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The Handmaid’s Tale e a heterossexualidade compulsória

Nós, mulheres, somos “valorizadas” e escravizadas na medida do nosso potencial reprodutivo. Essa é uma premissa muito importante de The Handmaid’s Tale, e também é uma premissa muito importante da vida real. A maternidade na sociedade humana, para além da função óbvia de perpetuar a espécie, serve a uma função social subjacente de manutenção da opressão. Para cumprir seu “destino biológico”, pelo menos durante a maior parte da história humana, é preciso que mulheres se relacionem sexualmente com homens. E, para nós, “se relacionar” com homens sempre pressupôs uma dinâmica conhecida de dominação masculina e submissão feminina.

Em paralelo a toda uma mentalidade social que perpetua a dinâmica da interação entre os sexos na sociedade, o processo de dominação é mantido por diversas instituições sociais consagradas que, à primeira vista, parecem neutras. Entre os pilares que sustentam a sociedade patriarcal encontramos o casamento, a heterossexualidade e a maternidade, todos compulsórios, que somados dão origem à família tradicional nos moldes que conhecemos atualmente, com toda a distribuição de papéis e a estrutura de submissão e controle que lhe é inerente.

Nesse contexto, o papel da mulher sempre foi fortemente atrelado ao ambiente doméstico. Quanto mais alta a classe social, mais confinada a mulher esteve ao ambiente doméstico, cumprindo seu papel de mãe, esposa e dona de casa, e deixando ao marido o papel de prover e garantir a segurança do lar. Quando a situação econômica da família impede que a mulher se dedique exclusivamente a suas tarefas “naturais”, ela assume posições (marcadamente subordinadas, superexploradas e subremuneradas) no mercado de trabalho, sem com isso se livrar da corrente que a liga ao lar e suas tarefas, nem de seu dever de obediência e submissão ao marido.

The Handmaid's Tale

Atenção: esse texto contém spoilers!

Em The Handmaid’s Tale, adaptação da distopia O Conto da Aia, de Margareth Atwood, a premissa com a qual comecei o texto é colocada em prática de maneira muito mais literal e escancarada do que em nossa sociedade atual. A série se desenvolve em um futuro distópico, no qual as taxas de fertilidade caíram a um nível extremamente baixo na recém-criada República de Gilead, após um grupo religioso liderar um golpe de estado nos extintos Estados Unidos. Na nova sociedade instaurada, o papel de todas as mulheres é servir a seus homens da maneira que forem ordenadas. Algumas são esposas, algumas são empregadas, algumas são aias (sinônimo de máquinas de produzir filhos).

Em um contexto como esse, não é possível esperar nada além do óbvio: a homossexualidade não é tolerada. A produção só dá a entender, muito de passagem, que homens gays também são perseguidos, mas o foco real está nas lésbicas. É nesse ponto que Emily/Ofglen/Ofsteven (Alexis Bledel) ganha destaque. Em um arco extremamente doloroso, conhecemos em termos gerais a história da personagem: antes do golpe, ela era casada e tinha um filho. Quando a repressão começou, a esposa e o filho conseguiram escapar, mas ela ficou para trás. Presa de sua fertilidade — “valorizada” e escravizada na medida das suas capacidades reprodutivas.

Não bastasse o passado trágico, Emily acaba se envolvendo romanticamente com uma Martha (empregada doméstica). As duas são descobertas e levadas a julgamento. Como “traidoras do gênero”, subversivas que ousaram contrariar seus papéis naturais e sagrados, elas são condenadas. Após assistir sua nova parceira ser enforcada pelo “crime” que cometeram, Emily é condenada a ficar viva e continuar sendo estuprada por causa do seu “dom divino” da fertilidade. Ainda ganha de brinde uma mutilação genital para ajudá-la a não cair em tentação no futuro.

O mundo de The Handmaid’s Tale é ficção, mas não está muito distante do real. A heterossexualidade é compulsória porque fora dela fica exponencialmente mais difícil dobrar mulheres à submissão. Se a grande arma do patriarcado no mundo contemporâneo é a manutenção da ficção do amor romântico como fundação dos pilares que continuam a prender as mulheres aos homens apesar da clara desvantagem que isso representa na esmagadora maioria dos casos, quando essa figura é redirecionada para outras mulheres, o patriarcado perde sua influência sobre elas. A partir daí, o controle que era interno, disfarçado e amplamente romantizado precisa tomar forma externa e ostensivamente agressiva.

Se o valor da existência feminina se dá na medida de sua utilidade para os homens, uma mulher que não serve a eles não vale de nada e é um perigo a ser eliminado.  Em Gilead, as mulheres férteis são a corporificação de um bem muito escasso, e por isso valiosíssimo, que deve ser controlado por quem tem o poder. A única coisa que importa nelas é sua fertilidade, e elas são vistas unicamente como um meio para atingir um fim desejado. Ao contrário da submissão da aia, a submissão das esposas têm uma natureza mais psíquica do que física. Uma esposa tem a função de ser a alma do lar, a companheira devotada, a adoradora fiel do marido, eventualmente a mãe dedicada dos filhos (gerados pelas aias). Nesse contexto, Emily deve permanecer viva porque sua dominação psíquica é irrelevante, desde que ela se submeta fisicamente aos estupros e, eventualmente, se tudo der certo, à gravidez. O dever da esposa é a obediência com base em lealdade, enquanto o dever da aia é a obediência pura e simples. A aia não é mais do que um objeto a ser usado para um fim, e assim como ninguém pergunta a uma colher se quer ser usada, ninguém pergunta à aia o que ela quer.

Ser lésbica em uma sociedade que dita que apenas homens têm valor é rejeitar todos os valores estabelecidos. Não existe uma moral universal, um código moral é sempre aquele que é imposto por um grupo dominante a todos os indivíduos que fazem parte da comunidade, estejam estes em concordância com ele ou não. Uma regra moral que determina que só são válidos os relacionamentos heterossexuais, no que concerne às lésbicas, busca evitar que qualquer mulher se emancipe do poder masculino.

A punição para quem rompe com esse código moral é violenta, passa pelas esferas social — exclusão, ostracismo, rejeição familiar —, econômica — dificuldade maior em arranjar emprego — e física — com as mais diversas formas de violência concreta, desde espancamentos, linchamento público, estupro corretivo até o assassinato. Em muitos países a homossexualidade ainda é crime, e mesmo que isso não seja mais verdade no Brasil, isso não significa que nós tenhamos avançado muito de fato. O patriarcado não vai cair tão facilmente.

O dia 28 de junho é o Dia Internacional do Orgulho LGBT. Nessa mesma data, em 1969, lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e drag queens se uniram contra as batidas policiais que ocorriam com frequência no bar Stonewall-Inn, em Nova York. O episódio marcou a história do movimento LGBT, que continua lutando por direitos e visibilidade. Em homenagem à data, durante o mês de junho, portais nerds feministas se juntaram em uma ação coletiva para discutir de temas pertinentes à data e à cultura pop, trazendo análises, resenhas, entrevistas e críticas que tragam novas e instigantes reflexões e visões. São eles: Collant Sem Decote, Delirium Nerd, Valkirias, Momentum Saga, Nó de Oito, Ideias em Roxo, Preta, Nerd & Burning Hell, Séries por Elas, e o Prosa Livre.

1 comentário

  1. Excelente matéria! Estamos no Século XXI e a Mulher não é mais “produto” de uso e desuso do homem machista.

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