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A Mulher de Pés Descalços

“As obras de Scholastique Mukasonga são uma mortalha de papel para aqueles que não tem sepultura”. É com essa frase que começa a pequena sinopse presente na contra-capa de A Mulher de Pés Descalços, romance escrito pela autora ruandesa Scholastique Mukasonga em memória de sua mãe, Stefania. O livro foi publicado pela primeira vez em 2008 e trazido pela primeira vez para o Brasil em 2017, pela editora Nós, com tradução de Marília Garcia.

No prólogo, Mukasonga apresenta a motivação de seu livro: sua mãe constantemente chamava as três filhas mais novas para conversar e pedia insistentemente que elas cuidassem de cobrir seu corpo quando morresse pois ninguém deveria ver o corpo de uma mãe, e suas filhas deveriam cuidar de sua sepultura. Isso não foi possível. É então que, através das palavras, a autora procura se redimir e oferecer à mãe um sepultamento digno — mas ela faz muito mais que isso.

Em pouco mais de 150 páginas, Mukasonga consegue oferecer, assim como prevê a sinopse, uma digna mortalha de papel para outras mulheres de pés descalços, para muitas mães guerreiras como a sua. Sua história se passa durante a Guerra Civil de Ruanda e o contínuo medo de ataques que as as pessoas de etnia tutsi viviam. Durante sem dias de sombra, no ano de 1994, mais de 800 mil pessoas foram mortas por extremistas étnicos hutus, que vitimaram muitos de seus adversários políticos e membros da etnia minoritária tutsi à qual pertenciam a autora e sua família. O objetivo último de todas as mães era conseguir salvar os filhos, e o foco de Stefania não era diferente. Nos primeiros capítulos, a autora mostra a angústia constante da mãe e os diversos planos que fazia e revia com os filhos, todos os dias, para que eles conseguissem se salvar das invasões dos soldados — mesmo que para isso ela própria virasse uma vítima.

Após a introdução, a autora apresenta os costumes de seu povo, seus ritos, símbolos e, principalmente, à força indestrutível das mulheres. De tanto trabalharem com a terra, essas mulheres ficavam os os pés extremamente feridos e desfigurados. Para os padrões de beleza tutsi, seus pés eram um paradoxo: horrorosos à primeira vista, mas uma representação da força de uma mulher que não tem medo do trabalho e acabavam contando pontos para as que ainda buscavam o casamento. Para as meninas mais novas, como Mukasonga, que pôde frequentar a escola e conviver com meninas de outras etnias, os pés cansados eram motivo de escárnio. Ao contar a história, anos depois, no entanto, a autora se emociona ao pensar no assunto.

“E me parecia que, se eu pudesse chegar mais perto dos pés da Haute-Volta, também poderia ler as idades do mundo e remontar, de geração em geração, até chegar à mulher que foi a primeira e que, com as costas encurvadas e uma enxada nas mãos, abriu a terra vermelha da África. Mas eu era jovem e tinha muito medo. Olhei para os meus próprios pés e os sapatos de salto alto que Immaculée, minha amiga, tinha me dado em Kagali e percebi, com alívio, que meus pés ainda podiam entrar neles. Mas talvez agora eu possa beijar os pés de Haute-Volta e, certamente, os da minha mãe, os pés dessas amas de leite que tem a África como filho.”

A poética questão das mulheres serem as mães de todo o continente é bastante reafirmada durante a história. Mukasonga diz que, quando os soldados atacavam as mães, queriam destruir a origem, e que um dos maiores genocídios da guerra foi causado pela disseminação do vírus HIV por estupradores, que contaminavam as mulheres, que passavam, então, a serem vistas como impuras e portadoras da morte. Acontece que, mesmo consideradas portadoras da morte, as mulheres seguiam — e seguem — sendo as únicas portadoras da vida, e é por isso que, em Ruanda, também são consideradas as Mães-Coragem aquelas que encontravam sua força nos filhos de seus estupros. Ou seja, sua maior fonte de força acaba sendo, justamente, desafiar o propósito de seus assassinos. Muitas mulheres conseguiram sobreviver e preservar sua etnia e, por assim dizer, não há como pensar nas tantas mulheres de pés descalços que seguem, dia após dia, vencendo o mundo.


Nota da autora: Durante o texto, escolhi usar para identificar a autora o nome Mukasonga porque ele representa sua identidade. Scholastique era o nome de batismo, algo que se tornou necessário ao seu povo por causa da cristianização forçada; apenas as crianças que tinham nome de batismo cristão poderiam frequentar a escola e, por isso, a maioria delas o recebia. Mas Mukasonga, sim, é seu nome de verdade, o escolhido pelo pai e que traz sua simbologia. Falar de uma história que nos tira dos limites da história única também é respeitar sua individualidade e, portanto, admitir como mais importante o nome que representa sua verdadeira história.


** A arte do topo do texto é de autoria da nossa colaboradora Carol Nazatto. Para conhecer melhor seu trabalho, clique aqui!

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