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Queen Sugar: desconstruindo estereótipos

É notório que a representação de pessoas negras no cinema e na TV estadunidense vem passando por mudanças gradativas. Se aos personagens negros homens se reservou, por muito tempo, a representação marginalizada, imersa em ambientes de violência e vícios, o alívio cômico, o homem sexualizado ou, ainda, o trampolim para desenvolvimento e sucesso do mocinho branco, quando se fala em mulheres negras, essa representação soa ainda mais injusta: muitas delas são as mães “guerreiras” que têm filhos envolvidos em crimes; mães negligentes (dependentes químicas, em sua maioria); mulheres sexys que acabam, mais hora, menos hora, sendo abusadas.  

Graças ao feminismo, hoje, e de forma lenta, esses papéis estereotipados têm diminuído e dado lugar à maior representatividade em grandes produções. Os patrocinadores notam que é necessário atingir todos os públicos, especialmente com o aumento do poder aquisitivo das famílias negras norte-americanas nos últimos anos. Com a representatividade sendo um tema em voga, foi necessário uma mudança também na TV e, por esse motivo, houve um grande aumento de séries voltadas cujo protagonismo centraliza personagens negros: Scandal, Black Ish, The Green Leaf, How to Get Away With Murder e a sensível Queen Sugar.

Queen Sugar é uma série que tem como produtora executiva e showrunner Ava DuVernay, mente por trás do filme Selma (indicado em quatro categorias no Globo de Ouro e ao Oscar, em 2015), pelo documentário 13ª Emenda e muitos outros sucessos; e Oprah Winfrey, atriz, apresentadora, editora, empresária e uma das personalidades mais influentes da histórias dos Estados Unidos. A trama gira em torno da família Bordelon, que vive em Nova Orleans e é composta por três irmãos, e como eles lidam com a recente morte do pai e a obrigação repentina de cuidar da fazenda de cana de açúcar deixada como herança. A partir de então, a série torna-se um ótimo chamariz para a discussão de assuntos como o racismo, o feminismo, a violência policial e a solidão da mulher negra. Ao longo dos episódios, somos apresentados à personagens fortes e muito humanos, principalmente no que diz respeito às protagonistas femininas.

Logo no início conhecemos Nova Borderlon (Rutina Wesley), uma jornalista negra que mantém um caso com um homem branco casado. O fato de estar envolvida em um affair poderia resumir a personagem, mas Nova é bem mais que uma mulher apaixonada pelo homem “errado”. Nova consegue ser, ao mesmo tempo, focada em sua carreira, comprometida com o ativismo (ela faz parte do movimento Black Lives Matter), ser uma pessoa voltada ao espiritualismo (atuando como curandeira espiritual) e aberta ao amor de homens e mulheres. Além dela, há também Charley Bordelon West (Dawn-Lyen Gardner), que vive em Los Angeles e divide seu tempo entre gerenciar a carreira do marido, um jogador da NBA, e cuidar do filho adolescente. Sua vida de conto de fadas, como as revistas de fofocas descrevem, chega ao fim quando o envolvimento do marido em um escândalo sexual é divulgado pela mídia no dia do falecimento do seu pai, obrigando-a a largar a vida aparentemente perfeita para se aventurar no negócio da família. Por último, o terceiro irmão e único homem, Ralph Angel Borderlon (Kofi Siriboe) saiu da prisão há pouco tempo e busca reconstruir sua vida e conseguir a guarda do filho que se mantém sob os cuidados de sua tia, Violet Borderlon (Tina Lifford), uma vez que Darla (Bianca Lawson), a mãe da criança, está em uma clínica de reabilitação, tratando-se de uma dependência química.

