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Esqueça as Helenas: Maria Eduarda é a maior criação de Maneco

Mimada, insegura e complexa, essa é Maria Eduarda, filha da Helena mais “fácil” de entender de Manoel Carlos, lendário autor de novelas da Rede Globo. As duas são protagonistas de Por Amor, novela exibida originalmente em 1997 que foi ao ar novamente em 2019. No multiverso localizado no Leblon habitado por Helenas, a Helena de Por Amor faz tudo da forma com que o título de sua história explicita, por amor, e não deixa muito para os espectadores pensarem. Em compensação, Maria Eduarda é provavelmente a personagem de Manoel Carlos com o maior crescimento já visto em uma novela do autor.

Helena e Eduarda são interpretadas por mãe e filha da vida real, as atrizes Regina e Gabriela Duarte, e talvez por isso o relacionamento entre as duas soe tão verdadeiro na tela. Os limites do amor de mãe e filha são testados até as últimas consequências quando, ao darem a luz no mesmo dia, Eduarda perde o bebê e Helena toma a difícil decisão de trocar em segredo o bebê morto pelo seu próprio. A filha, então, cria o irmão pensando ser seu primogênito.

Por Amor é a quarta grande novela solo de Manoel Carlos, conhecido como Maneco, e também a quarta com protagonista nomeada Helena, sua marca registrada. É a segunda Helena de Regina Duarte: a primeira veio dois anos antes em História de Amor (1995) e a terceira em Páginas da Vida (2006), uma década depois. Ambientada nos bairros nobres cariocas do Leblon e da Barra, a personagem representava a vida de mulheres da classe alta do Rio de Janeiro, outra grande característica das obras do autor.

A Helena de Por Amor é uma decoradora com ares de madame trabalhadora. Ela conhece o arquiteto Atílio (Antonio Fagundes) em Veneza durante uma viagem em conjunto com a filha. É Atílio quem reconhece Maria Eduarda, noiva de Marcelo (Fábio Assunção, em um papel enigmático). Ele trabalha na construtora do pai de Marcelo, Arnaldo (Carlos Eduardo Dolabella), e já havia visto Eduarda algumas vezes na empresa. Essas coincidências fazem com que seja interessante que Helena e Atílio tenham se conhecido não no Rio de Janeiro, nos círculos que costumam frequentar, mas sim num espaço completamente deslocado, em outro continente.

Mas é quando Eduarda e Helena voltam ao Brasil que suas vidas começam a estremecer. O noivado — e posteriormente o casamento — de Eduarda e Marcelo sofre constantes ataques da ex dele, Laura (Viviane Pasmanter), enquanto o relacionamento de Helena e Atílio é ameaçado desde o início por Isabel (Cássia Kiss), a atual namorada com quem mantém um relacionamento aberto, e Branca (Susana Vieira), melhor amiga de Atílio, com quem manteve um caso por anos, sabido por todo o círculo de amizades. Branca é ainda mãe de Marcelo, sogra de Eduarda.

É nesse turbilhão que Maria Eduarda, garota de 21 anos criada nos melhores colégios do Rio de Janeiro, tem que amadurecer. Superprotegida pela mãe, Eduarda sempre tem o que quer e não conhece as durezas da vida. As situações que podiam ter sido usadas para que ela amadurecesse foram cortadas cedo por Helena, que queria poupá-la de frustrações. Eduarda desconsidera o pai, Orestes (Paulo José), que é alcoólatra e desempregado, e se divorciara de Helena quando a filha dos dois tinha apenas quatro anos, ficando fora de sua vida dali em diante.

Tendo que assumir o papel de figura paterna e materna, Helena faz o melhor que pode para proteger a filha do mundo. O mundo cor de rosa em que Eduarda cresce, a infância feliz na Tijuca e a adolescência no Leblon, são construídos milimetricamente por Helena para evitar qualquer sofrimento da filha. Como Freud gostaria, é Helena a responsável pela imaturidade de Eduarda, ao não permitir que ela tivesse contato com dificuldades durante seus anos formativos.

