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High Fidelity, primeira temporada: uma visão feminina para a história clássica

Alisson. Penny. Charlie. Sarah. Laura. Esses são os nomes das mulheres que quebraram o coração de Rob Gordon (John Cusack) no clássico Alta Fidelidade (ou High Fidelity, no original), filme que chegou aos cinemas em 2000. O longa, que se tornou um dos favoritos de quem ama música, vê o protagonista de Cusack do começo até o fim em sua missão de ligar para todas as ex-namoradas e descobrir por que, afinal, elas o rejeitaram. Na medida em que ele vai riscando sua lista, o público também acompanha a rotina miserável de Rob, que é dono de uma loja de discos chamada Championship Vinyl e passa grande parte dos seus dias fazendo listas ao lado dos seus amigos/funcionários, Barry (Jack Black) e Dick (Todd Louiso). Apesar de parecer, em um primeiro momento, ser uma história sobre relacionamentos com um pano de fundo musical, fica claro no decorrer da narrativa que, na verdade, é também a história sobre um cara insegura, obcecado por pequenos detalhes e que é basicamente… um idiota.

A trama, baseada no livro homônimo de Nick Hornby, tem um protagonista que não é exatamente identificável com mulheres, porque mostra conflitos predominantemente masculinos, mas é de certa forma amada por todos justamente porque explora assuntos comuns e universais como amor, relacionamentos e insegurança. E é justamente por causa disso que um reboot em 2020, com uma protagonista mulher e negra, faz total sentido.

A história agora acontece nos dias atuais e Rob Gordon é Robyn Brooks, vivida por Zoë Krevitz. Mas assim como o Rob de Cusack, ela também acabou de passar por um dos piores términos de relacionamento da sua vida e também é viciada em criar playlists, algo que descreve como uma espécie de arte. Como o próprio Hornby apontou em um texto para a Rolling Stones, essas mesmas playlists que a protagonista gosta de fazer são compostas digitalmente agora, mas seu coração quebrado por homens (e mulheres, já que nessa versão ela é bissexual) ainda parece ser completamente, inconvenientemente e dolorosamente analógicos.

“Rob sobreviveu ao século XXI porque as pessoas ainda estão dispostas a pagar por algo que é tão onipresente quanto o ar que eles respiram”, escreve Hornby.

Se a visão de Rob é mais inclusiva e representativa ao século que em vivemos, nada mais justo que Barry e Dick também serem substituídos e também representarem essa mudança. Nessa versão, os dois se transformaram em Cherise (Da’Vine Joy Randolph), que também é uma mulher negra, e Simon (David H. Holmes), um dos ex-namorados de Rob que se descobriu gay no meio do relacionamento. Assim, os três vão navegando o mundo moderno e tentando descobrir uma forma que lidar com suas dinâmicas amorosas (ou não) no século XXI.

Atenção: este texto contém spoilers

A história começa justamente quando Mac (Kingsley Ben-Adir) termina o relacionamento com Rob. Sem conseguir entender exatamente o que aconteceu, ela entra em um padrão confuso de tentar encontrar seus ex-namorados e entender porque foi rejeitada. Ela liga para seu primeiro namorado, Kevin Bannister, e descobre que ele casou com a mulher pelo qual ele a trocou. Pela lógica da sua cabeça, então, ela não foi rejeitada, era apenas destino; depois ela vai atrás de Simon, que se assumiu gay bem na época em que eles saiam. Anos após o acontecimento, os dois continuam melhores amigos e ele a trata como se ainda fossem namorados, levando-a a acreditar que a culpa não foi sua, era apenas biologia; ela se encontra com Justin (Justin Kitt), um comediante de stand-up que tem uma vida miserável e sem amor com sua mulher, e conclui que o término foi melhor para eles; e resolve ligar até mesmo para Kat Monroe (Ivanna Sakhno), que deixou uma grande impressão na protagonista, mas que não é nada como ela se lembrava.

High Fidelity

Essa jornada serve como catalisador para uma grande revelação: o único que ela realmente amou é Mac e, sem saber lidar com seus sentimentos, e ao ver que ele pretendia pedi-la em casamento, acabou surtando e colocando os pés pelas mãos.

Na ficção, muitas vezes ser mulher significa ser solitária. É possível traçar um paralelo de personagens femininas que têm a solidão presente na sua narrativa de forma constante e até mesmo comparar com os sentimentos que nos assolam na vida real. Com Rob, esse mesmo sentimento está presente de forma quase sutil. A protagonista aparece ouvindo músicas que fazem alusão a solidão e seu comportamento indica que ela é insegura com o que realmente sente, se fechando para o mundo e para a possibilidade de ter um relacionamento saudável. Sua jornada para descobrir porque ela foi rejeitada tantas vezes na vida só começa a fazer sentido quando, de forma consciente, ela começa a entender qual o seu papel nas dificuldades que enfrenta e por que ela constantemente se sente isolada.

