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Muito além da Princesa Leia: Memórias de Carrie Fisher

Há não tanto tempo atrás assim, nessa mesmíssima galáxia, Carrie Fisher ganhava o papel da hoje icônica Princesa Leia Organa, originalmente uma das poucas personagens femininas da saga Star Wars. De 1977 para cá, quando o primeiro filme foi lançado, a aventura espacial criada por George Lucas conquistou um espaço gigante dentro da cultura pop e a saga já foi revivida nos cinemas três vezes — no final de 1990, em 2015 e em 2016. Em ambas as ocasiões, os novos filmes passaram da marca do bilhão de dólares arrecadados nas bilheterias e, no caso de O Despertar da Força (que, diferentemente da trilogia anterior, trouxe o trio de protagonistas original de volta), superou os dois bilhões. Os números são um indicativo, mas o enorme sucesso e expectativa gerados por um novo lançamento quase quarenta anos depois talvez falem ainda mais alto. Mesmo quem nunca assistiu à saga sabe quem é Darth Vader, reconhece a música tema criada por John Williams e identifica o famoso penteado de Leia. Carrie Fisher sabia disso e, exatamente quarenta anos depois de ser confirmada como a intérprete da nossa princesa/general favorita, lançou um livro de memórias para falar sobre a sua relação com essa história.

Lançado no Brasil pela Editora Best Seller, Memórias da Princesa: Os Diários de Carrie Fisher é uma reflexão da atriz a respeito do que representar Leia significou para sua carreira e, além dela, para a sua vida. Quando ganhou o papel, ela tinha apenas dezenove anos e um único filme no currículo (Shampoo, de Hal Ahsby, memória que perpassa brevemente no livro). Carrie, no entanto, já tinha conhecimento de causa quanto ao ônus e o bônus da fama, que cobra seu preço — principalmente para as mulheres — e pode ser bastante efêmera, uma vez que era filha de pais muito famosos: a atriz Debbie Reynolds e o cantor Eddie Fisher. Mesmo assim, o que fica claro é que nada realmente prepara uma pessoa para ganhar o mundo antes dos vinte anos. Ninguém esperava que Star Wars tivesse um sucesso tão estrondoso, e seria presunçoso demais para qualquer um esperar ser alçado ao status de ícone da cultura pop — justamente o que Leia é hoje.

Carrie esclarece, desde o início, que Carrie Fisher e Leia Organa não eram a mesma pessoa, mas que sempre entendeu que as duas seriam indissociáveis. Mesmo que a relação não tenha sido fácil, Carrie sentia um carinho e orgulho enormes da personagem que ajudou a criar. Ela tinha perfeita consciência do significado que Leia tinha para milhares de fãs mundo afora, fossem homens ou mulheres, e de como esse significado era único para cada um deles. Carrie relata com bom humor suas participações em convenções de fás e algumas histórias que encontrou por lá — algumas provavelmente fictícias, mas que continuavam a ser a prova de que Leia era importante para muita gente. Aos sessenta anos, a Carrie que escreve o livro é uma mulher muito bem humorada e às vezes sarcástica, mas não há ironia ao falar sobre a relevância da personagem na vida de tantas pessoas.

“As mulheres me perdoam por usar o biquíni de metal, porque sabem que eu não o estou usando voluntariamente, e deixam os homens o apreciarem e até terem lá suas ereções, pois elas sabem que eu represento algo que vai além disso. Capaz, confiável, igual ou talvez até melhor que um homem. Tenho certeza de que não prestei atenção suficiente a como as coisas eram A.L. (Antes de Leia), mas o filme foi lançado ao mesmo tempo que o slogan popular da época que diz: ‘Uma mulher sem um homem é como um peixe sem uma bicicleta’, e as mulheres de todas as idades estavam felizes de eu ter entrado em cena. Uma heroína para os nossos dias.”