Para seus objetivos de vida, talvez amadurecer antes de casar não fosse mesmo tão necessário — ao menos de acordo com o discurso da época. Afinal, Maria Eduarda iria sair da casa da mãe, rica, para a casa do marido, também rico. O que ela tinha que saber eram coisas da sociedade, como ser uma boa esposa, e não a ter a própria personalidade, ir atrás dos próprios sonhos. É por isso que o início de seu casamento com Marcelo é tão conturbado.

Maria Eduarda: insegura

Maria Eduarda vive verdadeiros tempos de terror psicológico durante os primeiros meses de casamento. Ela é pressionada pelo marido e pela família dele para que tenha um filho. A pressão é tão grande que ela não apenas perde o bebê em sua primeira gravidez, como acredita realmente que aquela é sua única função no casamento: dar um filho homem a Marcelo.

Esse sentimento é reforçado pelos constantes comentários da sogra, Branca, que, levada pelos ciúmes que sente de Atílio, culpa Helena pela dificuldade da nora em engravidar. Eduarda quer a aprovação de Branca e por isso engole os desaforos calada. Isso pode ser observado até mesmo no figurino da personagem, que sempre usa cores neutras e se anula na presença da sogra. A criação de Eduarda a fez extremamente insegura, buscando aprovação de todos a sua volta.

Quando finalmente engravida, Eduarda vê Marcelo se afastar; no dia programado para o parto ele está viajando e não chega a tempo do nascimento do próprio filho. Após o nascimento de Marcelinho, que na verdade é seu irmão, Eduarda começa a perceber o peso da responsabilidade de ser mãe. Ela não consegue amamentar a criança e pede constantemente a ajuda da mãe, que tem leite — por motivos óbvios. Marcelo não apenas se afasta da esposa como ignora o filho pequeno, ficando sempre irritado com Eduarda nas inúmeras vezes em que ela não consegue fazer a criança parar de chorar. Marcelo passa a frequentar bares e a passar mais tempo na casa dos pais, sem se fazer presente no apartamento com a esposa e o filho. A presença constante de Helena também estremece a relação dele com Eduarda, enquanto ele é envenenado pela mãe contra a sogra.

A verdade é que Eduarda sempre foi considerada uma sombra da mãe, mesmo pela própria Helena. Ao trocar os bebês, Helena toma mais uma vez uma decisão por Eduarda. Ela decide que a filha não sobreviveria à perda da criança e à descoberta de que não poderia mais engravidar, já que seu útero teve que ser retirado logo após o parto. Em momento algum Helena consulta Eduarda sobre nenhum assunto, subestimando a força psicológica e física da moça.

A necessidade da presença de Helena faz com que Eduarda seja dependente da mãe em um momento que deveria criar o filho com seu marido. As constantes interferências de Helena provam que ela ainda acha Eduarda imatura e fraca. Essa presença também não permite que ela evolua, e faz com que continue uma menina. Eduarda, que tem pena da mãe por ter perdido um bebê, permite que ela transfira o amor e o leite materno para Marcelinho, mantendo-se sempre por perto.

Ao mesmo tempo, Helena não se dá conta das consequências da troca de bebês. Ela continua tratando Marcelinho como seu próprio filho, se achando no direito de agir como mãe da criança. Porém, a partir da troca, ela não é mais mãe dele, ao menos para todos os efeitos, e não deveria agir assim. O estranhamento dos Motta (Branca e Marcelo) com a dinâmica de Helena e Eduarda para com Marcelinho tem fundamento, mesmo que seja retratado de forma exagerada e dramática.

Ironicamente, é no momento em que Eduarda se separa de Marcelo e vai morar sob o mesmo teto que a mãe que as duas finalmente se encaixam nos papéis de mãe e avó de Marcelinho, respectivamente. A proximidade com Helena faz com que Eduarda imponha limites que antes eram ultrapassados e põe Helena em seu lugar de vó.

Maria Eduarda: mimada?

Eduarda é firme em sua decisão de se separar do marido. Esse é um assunto que corre entre os amigos e parentes das duas famílias e a moça é categorizada como mimada por não querer Marcelo de volta e não aceitar as propostas de reconciliação. Eduarda questiona as próprias decisões, principalmente a de resolver se casar tão jovem com um homem controlador que não a via como um indivíduo.