Essa característica de Rob é reforçada por uma atuação pontual de Zoë Kravitz, que encarna o espírito da personagem como se tivesse nascido para isso. Não só sua afeição pelos discos e pela música parecem ser genuínos e bem-vindos, mas também o figuro cai como uma luva na personalidade da mesma e seu desempenho sabe quando ser cativante ao mesmo tempo que consegue ser desolador e sensível. Ela é, afinal, uma mulher complicada.

Assim como o Rob de Cusack, Robyn admite que ela é basicamente uma idiota. Mas, ao contrário do que acontece no longa, onde Rob parece apenas um homem obcecado demais em entender suas falhas, aqui a protagonista parece mais insegura e com dificuldade de entrar em contato com seus sentimentos e entender sua solidão do que ao contrário. Essa perspectiva feminina, criada pelas showrunners da série Veronica West e Sarah Kucserka, é algo essencial para criar um produto que se encaixe nos tempos modernos.

Não sou uma mulher negra, mas segundo a jornalista Zeba Blay do HuffPost, a série também dá uma nova visão para o que é chamado de “black girl angst. Ao criar Rob para ser uma mulher real, com falhas e problemas reais, a produção cria um comentário e contexto baseada na obra original. Enquanto o Rob do filme original descrevia todas as suas namoradas como “tipos” de mulheres, aqui elas são muito mais do que isso.

As diferenças de personalidade entre eles podem ser vista em pequenos detalhes. Em um momento do filme, por exemplo, Rob diz que a base de qualquer relacionamento duradouro são as coisas que eles gostam. Filmes, livros e principalmente música importam porque ele montou toda sua filosofia de vida em cima dessas coisas e, assim, ele não consegue se imaginar com uma pessoa que não compartilhe dos mesmos gostos básicos, o que dá uma certa arrogância ao personagem. Robyn é diferente: é claro que grande parte da sua vida envolve arte e ela entende a importância disso em sua vida, mas suas relações são mais movidas pelos sentimentos do momento e como eles se prologam, e não o contrário. O discurso perpetuado por Rob no longa fica a cargo de Simon agora, e ainda que Robyn concorde com o básico do que ele fala, ela ainda constrói suas relações de forma diferente, basta olhar a maior diversidade das pessoas com quem ela fica (um é comediante de stand-up, outra é uma influencer de comportamento na internet, e assim vai).

High Fidelity

Com um total de dez episódios, a construção da persona de Robyn também é feita com mais calma, e outros aspectos da sua personalidade, abordados com mais profundidade. Como consequência, o resultado final também é completamente diferente. Se na versão original Rob e Laura (sua última namorada) terminam, mas eventualmente acabam voltando, a história entre Rob e Mac é muito mais complicada do que isso. O espectador não fica sabendo exatamente o que aconteceu entre os dois até os episódios finais, quando a protagonista revela sua traição. Com um término que aconteceu há mais de um ano e muita mágoa e segredos compartilhados entre os dois, o amor que eles sentem um pelo outro está longe de ser o suficiente para carregar a história do casal para frente. Não existe outra alternativa a não ser terminar tudo e seguir em frente.

Ao mesmo tempo que Robyn tenta decifrar seus sentimentos por Mac, ela acaba se aproximando do cantor Liam (Thomas Doherty — personagem que na versão original era Marie De Salle, vivida pela mãe de Kravitz, Lisa Bonet), com quem tem um pequeno encontro, e Clyde (Jake Lacy) que acaba sendo a Laura definitiva da história. Esse último relacionamento é construído pouco a pouco ao longo dos dez episódios, sendo que eles são diferentes entre si e não necessariamente fazem parte do mesmo mundo quando se trata de arte. Ele, por exemplo, escuta Phish. Ela faz graça da banda de rock e diz que solos de guitarrista com mais de 17 minutos não são uma coisa boa (e com razão).

Por causa da sua dificuldade em entrar em paz com a forma com que as coisas aconteceram entre ela e Mac, Rob demora para entender exatamente os sentimentos que ela nutre por Clyde — ou resiste ao ver o estilo de vida tão diferente que eles levam. Mas o que ela vai entendendo aos poucos é que isso não necessariamente é o que importa. Um dos diálogos mais famosos do longa é, inclusive, replicado por meio da relação entre eles, quando Clyde conta que existe uma chance de 9% de eventualmente acabarem juntos.

Uma nova visão 

Não é apenas Robyn que ganha um desenvolvimento maior com a adição de horas extras para complementar a história. Simon também ganha uma atenção maior e tem um episódio inteiro dedicado às suas desilusões amorosas — que, no geral, foram realizadas por apenas um homem: Ben (Christian Coulson). Um advogado importante e o oposto total de Simon, que gosta de usar blusas de banda e trabalhar em uma loja de discos, os dois carregam uma relação tóxica que envolve clamídia, traição e longas idas e vindas.

