Produção da Netflix lançada em 2022, Meia-Noite no Hotel Pera Palace acompanha a história de Esra (Hazal Kaya), uma jornalista enfrentando problemas no trabalho, que é designada para escrever uma matéria sobre o Hotel Pera Palace, de Istambul.
Com inauguração datada em 1895, o local foi construído para receber os hóspedes do lendário trem Expresso do Oriente, lançado pouco tempo antes, em 1883. De lá para cá, no entanto, com quase 130 anos de existência, o hotel recebeu hóspedes ilustres, como Agatha Christie, e presenciou diversos acontecimentos históricos, que mudaram o mundo e a própria Turquia, como a Queda do Império Otomano e o surgimento da Nova República Turca, além de duas Guerras Mundiais.
Tanta História e a presença de pessoas que fizeram parte dela conferem ao local uma aura quase sobrenatural, abrindo um leque de possibilidades de enredos e que, agora, inspiram e são palco de Meia-Noite no Hotel Pera Palace. Isso porquê, na tela, à meia-noite, todos os dias algo estranho acontece: quem estiver de posse de uma chave específica no quarto 411 (o quarto de Agatha Christie, nomeado em sua homenagem na vida real), passa por um evento capaz de levar a pessoa por uma viagem no tempo para outra época.
É o que acontece com Esra, que, de repente se vê na Turquia pós-Primeira Guerra Mundial, presenciando, em calças jeans do século XXI, em primeira mão, encontros políticos importantes e bailes de época, em um tempo onde os britânicos ocupam e têm grande influência no território turco, desejando se estabelecer permanentemente.
Enquanto Ahmet (Tansu Biçer), seu novo aliado e antigo hóspede do hotel, ciente da possibilidade de viagem no tempo daquele quarto específico, tenta tirá-la daquele ano, Esra se vê emaranhada na teia de eventos históricos, que se desenrolam rápida e inevitavelmente naquele tempo ao presenciar a formação de um plano para matar o maior nome da resistência aos britânicos, o revolucionário Mustafa Kemal.
Ao voltar para o quarto 411, contudo, Esra e Ahmet têm uma surpresa: Peride, uma mulher, que foi membro crucial para a Guerra da Independência da Turquia, esquecida pelo tempo, está morta em seu banheiro. Eles percebem que algo está errado com a linha temporal e que a Guerra que tornou o país independe dos britânicos corre o risco de não acontecer por conta da falta de eventos que envolvem a famigerada heroína apagada pela História, e decidem investigar quem cometeu o assassinato. Para isso, Esra, que parece ser uma espécie de sósia de Peride, decide temporariamente tomar seu lugar na alta sociedade turca, infiltrando-se em círculos que apenas alguém bem relacionado poderia. O problema é: trata-se de uma realidade com costumes e culturas totalmente diferentes da que vive no século XXI. Além disso, Peride, alguém que antes era praticamente um mito, se torna impressionantemente real, sendo uma mulher viúva, com uma família abastada, mas conservadora, e até uma filha.
Na pele de Peride, Esra passa a ter de lidar com questões que jamais precisou enquanto inteiramente órfã de família, como se importar com entes queridos, um novo amigo — quase um irmão — e até um interesse amoroso, na pele do espião e assassino, Halit (Selahattin Paşalı), o que torna a jornada da protagonista mais crível. Não somente ela tem consciência de que a Revolução deve ocorrer para a Turquia se transformar no país que conhece, mas, em meio a grande e maior questão da iminência do totalitarismo, a mocinha ainda tem tempo para enfrentar o que faz ela ser quem é, pois, se você parar pra pensar, assim é a vida.
Em meio aos “grandes acontecimentos”, aqueles que são considerados cruciais, os “pequenos” conflitos jamais deixam de ocorrer e tudo deve ser colocado em uma balança para que, no final, esta esteja o mais equilibrada possível. Não há um ponto de chegada e nem de partida ou, ao menos, não como em uma linha temporal com datas cravadas, mas uma jornada em si mesma e, como na série, isso ocorre em um ciclo sem fim. Dessa forma, para além da ficção científica e da exploração comum das regras da viagem no tempo nas telas, Meia-Noite no Pera Palace é exemplar em encaixar os conflitos da História como um todo naqueles vividos apenas pela protagonista, o que a transforma em uma produção enxuta com oito episódios bem alinhavados entre si e no todo da mitologia ali estabelecida.
Como Peride, Esra descobre que, talvez, pertence a um tempo diferente, não por questões físicas, mas porque as pessoas dali a tornam essencial em sua missão, diferente da forma como se sente em seu próprio tempo, além de lidar com as possibilidades do que seus sentimentos podem causar como consequência no futuro, embora isso aconteça da forma madura como ela se apresenta desde o início — como uma protagonista determinada, que possui opiniões próprias e atitude de heroína. Na verdade, a produção como um todo é desenvolvida assim, explorando a realidade como um adulto faria, de forma a evitar incongruências, seja em razão das personalidades dos protagonistas, seja pelas complicações da viagem no tempo.
Com uma lógica temporal bem estabelecida para a história, que confere verdadeiro senso de perigo, afinal a protagonista se encontra em uma sociedade que essencialmente não conhece, e como resultado às ações dos personagens (afinal, tudo o que fazem ali têm resquícios no futuro), o roteiro não se deixa cair em armadilhas tentadoras, como a química inequívoca e inevitável entre Esra e Halit, verdadeiros sinônimos para o termo “enemies to lovers” e a possibilidade de desenvolvimento de outras sub-narrativas — que podem ou não serem aprofundadas na segunda temporada.
De forma original, sabendo se utilizar do instrumento do revisionismo histórico de forma ainda surpreendente para o público, Meia-Noite no Hotel Pera Palace faz bom uso de gêneros já visitados em séries como Dark (Netflix) e Outlander (Starz), sem se transformar em mais uma dentre a infinidade de produções descartáveis do streaming e, por este motivo, é merecedora de uma segunda temporada, com estreia prevista para 12 de setembro deste ano.