O bom humor é uma característica muito forte da narrativa de Carrie Fisher. Se o título trás tanto “memórias” quanto “diário” em seu subtítulo é porque ambas as partes são verdade. Sua maior parte é composta de memórias — a Carrie de 2016 relembra alguns episódios marcantes de 1976 e 1977, e também alguns vários momentos antes e depois deles. Mas ela também revisita os diários que escreveu enquanto filmava Star Wars, nos quais fala abertamente sobre o caso que teve com o colega de elenco Harrison Ford. O caso toma boa parte do livro, inclusive num capítulo de ótimo nome: “Carrison”. Carrie literalmente abre seu diário, deixando que visitemos alguns de seus pensamentos mais particulares, refletindo sua postura muito aberta e honesta sobre si mesma, que a permitiram nunca se privar de falar sobre sua bipolaridade e o alcoolismo como partes dela.

O relacionamento abre espaço para que Carrie reflita sobre questões mais densas, como a baixa autoestima e os relacionamentos conturbados que teve ao longo da vida ou a necessidade de agradar todos ao seu redor. Tendo visto de perto os problemas no casamento dos pais e, por fim, a traição do pai com a amiga de sua mãe, Elizabeth Taylor, que culminou em um dos maiores escândalos de Hollywood, Carrie nunca imaginou ser “a outra” na dinâmica de uma relação. E ela nunca se sentiu confortável nessa posição. Um dos motivos pelos quais nunca havia tocado no assunto do seu envolvimento com Ford fora, inclusive, o fato dele ser um homem casado à época e estar com ele nunca foi parte de seus planos. Embora o relacionamento tenha durado somente o período de gravações do primeiro Star Wars, Carrie não se sentia confortável em falar sobre o assunto. Anos mais tarde, ela reconhece que era preciso contar sua versão dos fatos, e que o fato de Harrison nunca tê-lo feito não a obrigava a fazer o mesmo.

Como uma jovem atriz imatura e meio inconsequente, Carrie queria ter um caso durante as gravações de Star Wars, uma aventura romântica com data para acabar, mas não pretendia vivê-la com um homem mais velho do que ela, muito menos um homem casado. Sendo a única mulher da equipe, não faltavam homens interessados na jovem atriz, mas o fato de se envolver justamente com Harrison desconstrói o estereótipo da amante reproduzido por Hollywood. Carrie nunca foi uma femme fatale — pelo contrário, era uma jovem insegura e às vezes ingênua, que se viu em uma relação mais complexa do que esperava ou que mesmo quisera viver.

Harrison tampouco é pintado como uma pessoa ruim, mas possui atitudes questionáveis. É ele quem dá o primeiro passo rumo a uma relação extraconjugal e o faz em um momento de vulnerabilidade da própria Carrie, agindo como o típico cavaleiro da armadura prateada. O episódio merece destaque, ainda, por ser um momento em que Carrie poderia ter sido vítima de maiores abusos: bêbada e cercada de outros homens durante a festa de aniversário surpresa de George Lucas, ela seria levada para outro lugar e só não é porque Harrison aparece parece para impedir.

“Era um tipo de plano engraçadinho que envolvia me tirar da festa e me levar para sei lá onde caras da equipe de filmagem levam jovens atrizes quando desejavam estabelecer que a atriz pertencia a eles e não a qualquer integrante do elenco ou da produção, pelo menos naquele momento. Certamente não era algo sério. O que fazia parecer sério era o tamanho avantajado daqueles homens.”

Ler o seu relato sobre a suposta brincadeira é um misto de desespero e revolta; não é difícil imaginar qual seria o desfecho em outras circunstâncias. A indústria audiovisual está repleta de casos de mulheres violentadas por colegas de trabalho: nomes como Thandie Newton, que recentemente revelou ter sido abusada por um diretor durante um teste aos 18 anos, Maria Schneider, estuprada em cena por Marlon Brando em O Último Tango em Paris, e Daniella Perez, brutalmente assassinada aos 22 anos pelo seu colega de elenco, Guilherme de Pádua, com quem fazia par romântico na novela De Corpo e Alma, são apenas alguns exemplos.

