020, a produção da HBO convidou três especialistas que analisaram as gravações da criança. A psicóloga especializada em abuso infantil, Anna Salter, nota que a menina vai se fechando cada vez mais ao repetir a história,“uma progressão bem típica para uma criança que sofreu abuso, nem tanto para uma acusação falsa, [pois] acusações falsas tendem a ficar mais fortes sob pressão”. Ademais, observa que a filha do casal tinha personalidade bem delineada o bastante para não ser sugestionável:

“Mia Farrow, na verdade, foi bem cuidadosa com as perguntas. Tudo que ela questionou foi ‘quem, o que, quando, onde e como’. Ela não sugeriu nada do tipo “ele molestou você, não molestou?” Não houve esse tipo de treinamento ali, mas sugestões implícitas… Uma que eu vi, Mia Farrow acreditava que ele devia ter tirado a calcinha da criança, então ela perguntou: “Ele tirou suas calcinhas?” Bem, Dylan diz não, e ela volta ao assunto novamente. […] Então, na minha opinião, o importante é a resposta de Dylan. Ela fica sugestionada? Do tipo “Sim, ele tirou minha calcinha”? Ela não fica. O importante não é o que o entrevistador diz, mas se a criança é influenciável ou não. E Dylan diz ‘não’ para coisas assim. Ela é bem consistente com a história dela.”

Ainda hoje, no entanto, o tratamento da mídia é, no mínimo, paternalista e condescendente. Diferente do que consta em sua página no Wikipédia, Allen não foi inocentado após as investigações de Connecticut: havia elementos de crime, mas também uma criança de sete anos que teria de ser levada a depor perante um júri, o que poderia causar uma dúvida razoável que, de fato, inocentaria o cineasta no caso de um julgamento. Ou seja, não houve uma sentença que fincasse um “inocente” em sua reputação, mas um pesado jogo midiático para utilizar os elementos investigativos, como os poucos indícios do caso, ao seu favor.

Além disso, várias reportagens parecem convenientemente esquecer que Dylan não era apenas filha de Mia Farrow, mas também de Woody Allen — legalmente, socialmente, afetivamente. Tal fato ser deixado de lado retira o peso de todos os acontecimentos da saga familiar Allen v. Farrow, exatamente como aconteceu quando o caso com Soon-Yi se tornou um romance e a jovem deixou de ser enteada de Woody para ser “a filha adotiva” da atriz, uma forma de tornar a narrativa menos condenatória.

Embora o cineasta tenha mudado sua versão na época, sempre negou todas as acusações e, em 2020, emitiu uma nota por meio da assessoria de imprensa em conjunto com sua esposa desde 1997, Soon-Yi Allen, sobre a produção da HBO:

“Os documentaristas não tinham interesse na verdade. Em vez disso, passaram anos colaborando sub-repticiamente com os Farrow e seus facilitadores para montar uma machadinha repleta de mentiras. Woody e Soon-Yi foram abordados há menos de dois meses e receberam apenas um par de dias para responder. Claro, eles se recusaram a fazê-lo. Como se sabe há décadas, essas alegações são categoricamente falsas. Várias agências as investigaram na época e descobriram que, independente do que Dylan Farrow possa ter sido levada a acreditar, absolutamente nenhum abuso aconteceu. Infelizmente, não é surpreendente que a rede para transmitir isso seja a HBO — que tem um contrato de produção e relação comercial com Ronan Farrow. Embora essa obra de má qualidade possa ganhar atenção, ela não muda os fatos.”

De fato, é legítima a alegação de que, como peça documental, a produção não se esforça para ser imparcial. Contudo, não se pode fechar os olhos para a estatística que rodeia os casos de abuso sexual infantil: no Brasil, segundo o Ministério da Saúde, 92% dos casos investigados são verdadeiros, enquanto apenas 8% são versões induzidas por terceiros. Ainda, o órgão atesta até 2018, que quase 70% dos abusos infantis ocorrem em casa, sendo que cerca de 37% são praticados por familiares.

“Esse tipo de abuso deforma algo dentro de você, porque ele não acontece com um desconhecido que te pega e te joga dentro de uma van. Ele acontece com alguém que você ama, alguém que você confia, alguém que aperta o seu cinto de segurança, dá a mão pra você quando anda na rua, lê histórias pra você na hora de dormir… É incompreensível para pessoas normais, porque não é normal!” — Dylan Farrow

O judiciário brasileiro segue o entendimento de que em crimes de natureza sexual, a palavra da família tem especial relevância em comparação a outros casos, pois ocorrem de forma clandestina, sem testemunhas e sem deixar vestígios. Ainda assim, essa é uma orientação firmada quase trinta anos depois das acusações de Dylan, demonstrando como a palavra da vítima — mulher —, de todas as idades, historicamente é descreditada em comparação à versão masculina de uma mesma história e como o status quo da vítima inerte sempre foi socialmente menos prejudicial, tanto pessoalmente quanto aos demais envolvidos quando se denuncia um homem.

Se esse homem for seu pai e Woody Allen ao mesmo tempo, a justiça se torna distante a ponto de o ato prescrever execrando a distância que o discurso mantém da vida real ao deixar clara a relutância em priorizar a mulher traumatizada devido à carreira, genialidade e influência dele. Enfim, mais um dia em Hollywood.