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A Noiva Fantasma: até que a morte nos separe

“Certa noite, meu pai me perguntou se eu gostaria de me tornar uma noiva fantasma.” É assim que começamos a mergulhar nesse mundo sobrenatural criado por Yangsze Choo em seu primeiro romance, A Noiva Fantasma. Mesclando ficção com antigos costumes malaios, a autora conseguiu produzir um livro que te prende do começo ao fim enquanto trata de temas como amor, vida e o que há depois que você atravessa o véu para o mundo dos mortos.

Atenção: este texto contém spoilers!

Sempre fui fã de histórias de fantasia e sobrenatural, portanto colocar as mãos em um livro que reúne as duas coisas e ainda costura tudo com a cultura do povo malaio, que eu pouco conhecia, transformou a experiência de leitura em algo ainda mais prazeroso. Gosto quando, além de entreter, o livro em questão consegue me fazer explorar e passear por uma realidade que não é a minha — seja dando uma voltinha pela fictícia (será?) Planície dos Mortos ou aprendendo um pouco mais sobre Malaca, cidade portuária de Malaia, nome histórico da Malásia antes da independência.

Com a frase do primeiro parágrafo, somos introduzidas à história da noiva fantasma, a protagonista Li Lan, uma jovem de 17 anos que vê sua vida virar do avesso ao receber tão curiosa proposta. Existe, realmente, a tradição popular chinesa de casar alguém com um fantasma, ou promover casamentos entre fantasmas, como forma de tranquilizar espíritos ou aplacar assombrações. No caso de Li Lan, no entanto, a proposta de casamento com o espírito de Lim Tian Ching, herdeiro da rica família Lim, vem atrelada a salvação de sua própria família que se encontra em dificuldades financeiras desde que os negócios de seu pai começaram a ir de mal a pior. Após contrair varíola e perder a mãe de Li Lan para a mesma doença, seu pai se viciou em ópio e praticamente deixou de prestar atenção aos negócios da família esquecendo-se, inclusive, de pensar em um casamento para a filha. Na sociedade extremamente patriarcal malaia do século XIX, era responsabilidade do pai, ou parente homem mais velho, tratar desse tipo de acordo para o bem da filha ou protegida.

“É uma possibilidade. Alguém que morra de amor pode retornar como uma assombração.”

Li Lan encontra-se em idade de casar e as únicas opções para uma jovem moça sem fortuna são o bom casamento (financeiramente falando) ou transformar-se em amah, que são as babás ou acompanhantes na criação de crianças de grandes casas malaias. Li Lan, apesar disso, não sente a menor inclinação a um casamento arranjado com um espírito, principalmente por estar apaixonada por Tian Bai, primo do falecido Lim Tian Ching. A família Lim, por sua vez, vê no casamento fantasma uma maneira de realizar os ritos de ancestralidade, visto que Lim Tian Ching, o filho mais velho da família, morreu sem esposa ou descendentes. Para a família de Li Lan, o casamento é a saída das dívidas e a certeza de um futuro tranquilo, assegurado pela fortuna da família Lim.

Embora não seja mais parte de uma família rica, Li Lan recebeu uma educação diferenciada para uma menina, principalmente por parte do pai que, mesmo com as dificuldades, a ensinou a ler e escrever. Mas isso não assegurará que ela tenha um futuro estável ou que possa conquistar coisas por si própria, já que a sociedade malaia não vê muita serventia para meninas instruídas. Algumas, de famílias muito ricas, podem até mesmo estudar no exterior — no caso, na Inglaterra ou em Hong Kong — mas a maior parte das meninas, no entanto, é treinada desde muito jovem para ser mãe e esposa. Li Lan, como não poderia fugir à regra, também cresceu com tais propósitos mas não aceita se casar com um espírito mesmo que isso garanta seu futuro.

Com a negativa em mente, Li Lan começa a ter sonhos estranhos com o espírito de Lim Tian Ching que, revoltado com a recusa da proposta, passa a assombrar a menina. Ele começa a aparecer em seus sonhos tentando encantá-la com as riquezas de sua família, porém Li Lan é firme em sua decisão. O espírito de Lim Tian Ching torna-se cada vez mais irritadiço e violento por conta da recusa, assombrando Li Lan o tempo todo. A menina, desesperada por encontrar paz, consulta-se com uma médium que receita um pó feito de ervas para que o sono possa ser tranquilo e sem intromissões. Porém, em uma noite de desespero e assombrada por Lim Tian Ching mais uma vez, Li Lan aumenta a dose da medicação por conta própria e acaba caindo em sono profundo. Quando desperta, não está mais em seu corpo: transformou-se em espírito.