Como única mulher, a solidão era outra constante durante as gravações. Carrie não estava sozinha, mas se sentia solitária. Muito dos escritos que mais tarde se tornaram os diários que temos em mãos foram feitos como uma forma de escapar e acalmar os pensamentos durante esses momentos, sendo preferíveis como registro de confidências e sentimentos que não se sentia confortável em compartilhar com outras pessoas. Entre poemas e relatos de bastidores, Carrie conta que não sabia muito bem o que estava fazendo ou o impacto que aqueles dias teriam na sua vida dali em diante, e explora mais uma vez temas como autoestima, a relação com a mídia e a frustração por um relacionamento que estava longe de ser ideal.

“Se eu conseguisse ter uma ideia fixa própria, não teria que olhar constantemente para outras pessoas. Tentando adivinhar seus pensamentos, convencê-los da minha ideia de mim mesma. Esperando que, se eles acreditarem que essa é quem eu sou, aí talvez eu consiga acreditar nisso também. Mas, quando acreditam de fato, quando se convencem de que eu sou quem pareço ser — e até aprovam —, inevitavelmente sinto que os enganei. Que devem ser bastante ingênuos para cair na minha dança.”

Quando escreve sobre suas experiências como uma jovem atriz, ela consequentemente fala sobre o significado de ter em seu corpo e imagem o principal instrumento de trabalho. Ser a Princesa Leia foi, ao mesmo tempo, um presente e uma tragédia: a oportunidade de interpretar uma personagem tão única e ter experiências tão diversas abriu portas e foi um presente; mas trágico por todo o resto. O papel em Star Wars veio com a condição de perder cinco quilos, o que a levou a uma clínica de emagrecimento mesmo já sendo tão magra (na época, ela pesava cerca de 50kg), de onde saiu uma semana depois com o mesmo peso que havia entrado. O fato de nunca ter perdido o peso exigido pela produção fez com que ela fosse assombrada pela possibilidade de ser descoberta e perder o papel — o que não aconteceu, mas não anula a angústia que a atriz sofreu no período.

O processo de caracterização da personagem também foi uma experiência traumática, intensificada pela baixa autoestima de Carrie. Até chegar ao famoso penteado de Leia, Carrie se submeteu a inúmeras provas de cabelo, e a cada uma delas a atriz se sentia pior consigo mesma. Se olhar no espelho era uma tarefa difícil, e ela torcia para que um dia fizesse as pazes com a própria aparência, mas isso nunca aconteceu de verdade. Envelhecer sob os holofotes foi tão cruel quanto foi com outras mulheres da indústria hollywoodiana. Antes tida como sex symbol, imortalizada no biquíni dourado que sempre odiou, aos quarenta anos, Carrie Fisher se encontrou em um lugar de dupla vulnerabilidade: primeiro, por ser mulher em um mundo machista; segundo, por se permitir envelhecer em um ambiente que exigia que mulheres se mantivessem sempre jovens.

“Todos os outros foram vestidos com as roupas convencionais do primeiro filme. Eu tive que usar a roupa que Jabba escolheu pra mim. Jabba The Hutt, o fashionista. Jabba The Hutt, a Coco Chanel do estilo intergalático. Lança tendência, se dedica à moda, lidera os looks femininos no seu mundo, no seu planeta e outros. Na cera, sempre vou estar com a roupa escolhido pelo bandido Jabba. Na cera e sem cera, sempre vou estar com a cara chapada.”

Com o sucesso de Star Wars, Carrie precisou aprender a lidar com uma fama diferente daquela conhecida por intermédio dos pais. Ela foi fotografada por paparazzis, deus entrevistas, se tornou o primeiro amor de muitos homens e o exemplo de outras tantas mulheres. Mas, à medida que se distanciava da juventude, ser a Princesa Leia se tornou um fardo. As fotografias continuavam a exibir rostos eternizados de pessoas que, quarenta anos depois, não existiam mais. Pessoas que fizeram um trabalho, se divertiram e seguiram em frente, viveram suas vidas e envelheceram, como deveria ser. Mas para Carrie, ao contrário dos seus colegas de elenco, a própria vida foi pautada pela idealização de uma imagem que a desumanizava. À Carrie (e Leia) não era permitido envelhecer. Sua estátua no Museu Madame Tussauds  e as fotos do passado eram um lembrete de quem ela fora, mas de quem não era há muito há muito tempo, e por mais que tenha falado abertamente sobre o assunto (e com muito bom-humor), lidar com essas questões sempre foi uma carga muito pesada.