A vontade de seguir em frente com sua vida sem Marcelo é revisitada constantemente. Eduarda quer voltar a estudar, coisa que o marido a havia convencido não ser necessária. Ela quer arranjar um emprego. Sua resolução de não ter vínculo algum com Marcelo é firme e a faz rever opções que antes pareciam impossíveis. O dinheiro que Marcelo a oferece está fora de questão, e assim, na casa da mãe, Eduarda parece reiniciar sua vida, colocada em pausa logo após seu casamento. Essa liberdade é tida como arrogância pelos que a cercam, exceto por sua mãe.

Ao mesmo tempo, a mesma atitude de se achar no direito de ter tudo que se quer é vista como um traço positivo de personalidade em Milena (Carolina Ferraz), irmã mais nova de Marcelo. A filha de Arnaldo e Branca não quer se casar com alguém de seu círculo social. Apaixonada por Nando (Eduardo Moscovis), enfrenta a mãe para ficar com o piloto, mesmo quando ela monta um esquema atrás do outro para separar a filha do moço. A grande diferença entre Milena e Eduarda é a segurança da primeira. Milena sempre foi segura em tudo que fazia, pois, apesar da indiferença da própria mãe, desde pequena teve o apoio incondicional do pai. Enquanto Helena sufocou Eduarda com amor a ponto de torná-la insegura buscando aprovação de todos, o desprezo de Branca por Milena fez com que ela se tornasse segura quase a ponto da arrogância. Milena tem tudo o que quer, e sabe que se quiser mais é só ir e pegar; não espera permissão para ter nada.

O amor de mãe e a complexidade das relações entre Milena e Branca e Eduarda e Helena são intrínsecas aos personagens. Elas servem ao roteiro da novela, mas não existem por causa dele. São construções pessoais do autor para cada personagem, um reflexo de sua visão enviesada de mundo e principalmente das mulheres, culpadas por tudo que acontece sem que o papel social das mães seja tratado da maneira complexa que o assunto merece. É sabido o machismo de Maneco em suas novelas, principalmente em Laços de Família (2000), e as relações entre mãe e filha nas duas tramas seguem padrões extremos traumáticos de ódio supremo ou amor obsessivo.

Branca e Helena afirmam constantemente que seus atos são motivados por amor a suas filhas. Porém, esse amor é desprovido de equilíbrio, não tem lógica e não é baseado na racionalidade, e na novela é associado a estereótipos negativos da figura feminina. Mulheres são tidas como descontroladas, emocionais demais. Mas é Marcelo, por exemplo, quem agride Eduarda e Laura durante os diferentes períodos em que se relaciona com as moças.

Marcelo: o Barba Azul

Eduarda não conhecia os verdadeiros hábitos de Marcelo antes de se casar. As constantes brigas do casal por conta da negligência dele e da ajuda impertinente de Helena no apartamento culmina na agressão física de Marcelo em Eduarda. Ela revida também, deixando-o desmaiado. Depois de uma segunda tentativa de agressão, ela foge com o filho para a casa da mãe.

Enquanto está separado, Marcelo se envolve com Laura por uma noite, e é aí então que fica claro aos telespectadores que Eduarda não tinha ideia de quem era o homem com quem estava se casando. Numa conversa com Laura, a “vilã” afirma que durante seu longo relacionamento com ele sempre foi do tipo morde e assopra: “O Marcelo é assim, dá um tapa e um beijo”. É sabido também que Marcelo traía Laura constantemente.

“Nunca nenhum homem levantou a mão pra mim, nem meu marido, nem meu pai, nem ninguém. Eu não nasci pra apanhar, Laura. Eu nasci pra ser amada, respeitada!”, Eduarda grita em resposta. É assim que o lado mais forte da personalidade de Eduarda vem à tona. É no período de separação que descobrimos quem ela é de verdade, ao se impor para qualquer um que tente subestimá-la, seja Laura ou Marcelo. Se antes ela era fraca, submissa e insegura, com a separação Eduarda se revela uma mulher que não aceita ser agredida de forma alguma, seja física, psicológica, ou verbalmente.