Essa parte na trama é fundamental e interessante justamente porque, na história original, Barry e Dick são apenas um complemento fraco que ganham pequenos momentos de tela, enquanto aqui existe a real oportunidade de trabalhar os personagens coadjuvantes, algo fundamental em qualquer série de TV que honre o título — e nada melhor do que começar com Simon. Seu relacionamento com Ben começa um ano após ele se assumir como um homem gay, e chega com as inseguranças de não saber o que o seu parceiro espera ou o que ele mesmo quer de um relacionamento, o comportamento certo e como identificar quando tudo acaba tomando uma curva errada. O resultado, claro, é desastroso.

High Fidelity

Todos os diálogos entre os dois mostra que Simon é uma alma sensível, com uma visão pertinente de música e das coisas ao seu redor, enquanto Ben é muito mais pragmático e ambicioso. O tempo ensina Simon a procurar por outras coisas e entender que talvez aquilo não seja o certo para ele, acabando em um pré-relacionamento com Blake (Edmund Donovan). Seu desenvolvimento é mais rápido e conciso do que o de Robyn, mas é possível captar uma relação inteira em um episódio de apenas 20 minutos, o que é praticamente um milagre.

É uma pena que Cherise tenha ficado de lado. Seus talentos musicais quase não são explorados pela primeira temporada — ou nem sequer a banda dos dois adolescentes que aparecem roubando a loja de Rob rapidamente. A primeira temporada deixou um gancho para um segundo ano acontecer, e então esses personagens devem ganhar algum senso de justiça. Ou assim espero.

High Fidelity é uma série que, apesar de ter momentos sérios e pontuados pelo drama, tem episódios que decorrem como uma facilidade incrível. Não só porque o elenco tem uma química que funciona perfeitamente, mas também porque vê-los fazendo playlists ou simplesmente conversando sobre música é satisfatório e divertido. Além de ser um bom pontapé para procurar músicas com temáticas inusitadas — como o dia que eles estavam discutindo as cinco melhores músicas sobre masturbação (“I Touch Myself”, dos Divinyls; “Dancing with Myself”, do Billy Idol; “She Bop”, da Cindy Lauper; “Blister in the Sun”, do Violent Femmes e “My Ding-A-Ling”, do Chuck Berry).

Acompanhar a jornada de Rob e sua obsessão por músicas e playlists é mais legal agora justamente porque existe mais tempo para explorar esse aspecto. Quando ela precisa de inspiração para fazer um compilado de canções de amor, por exemplo, Debbie Harry, do Blondie, aparece para ajudá-la. Esse momento serve não só como uma referência direta ao longa (já que o Rob original imaginou Bruce Springsteen para ajudá-lo), como também explicar um pouco sobre seus sentimentos na hora — já que Harry bate um garfo em uma taça ao mesmo tempo que dança “Heart of Glass”.

Ao mesmo tempo, a trilha sonora parece menos movida por apenas bandas brancas e masculinas e apresenta um repertório mais diverso. É comum ouvir músicas do The Roots, de A Tribe Called Quest, ao mesmo tempo que Nina Simone, Janet Jackson embalam os episódios e pôsteres do Wu-Tang Clan estão estampados na parede.

Outro exemplo de como uma adaptação pode se beneficiar ao passar das telas do cinema para a TV é que algumas passagens do livro que foram cortadas na versão do longa, e acabaram encontrando seu lugar, como é o caso da história dos milhares de discos raros e importantes que são oferecidos para Rob por apenas 20 reais. Isso acontece porque, basicamente, uma mulher (vivida por ninguém menos do que Parkey Posey) quer se vingar do marido que a traiu com mulheres mais jovens. Rob, que hesita em aceitar o acordo, vai atrás do homem para saber se ele realmente é um babaca, e o que ela encontra é um babaca pretensioso e misógino. Assim, ela volta disposta a comprar os discos pelo valor proposto, mas sua alma romântica (que a coloca em problemas nos seus relacionamentos) fala mais alto e ela acaba não levando a coleção porque acredita que a música que deve ser para pessoas boas, mas também para aquelas que não são.

Ao acrescentar histórias que são plurais e diferentes, com casais que não necessariamente seguem uma regra específica de como ser e são compostos por pessoas que não necessariamente compartilham o mesmo gosto musical ou sequer a mesma filosofia de vida, High Fidelity se prova uma série atual e, ao contrário de muitas obras que foram adaptadas do século anterior para um novo, consegue se reinventar com facilidade. Ao colocar vozes mais diversas na produção, Hornby (que esteve muito envolvido com a série) afirma que High Fidelity não é apenas uma história sobre um cara branco com um senso ridículo de autopiedade e obcecado com as próprias falhas, mas é também sobre você e sobre mim. E fala com diversas gerações.

1 comentário

  1. Confesso que gostei mais da estética da série, das músicas e dos looks da Zoe do que da temática em si. Fiquei apaixonada pelo trabalho da Zoe ❣️

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