Uma história particularmente significativa é a de uma menininha que, levada pelo pai a uma sessão de autógrafos para conhecer a Princesa Leia, ao ver Carrie, se recusou a olhar para a atriz. “Eu quero a outra Leia, não essa velha!”, disse a criança. Era apenas uma menina, mas Carrie logo tratou de lhe explicar que aquele era seu novo eu. Também pediu ao pai da menina que olhassem juntos outras fotografias dela ao longo do tempo para que a menina pudesse reconhecer a mulher real que Carrie era, afinal de contas, e quão bela ela também poderia ser, “uma vez que a eterna e extraordinária Leia acabasse”. A forma como escolheu lidar com a situação diz muito sobre a pessoa Carrie Fisher e como ela aprendeu a lidar com a passagem do tempo, mas não deixa de ser decepcionante pensar que esse não foi um episódio isolado ao longo de sua vida.

“Eu estava autografando a foto do meu traseiro pelado quando percebi que fui — e não acredito que vou usar essas palavras para falar de mim mesma — um sex symbol. Mas atualmente a reação que às vezes percebo é de decepção, ocasionalmente beirando o ressentimento por eu ter profanado meu corpo ao permitir que minha idade avançasse. É como se eu tivesse tacado papel higiênico em mim mesma, jogado ovos em mim, desfigurado meu rosto, como se fosse uma arruaceira, e alguns deles ficam chocados. Eu queria ter entendido o tipo de compromisso que assumi quando vesti aquela roupa.”

Carrie nunca deixou de amar Leia. Embora tenha vivido muito tempo à sombra da personagem (um trauma para qualquer ator) e nutrido certo ressentimento por ela ao longo dos anos, dar vida à princesa foi também um presente ao qual ela foi grata até o fim. Leia era como uma amiga, uma irmã e uma parte de si mesma, ao ponto de não ser possível separar uma da outra. Carrie e Leia mantiveram uma relação ambígua de altos e baixos, com conflitos para os quais Carrie nem sempre encontrou uma resposta. Ainda assim, graças a elas, inúmeras meninas e mulheres puderam se ver nas telas do cinema como mais do que uma donzela em perigo, em uma época em que o debate sobre representatividade se restringia à academia e ao movimento feminista.

Ler as memórias de Carrie é ter contato com um pouco das nossas próprias. É caminhar por um terreno agridoce, mas repleto de lições inspiradores — para atrizes, não atrizes, aspirantes a atrizes ou que nunca aspiraram a carreira de atriz. Carrie Fisher jamais seria a mesma sem Leia: ela não teria a Força, ou tantos fãs e não teria recebido tanto carinho nem se tornado uma atriz de sucesso tão rapidamente e, posteriormente, uma escritora consagrada. Mas ela também não teria se exposto tanto e tão cedo, não teria minado sua autoestima já tão baixa, não teria se obrigado a defender o direito de não ficar de biquíni depois dos quarenta anos.

Se Carrie não seria a mesma sem Leia, a verdade é que Leia tampouco seria a mesma sem Carrie. Fisher era uma mulher extraordinária, complexa, dona de si, divertida, casca grossa e com um grande coração — e cada página do livro é um lembrete de que, independente da galáxia ou dos caminhos percorridos ao longo da vida, Carrie Fisher jamais seria apenas Carrie Fisher.

“Deus nunca nos dá mais do que podemos suportar, então se Deus te dá muito, considere isso um elogio. Acho que você entendeu a essência da minha viagem.”

Texto escrito em parceria por Ana Luíza e Fernanda.


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