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O Miniaturista: Petronella Oortman e a força da mulher numa família

Minha trajetória como leitora começou, como muitas pessoas da minha geração, com Harry Potter e, a partir de então, não parou mais. Depois foi a vez de Diário da Princesa e, logo depois, veio Percy Jackson. Entre um universo e outro, percebi que uma forma de valorizar mulheres era consumir mais livros escritos por elas.

Foi assim que peguei a obra que me ensinou tanto e me fez sair completamente do meu mundo. Não conhecia os trabalho de Jessie Burton até então — escritora e atriz londrina que ama uma boa história. O Miniaturista, livro de sua autoria lançado em 2014, é baseado em pessoais reais e a casa de bonecas que faz parte da história atualmente encontra-se no museu holandês de Rijksmuseum. Em sua obra, a autora utiliza dados história e transforma a história da família Brandt numa narrativa misteriosa.

Ambientada na Amsterdã dos anos 1686, O Miniaturista se passa em um contexto em que a burguesia e o clero detinham a maior parte da fortuna e poder, e as mulher serviam somente para o status de um casamento de luxo. Em casa, essas mulheres eram donas do seu lar, passando atividades aos criados, mas nunca se metendo nos negócios do marido. Uma noite carinhosa entre o casal tampouco era uma realidade: a mulher só era tocada para o deleite do homem e, muitas vezes, nem eram lembradas quando esses esposos tinham amantes.

“Por dois anos, Nella treinou para ser uma dama. Adquirira uma nova postura ao andar, embora reclamasse de que não tinha para onde ir e sentisse pela primeira vez vontade de fugir do vilarejo, ignorando o vasto céu, enxergando apenas uma prisão bucólica que já desenvolvia finas camadas de poeira. Com um espartilho recém-apertado, ela ensaiou o alaúde, movendo os dedos elegantes pelas cordas, preocupada com os nervos da mãe apenas o suficiente para não se rebelar. Em julho deste ano, as sondagens da mãe entre os últimos contatos de seu marido na cidade finalmente encontraram terreno fértil.”

Nella Oortman, protagonista do livro, é uma jovem de 18 anos que foi convidada a se casar com Johannes Brandt, um comerciante famoso e muito rico. Petronella, como se chama de fato, vinha do interior e sonhava em subir ao altar, em ter uma noite de núpcias e encontrar no marido um melhor amigo. Porém, ao chegar na nova casa, ela encontra Marin, sua cunhada e dona suprema da casa, que não deixa Nella agir ou opinar sobre nada. A jovem começa a entender a dinâmica familiar ao ver que Marin não era casa, que eles tinham dois criados e que seu marido estava sempre ausente, em viagens de negócios.

Nella se sente sozinha na maior parte do tempo e iludida pela perspectiva de uma vida melhor após o casamento. Então, notando que não estava cumprindo com seu papel de marido, já que estava constantemente ausente, Johannes presenteia Nella com uma casa de bonecas que é uma representação da sua própria casa em miniatura. Ao dá-la à Nella, diz ainda que essa era sua casa e que ela poderia mobiliá-la como quisesse.

Depois de procurar um artesão capaz de fazer móveis tão delicados, Nella se depara com um nome e envia uma carta. A partir daí, surge uma conexão inimaginável entre Nella e o miniaturista que, mais tarde, ela vem a descobrir ser uma mulher de incríveis talentos. O único porém é que, mesmo sem fazer encomendas, móveis e bonecos continuam a chegar e sempre com um tom de premonição, dando dicas do que pode vir a acontecer dentro da casa. Contar além disso é entregar enredos que podem estragar a surpresa e emoções provocadas pela leitura. No entanto, O Miniaturista apresenta alguns pontos interessantes, que merecem ser analisados.

“Na primeira vez que Nella sangrou, aos doze anos, sua mãe lhe disse que o propósito daquele sangue era a ‘segurança dos filhos’. Nella nunca achou que houvesse motivo para se sentir segura, pois ouvia pelo vilarejo os gritos das mulheres sentindo as dores do parto, os caixões às vezes levados à igreja pouco depois.”

O primeiro deles é o contexto histórico e social no qual as mulheres do século XVII estavam inseridas. Suas funções, basicamente, limitavam-se a procriar e aos cuidados do marido e do lar. Mulheres que trabalhavam fora faziam serviços gerais ou então serviam apenas de fachada para maridos que fugiam do casamento. Elas eram escravas de um casamento arranjado e quase sempre infeliz, e não tinha para onde correr, já que esses eram os moldes que regiam a sociedade que viviam. As únicas que, talvez, fugiam à regra eram as esposas dos comerciantes, que tinham um status de riqueza e um pouco mais de autonomia, sendo sempre levadas a jantares finos e sendo admiradas por outras pessoas. A inveja, no entanto, construía uma disputa entre famílias, uma esposa e outra, que se rendiam ao desejo de possuírem sempre mais do que a próxima. Não é preciso dizer que esse era um ambiente de muita sororidade negativa.

Mas a amizade entre mulheres também ganha espaço em O Miniaturista: Nella e Cornelia, sua criada, constroem uma bonita e sincera relação. Cornelia é quem, afinal, lhe ensina a entender melhor como funciona a cidade grande. Com uma postura bastante segura para sua pouca idade e experiência de vida, Nella passa a descobrir mais sobre a nova família, sempre seguindo seus instintos. Ela possui sonhos e busca realizá-los, e é isso que a motiva a procurar cada vez mais por conhecimento — o que, por fim, a leva a adquirir inúmeros ensinamentos antes de chegar no clímax da história.

“Se a miniaturista é uma estranha professora que não vai parar, Nella sente-se uma aluna relutante. Falhou em entender o significado dessas aulas. Anseia por apenas uma peça que explique o que a miniaturista quer dela. Ao abrir o pacote, vê que só há um item.”

A educação das mulheres à época era podada e limitada ao que sua família conseguia (e considerava relevante) lhe ensinar. Se a moça vinha de uma família humilde, o aprendizado era ainda mais limitado, e muitas sequer sabiam ler. Contudo, o bardo e a pintura eram habilidades trabalhadas com cuidado, consideradas muito mais importantes, e era para isso que eram treinadas. Uma mulher que possuía mais conhecimento que um homem, por sua vez, era considerada metida e arrogante, uma verdadeira vergonha para a família e, principalmente, ao marido. Marin, irmã de Johannes, nunca se casou e, conforme descobrimos no decorrer da leitura, isso acontece porque ela não queria perder sua liberdade, não queria tornar-se submissa a um casamento de fachada e, também, pelos seus profundos conhecimentos sobre negociações.

São personagens femininas determinadas e destemidas,  e com essa volta ao mundo e no espaço-tempo de uma realidade extremamente machista, são elas que nos levam a viajar e refletir sobre toda a luta necessária para chegar ao aqui e agora, uma realidade que nos permite coisas que hoje parecem banais, como usar calças; e como a construção de uma sociedade não é sólida e eterna, mas que são necessários muito cutuques e discussões para remodelá-la. Foram necessárias muitas Petronellas para construir o mundo que conhecemos hoje e, se não fossem essas mulheres, talvez ainda estivéssemos sendo limitadas ao papel de esposas submissas que nos foi relegado por tanto tempo.


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