“Eu, que fora tão bem educada por meu pai para não acreditar em espíritos, confessava para mim mesma, no calar da madrugada, que amah estava certa. O fantasma de Lim Tian Ching entrava em meus sonhos.”

No entanto, Li Lan não está morta — ainda. Enquanto seu corpo tenta se recuperar da medicação em excesso, seu espírito se desprendeu e encontra-se suspenso entre o mundo dos vivos e dos mortos. Por mais que se esforce, Li Lan não consegue retornar, o que a deixa cada vez mais assustada pois agora, na condição de espírito, transformou-se em uma presa ainda mais fácil para Lim Tian Ching. Sendo assim, ela decide ir em busca de respostas, e aí começa a segunda parte de sua trajetória, agora no mundo dos mortos.

O tempo em que Li Lan passa no mundo dos mortos, correndo por entre espíritos errantes e raivosos, trombando com fantasmas mesquinhos e orgulhosos, foi essencial para o crescimento da personagem. Ela tem que descobrir por conta própria como fazer para retornar a seu corpo, além de transitar por um plano espiritual que, embora tão similar com o mundo dos vivos, é cheio de armadilhas e momentos assustadores para um espírito que ainda não morreu e encontra-se em suspensão. Li Lan, que inicia a trama tão ingênua e protegida, descobre possuir uma força e uma coragem que antes ela sequer poderia imaginar.

Li Lan é, sim, uma heroína romântica, porém Yangsze Choo não utiliza de estereótipos para caracterizá-la. Apesar de sentir medo diante sua nova condição de espírito, a força e impetuosidade de Li Lan permanecem e ela vai adiante, buscando os meios necessários para descobrir como retornar para seu corpo e se livrar da assombração de Lim Tian Ching. Ainda que a protagonista conte com a ajuda de um personagem masculino em alguns momentos, é por sua conta e risco que ela tenta desvendar o esquema em que está envolvida no mundo dos mortos, investigando por conta própria o que a família Lim tem a ver com sua situação e a verdade a respeito da morte de Lim Tian Ching. Li Lan está inserida em uma sociedade extremamente machista, mas seu crescimento pessoal nessa jornada ao mundo dos mortos será o ponto de partida para que se liberte de tais amarras, decidindo o que quer fazer independente do que lhe diz o costume.

“Rangendo os dentes, disse a mim mesma que não o chamaria, mesmo que isso fosse possível. Eu era orgulhosa demais para isso; eu me resgataria sozinha.”

A narrativa de Yangsze Choo não decepciona e encaixa-se perfeitamente com a trama sobrenatural. Mesclando o mundo real com o fantasmagórico, além de polvilhar tudo com as crenças e mitos chineses, a autora criou uma trama coesa e difícil de largar. O poder de descrição de Choo é preciso: ela consegue caracterizar com cuidado cada aspecto da cultura malaia, demonstrando os costumes e superstições de um povo conectado com o sobrenatural. É muito interessante entregar-se aos costumes fúnebres tão diferentes dos nossos, aprender um pouco a respeito das cerimônias, as queimas de oferendas para os espíritos e a lenda que um fio conecta uma vida à outra, um destino ao outro.

Outro ponto interessante na construção da trama de A Noiva Fantasma se relaciona com os conceitos que Yangsze Choo pega emprestados de sua cultura para aprimorar o mundo dos espíritos que Li Lan visita. Ao final do livro, a autora escreve algumas notas esclarecendo o que ela incorporou por conta própria, enriquecendo o enredo, e o que de fato se tem como crença chinesa. Enquanto Li Lan se encontra na forma espiritual, a menina se depara com a presença de seres que mesclam características humanas e animais, espíritos de plantas e uma galeria de criaturas diferentes e luminescentes. Aqueles mais atentos poderão até mesmo notar algumas similaridades com o universo do longa animado A Viagem de Chihiro, de 2001 — mas os enredos são diversos, assim como as protagonistas.

A Noiva Fantasma proporciona uma viagem surpreendente para além do véu que separa os vivos dos mortos. Entrelaçando uma história de amor com os mistérios da vida após a morte, Yangsze Choo nos presenteia com uma trama que exalta os costumes malaios enquanto acompanhamos a jornada de amadurecimento de Li Lan. É uma história doce com um final, para muitos, inesperado, e um mundo espiritual fascinante. Não é uma história de terror no sentido restrito da palavra, mas se imaginar fora de seu corpo e perseguida por demônios e um espírito vingativo dá um certo arrepio na espinha se você não é um Winchester.


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