A trama de Queen Sugar busca juntar pessoas de personalidades muito distantes, mas que estão conectadas pelo sangue e pelo negócio da família, fazendo-as conviver entre si, trazendo à tona mágoas e ressentimentos provenientes dos longos anos em que ficaram afastadas, enquanto o sentimento de cuidado e carinho que nutrem um pelo outro começa a aflorar. Nesse sentido, o feminismo se faz presente de forma não literal. Não é preciso que nenhuma personagem se auto-intitule feminista, mas suas atitudes refletem e reverberam mais do que qualquer palavra. Tanto Nova quanto Charley são mulheres livres para serem o que quiserem, se esquivando das amarras de uma sociedade machista.

Nova é uma mulher bissexual que vai contra a maioria dos estereótipos atrelados à personagens negras. Ela é uma jornalista destemida, que investiga casos de violência sexual contra jovens negros da periferia de Nova Orleans — que, à época, ainda tenta se reerguer após a passagem do Furacão Katrina, que destruiu a cidade em meados de 2005 —, é livre e dona de si, mas ao mesmo tempo é controversa, planta e vende maconha, se envolve com um homem casado. Nova é real e complexa, não apenas como mais uma personagem feita sob medida para atender aos padrões da televisão norte-americana, mas como ser humano, cuja bússola moral não possui um norte bem definido, que tropeça em meio aos seus defeitos — defeitos que, no entanto, nunca põe em xeque suas qualidades. A princípio, ela parece ser o que chamamos de “mulada do tipo exportação”, mas é apenas uma mulher livre, segura da própria sexualidade e que também precisa ser amada.

Charley, por sua vez, poderia cair no rótulo da mulher negra dona de casa, que vive para a família, que quer ser perfeita para fazer valer a vida que possui. Ao invés disso, toma as rédeas da sua narrativa e faz o possível para que tudo saia conforme seu plano. Como toda mulher, Charley tem defeitos e, em alguns episódios, é difícil defendê-la. Ela é, no entanto, a imagem de milhares que mulheres negras que precisam diariamente provar que são capazes, que merecem ser ouvidas, sobretudo por homens — sejam eles brancos ou negros. Ralph, no caminho inverno, mostra ser o oposto das irmãs, o que também subverte estereótipos que comumente são utilizados para representar o homem negro: ele é um jovem imaturo, mas extremamente sensível, e também um ótimo pai.

Queen Sugar é uma série necessária para todos, pois vai contra a maioria das narrativas sobre famílias negras. Ao desconstruir rótulos e utilizar estereótipos justamente para quebrá-los em algum momento, a série fornece um olhar mais honesto e verossímil sobre a complexidade da vivência de homens negros e mulheres negras, algo que a televisão e o cinema — e, por vezes, também a literatura — restringiram por tanto tempo. É uma série com personagens complexos, diálogos incríveis, fotografia e direção impecáveis, dividindo espaço com outras produções e personagens igualmente incríveis, como Annalise Keating (Viola Davis) de How To Get Away With Murder, Olivia Pope (Kerry Washington), de Scandal, e Cookie Lyon (Taraji P. Henson), de Empire. Atualmente, Queen Sugar conta com duas temporadas — nenhuma, infelizmente, disponível no Brasil.

Janaína Ajala. Formada em Publicidade, tentando entrar no mundo mágico da redação e sair do mundo das séries. Pisciana que sonha acordada e gostaria que John Hughes dirigisse sua vida.
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3 comentários

  1. Acabei de descobrir a série (ainda não assisti nada), mas já estou maravilhado pelo que li, o mais foda que a série é basicamente dirigido por mulheres, vi isso no twitter da Ava e chamou ainda mais minha atenção, vou correndo assistir a primeira temporada.
    E aliás, muito bom o texto.

  2. Homossexualismo, negro ex presidiário,adultério…Nada novo.Querem colocar os negros nesse mar de lama, o que na vida real a probabilidade é muito baixa .Seria sim diferente, se a negra tivesse um relacionamento com um negro solteiro(ambos héteros), se o irmão fosse formado numa boa faculdade, e a outra fosse casada com um negro trabalhador.Esses são os negros que eu conheço!Prefiro as comédias que retratam isso, e não tentem marginalizar o povo negro.Não precisamos disso.

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