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Britney Spears: dias de luta, dias de Glory

Não dá pra falar de Britney Spears sem falar sobre todas as narrativas que fazem parte de sua vida. O fato de serem tantas começa a explicar a longa e complicada história da princesa do reino do pop que foi do ponto mais alto ao ponto mais baixo de sua carreira e agora tenta (de novo) um retorno através de Glory, sugestivo — e apropriado — título de seu novo álbum, lançado na última sexta-feira, 26 de agosto.

Acho que ela conseguiu — mas, antes, vamos dar uma folheada nesse livro de histórias.

Desde os anos 60 a cultura pop vive de criar ícones a partir da imagem de artistas e o que eles podem simbolizar para a sociedade em cada momento. Essas fases fazem parte da narrativa midiática dessa personalidade, construída através de seu trabalho e de sua vida pessoal. Entendo como narrativa midiática a forma como a mídia costura essas duas coisas.

Nesse jogo, Britney Spears é um exemplo perfeito de como se constrói — e se destrói — um popstar. Em 18 anos de carreira, vimos  Britney evoluir da ninfeta entediada de …Baby One More Time até a estrela completa que três anos depois surgiu no palco do VMA com uma cobra nos ombros. Ela tinha 12 anos quando entrou para o Clube do Mickey, 17 quando lançou o primeiro disco e 21 quando terminou de ser deflorada diante de todos nós. “In The Zone”, seu quarto álbum, é explicitamente sexual e nos apresenta a Britney Spears que no VMA de 2003 encenou um casamento com Madonna, a grande rainha do pop, união selada por um beijo que vai ficar registrado para sempre no grande livro de contos de fada da cultura pop.

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Digo conto de fadas não apenas por causa do modelo de família real — com Madonna e Michael Jackson no topo, Britney Spears como sucessora do trono e Beyoncé prestes a instituir um golpe de Estado —, mas como uma referência aos contos de fada clássicos, que misturam fábulas, horror à tragédia. Depois de ser construída, moldada e de passar por diversas identidades — todas elas muito baseadas em sua sexualidade e na forma como era explorada os olhos do mundo — Britney Spears sofreu um colapso público.

Ela  se divorciou, perdeu a guarda dos filhos, destruiu o carro de um paparazzi, raspou a cabeça, se apresentou no VMA completamente fora de si, e foi flagrada em tantas situações que renderiam — e renderam — capas escandalosas de revistas que não surpreende o fato de que, no infame ano de 2007, Britney foi a celebridade mais fotografada do mundo inteiro. Sua decida em espiral para o fundo do poço era acompanhada por todos como uma série de TV, e a situação chegou num ponto em que pessoas faziam apostas na internet tentando adivinhar quando Britney Spears iria morrer.

A cultura pop está cheia de histórias de loucura, fama e excesso, e várias delas acabaram assim. Por que com Britney seria diferente?

Falando assim parece que a cantora passou toda sua carreira sendo vítima das circunstâncias, uma marionete nas mãos de agentes e produtores, sem o menor controle sobre seu trabalho e sua história. Não é bem assim. Prova disso é que foi também em 2007 que ela lançou Blackout, considerado pela crítica o melhor álbum de sua carreira. É mesmo o seu disco mais forte, o que ela está mais presente e também o mais lúcido.

“I’m Miss American Dream since I was 17
Don’t matter if I step on the scene
Or sneak away to the Philippines
They still gonna put pictures of my derrière in the magazine
You want a piece of me?
You want a piece of me”

“Sou a Miss Sonho Americano desde os 17
Não importa se estou em cena
Ou fugindo para as Filipinas
Eles vão continuar colocando fotos da minha bunda nas revistas
Você quer um pedaço de mim?
Você quer um pedaço de mim”

“Piece of Me” é sobre sua turbulenta relação com a imprensa: durante toda a música, Britney fala sobre a sedução dos flashes e de como a mídia está pronta para amá-la ou destruí-la de acordo com a vontade do momento. Ela também provoca, dizendo que no fim do dia ela ainda é a estrela, com carreira, filhos, dinheiro e uma vida própria, enquanto eles vão estar sempre correndo atrás de pedaços dela para sobreviver. Isso não quer dizer que ela saia ilesa dessa briga — o colapso é uma prova disso —, mas mostra que Britney entendia muito bem o que estava acontecendo.

Britney For The Record é o documentário que ela lançou em 2009, numa tentativa de dar a sua versão da própria história. Logo no início, Britney diz que todo mundo está falando sobre ela, mas ninguém está disposto a parar pra ouvir o que ela tem a dizer. Respondendo abertamente às perguntas sobre o ano de 2007, ela assume e reconhece vários problemas e escolhas erradas que marcaram o período, mas fala também que muito disso — como o ato de raspar a cabeça — foi como uma libertação, um ato de rebeldia, a reação depois de ter passado tantos anos sendo fotografada, assistida, acusada, cobrada, exposta. Não preciso nem entrar no mérito de que Justin Timberlake ou qualquer outro artista homem de mesmo porte jamais passou por algo parecido, certo?

Num perfil sobre a cantora de 2008, a então jornalista da Rolling Stone, Vanessa Gregoriadis, escreve:

“Ela é inteligente o suficiente para entender o que o mundo queria dela: que ela fosse criada como uma virgem para ser deflorada diante de nós, para nossa diversão e encantamento. Ela não tem vergonha de sua nova persona — ela quer que a gente saiba o que fez com ela. Pode ser verdade que Britney sofra de uma manifestação adulta de uma doença mental genética (ou uma doença criada pela fama, ainda a ser nomeada); ou que ela seja uma ‘habitual, frequente e contínua usuária de drogas’, como o juiz declarou; ou que ela seja um enigma de inúmeras camadas, não se engane — ela está curtindo o caos que está criando.” (tradução nossa).