A redenção de Marcelo se inicia quando ele descobre quem a esposa é de verdade. Ao entender que Eduarda não pode ser controlada, que tem seus próprios pensamentos, que age de maneira independente dele, Marcelo começa sua própria jornada de crescimento, que acompanha amadurecimento completo da esposa. O crescimento lento e os esforços de Marcelo para reconquistar Eduarda, além da mudança gradual de personalidade dele, são necessários para que o público não apenas tolere a relação, mas torça para que os dois terminem juntos e sejam felizes.

Antes arrogante e mimado, Marcelo se transforma em um homem que presta atenção nos outros a sua volta. Isso é visto não apenas na nova relação melhorada com Eduarda, mas também no jeito modificado com que trata os irmãos mais novos. Se antes os ignorava, ele passa defendê-los e a tomar seu lado em discussões contra Branca. Vira também um pai presente para Marcelinho, tomando como exemplo seu próprio pai Arnaldo, além de construir uma boa relação com Atílio, sua segunda figura paterna.

Ao insistir em seu mocinho, Manoel Carlos teve que construir uma redenção lenta e gradual, mas que ao final faz sentido na trama e deixa Eduarda e Marcelo mais bem resolvidos com suas próprias personalidades e ambições, e também em seu relacionamento como casal. O crescimento e amadurecimento de ambos faz com que os dois cheguem mais longe juntos, apesar do passado de altos e baixos.

Eduarda e Helena 20 anos depois

O mundo era outro em 1997. Em 20 anos, a percepção de como ser mulher e de como mulheres devem ou não agir mudou de forma quase radical. A personagem de Maria Eduarda, percebida na época da exibição original como mimada, insegura e arrogante mesmo depois da virada, agora é vista como uma mulher decidida, que sabe o que quer. Vai atrás da própria felicidade sem se abalar com opiniões alheias. Defende o que acredita com unhas e dentes, ou melhor, sopapos.

Nesse tempo Eduarda se transformou de personagem secundária a protagonista. Não só seu enredo é mais relevante hoje em dia, mas também suas ações são mais parecidas com as das mulheres do século XXI. E já que o balanço de toda telenovela é a mocinha ter sua vilã, a vilã de Eduarda é forjada pela situação.

Helena, mãe, protetora e amiga, acaba inconscientemente se tornando a pior vilã da própria filha. Depois de metade da trama, a protagonista passa a ter traços quase similares aos de uma psicose para manter seu segredo. Ameaça a todos que descobrem para que não revelem a verdade a Atílio e Eduarda, e manipula emocionalmente as pessoas a seu redor para manter o segredo. Helena faz com que Eduarda construa sua felicidade na base de uma mentira e ainda faz outros personagens de cúmplices.

Ao fazer de tudo para guardar o segredo, Helena acaba por evitar conflitos de todos os tipos durante a trama, com vários personagens. Eduarda assume o lugar que era da mãe. Mas ao ver a filha amadurecendo, aos poucos Helena vai ganhando sua personalidade de volta. O equilíbrio entre mãe e filha na reta final é nítido. A relação delas é forte o bastante para se manter firme mesmo com tantos abalos. Isso só é possível porque Eduarda se descobriu segura de si.

“Crescer dói. Ai… ai, quando eu ouvia essa frase achava uma… achava uma bobagem. Mas incrível como ela se aplica direitinho a minha vida, sabe? A cada dia que passa eu cresço um pouco, mas sempre na base da pancada, do sofrimento”, diz Eduarda. Por Amor é a história do crescimento da menina boba em mulher. Apesar de todo o sofrimento pelo caminho, Eduarda se transforma na pessoa completa que está destinada a ser.

Esse “coming of age” da personagem fica claro ao se analisar a obra por completo. É Maria Eduarda a verdadeira estrela da novela; uma mocinha a frente de seu tempo. Com intenção ou não, o autor construiu Eduarda como personagem inserida em um momento com um público que não estava preparado para ela. Seu crescimento e desenvolvimento contínuo e coerente faz com que ela seja um dos personagens mais complexos criados pelo autor, apesar de sua própria visão de mundo machista. Acaba sendo também uma das atemporalidades de Maneco, mais apreciada no futuro do que no passado, e por isso sua maior criação.

2 comentários

  1. Ótimo texto, vendo a novela de forma completamente diferente agora. Se fosse refeita hoje em dia de certo Eduarda realmente ganharia status de simbolo feminino nas telenovelas e exemplo de construção narrativa.

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