2007 passou, Britney não morreu, e estava na hora de virar a página: desde Blackout, foram três álbuns lançados, todos anunciados como “O Retorno de Britney Spears”, outra narrativa clássica do mundo do entretenimento. No entanto, nem Circus, nem Femme Fatale e nem Britney Jean foram trabalhos substanciais o suficiente para sobreviver para além do apelo do comeback, que se extinguia logo que o disco era lançado. Ainda que tenham sido sucessos de venda e rendido alguns hits — já é hora de dar a Till The World Ends o reconhecimento que lhe é direito — nenhum conseguiu tirar Britney do limbo pós-2007.

Em seu documentário, Britney conta que não gosta quando dizem que ela está retornando, porque isso significaria que ela deixou de existir enquanto esteve ausente da mídia, sendo que na verdade ela continuava cuidando de sua vida.

Eu e um amigo temos essa piada interna que é sempre dizer “enquanto isso a Britney lá” sempre que algo de grandioso acontece no mundo pop. Lemonade? Taylor x Kimye? Feminismo? Black Lives Matter? Enquanto isso, Britney está lá: sendo flagrada com um enorme café pra viagem, curtindo os filhos, usando uma cauda de sereia na piscina de casa para entreter a afilhada, satisfeita com seu show em Las Vegas — responsável, aliás, por revitalizar o mercado de artistas residentes na cidade e acabar com a ideia de que Vegas é o cemitério das estrelas.

E tudo bem, sabe? A gente não brinca com maldade, e sim com carinho. Enquanto Britney estava lá, cuidando da sua vida, ela estava também se recuperando, se reconstruindo. Não podemos esquecer que antes de ser uma artista ela é um ser humano, e seu colapso foi narrativo, mas também foi muito real, como são reais os transtornos mentais e os problemas com drogas. Foi tudo de verdade, e acredito que é preciso muita força e coragem para se colocar de pé, de novo e de novo, depois de tudo isso.

Por isso Glory. Disse no início do texto que o título desse novo álbum era sugestivo e apropriado pois glória é um substantivo atribuído a feitos heroicos, a exaltação por uma conquista extraordinária. Acho que depois de tudo pelo o que Britney Spears passou, chegar em 2016 com um bom disco pop é motivo de glória. Todo esse tempo em que esteve cuidando de sua vida serviu para que agora ela tenha parecido tão presente, centrada e certeira como em In The Zone e Blackout, de onde Glory parece ter saído como filho dileto. Dá pra ver que ela está se divertindo com a música que faz (“That was fun!”, ela diz ao final de “What You Need”) e por isso a gente se diverte junto.

Britney brinca com novos ritmos e sonoridades e trabalhou com vários produtores diferentes para diversificar o seu som. A gente consegue escutar ecos de Selena Gomez (ou ouvimos Britney Spears no Revival de Selena Gomez?), The Weeknd e Justin Bieber, como uma prova de que ela andou fazendo o dever de casa para saber o que os jovens estão ouvindo, mas sem nunca perder de vista suas marcas registradas. Estão todas lá: os gritinhos agudos (como o delicioso “Oops!” de “Clumsy”), as risadas entre os versos, os sussurros sensuais e, claro, a vozinha robótica que conhecemos e amamos. “Clumsy”, “Do You Wanna Come Over?” e “If I’m Dancing” são os momentos em que a mistura funciona melhor, mas mesmo quando ela perde o rumo de casa, com as estranhas “Private Show”, “Love Me Down” e “Coupure Électrique”, cada uma a sua maneira, as músicas funcionam porque ainda assim são divertidas, ninguém aqui está falando realmente sério. Deixa a menina brincar com reggae e falar em francês.

Num momento em que o pop nunca esteve tão político, conceitual e autoral, faz falta uma narrativa mais consistente para o disco ou uma inovação que não apenas faça com o que o álbum soe atual, mas que o torne único em seu momento. Ao mesmo tempo, alguém tem que fazer aquele disco divertido sobre festa, amores furtivos e sexo sem compromisso. Glory chega para preencher essa lacuna e ser esse disco sexy, chiclete e viciante, quase que a definição acadêmica de música pop, para que ninguém nunca mais reclame que não se faz mais pop para rebolar o bumbum e ser feliz nos dias de hoje.

Há 18 anos é isso que Britney Spears faz por nós e é aqui que sua estrela se prova novamente: o motivo que nos leva a continuar prestando atenção depois de tantos anos, confiando em seus retornos, torcendo por eles. Britney Spears não teria chegado aqui se não fosse Britney Spears, the one and only. Foi um caminho longo, mas ela chegou. Glorifiquemos.

2 comentários

  1. OBRIGADA pelo seu texto!
    Independente de eu ser fã da Britney, não consigo entender as críticas pesadas que fazem a ela e que não levam em conta todo esse “background”. Claro que por eu ser fã doi mais, mas mesmo que não fosse eu ficaria chocada com o que leio por aí. Assim como fico chocada com comentários agressivos que leio sobre outras divas pop, mesmo que eu não goste delas. É questão de empatia e sensibilidade lembrar de tudo o que a Britney passou, o quanto a mídia foi injusta e cruel com ela, e daí entender e valorizar o seu processo de superação.

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