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It – A Coisa: Bev e a cultura do estupro

It – A Coisa estreou essa semana no Brasil. A história, que já é um clássico do terror, é uma adaptação da obra homônima de Stephen King e conta a história de um grupo de crianças que enfrenta uma criatura assustadora, que se alimenta de pessoas e seus medos e é capaz de se transformar naquilo que mais apavora suas vítimas.

Atenção: este texto contém spoilers!

Para cada uma das crianças, a Coisa aparece de uma maneira diferente. Mas, enquanto os meninos veem traumas passados e coisas que assustam crianças, Beverly (Sophia Lillis), a única garota do grupo, vê o pai abusador. Um homem imundo que, em nenhum momento do filme a abusa realmente, mas que deixa essa situação sempre implícita em suas cenas com Beverly. O medo de Bev — o medo do abuso — é mais comum do que deveria ser para mulheres. A maior parte das agressões a mulheres é cometida por familiares ou pessoas próximas dessas famílias. 70% dos estupros, na verdade. O número é ainda mais assustador se levarmos em conta que, no Brasil, a cada 11 minutos uma mulher é estuprada.

Todas nós conhecemos o medo de Bev. Não necessariamente por conta de nossos pais, mas porque todas nós sabemos o frio que gela a espinha quando estamos andando sozinhas na rua e ouvimos passos atrás de nós. Todas nós conhecemos o aperto no estômago na hora de pegar um táxi (agora, também, na hora de pegar um Uber). Todas nós sabemos que o pior dos nossos medos não é o assalto, mas sim o estupro, uma violência da qual a nossa classe é a maior vítima.

Conhecemos, todas, os cuidados que devemos tomar. Evitamos sentar ao lado de homens no ônibus, sabemos que usar shorts é entendido como um convite para agressões. Sabemos todas, embora possamos desconhecer o nome, que vivemos em uma sociedade que naturaliza o estupro e o transforma em um medo comum entre mulheres.

O estupro está nas músicas, está na TV, está nos ônibus, Ubers, festas, salas de psicólogos, consultórios médicos, nas ruas. A cultura do estupro está na culpa que as mulheres sentem ao serem vítimas dessa violência. Bev corta os cabelos, acreditando que a culpa do abuso é dele. Clara Averbuck disse que, mesmo sabendo que a culpa não era sua, sentia como se fosse.

Quando uma jovem de 17 anos foi abusada por 33 homens, disseram que a culpa era dela de se meter com gente como eles. Quando as vítimas do Dr. Abdelmassih o denunciaram, disseram que a história estava muito mal contada e que, provavelmente, elas queriam um filho dele. E em qualquer caso de mulher que estava bêbada e foi estuprada, atribuem a culpa a ela por ter bebido demais.

Quando se trata de estupro, a culpa é socialmente atribuída à vítima. A consequência disso é a dificuldade em combater casos de estupro. Como pode ser que, em 2017, a cada 11 minutos uma mulher seja estuprada? Nós lançamos objetos no espaço, inventamos a lua, criamos um acelerador de partículas que simula o Big Bang e ainda assim a cada 11 minutos uma mulher é estuprada no Brasil. É ilógico. É surreal. E é um problema social.

Esses estupradores não são todos doentes. Abuso sexual não é um caso de transtorno psicológico, é um problema social, é sobre poder versus submissão, é sobre machismo. Dizer que estupradores e pedófilos são doentes é uma maneira de minimizar a responsabilidade deles (e da sociedade) por seus crimes. É um discurso que já deveríamos ter superado se buscamos por uma sociedade mais igualitária, justa e pacífica.

O estupro é fruto da objetificação do corpo feminino e da visão da mulher como um ser inferior, que serve apenas para servir aos desejos masculinos. Essa objetificação é constantemente reforçada pela indústria do pensamento — seja pelos trajes das heroínas em filmes, por exemplo, ou pelos comerciais de cerveja que ainda insistem em trazer mulheres seminuas —, pelo judiciário e outras instituições sociais que reforçam o feminino como um gênero inferior, subserviente. E é por conta disso que precisamos continuar falando sobre cultura do estupro. Precisamos continuar falando sobre como uma personagem criada em 1986 por um escritor norte-americano ainda consegue representar tão fielmente o medo mais comum das mulheres. Precisamos falar até acabar com isso.

14 comentários

  1. Que texto necessário! Apesar de ser fã da adaptação clássica de It, essa nova versão (que ficou excelente) soube conduzir muito melhor o drama da Bev e deixou muito mais claro a questão do abuso e como isso assusta ela. No final ***SPOILER ALERT*** quando o It não consegue matá-la por não conseguir assustá-la com coisas banais e que dariam medo em crianças comuns, achei muito genial e fiquei feliz que não tentaram maquiar o abuso e a pedofilia. Na hora do pacto de sangue, ela é a única que não faz cara feia ou reclama quando corta a mão, o que me fez pensar que ela já passou por dores muito piores. Uma cena sutil e muito significativa. Beijos 🙂

      1. Eu já li o livro. O livro é ótimo mas essa cena final é totalmente desnecessária considerando a idade dos meninos, é super triste e pesada. 🙁

        1. Gostaria de saber se o médico do edhie tem alguma relação com ela pois em alguns momentos ele age bem estranho no primeiro filme e no segundo mostra ele batendo na porta chamado ela de vadia

  2. Acho que o texto faltou um item essencial presente no filme que me incomodou, não só a mim, mas as minhas amigas.
    a sexualização da personagem.

    hora, demoramos a entender que ela tem a mesma idade dos meninos, fiquei muito confusa pois o jeito que colocaram a personagem, parecia muito mais velha, deixando de ser uma criança como os garotos.
    um objeto de desejo por ser uma menina.

    fora isso, concordo com o texto. E no geral, que filme ótimo.

    1. Só se for os outros garotos tirando Ben e Bill que realmente estavam apaixonados por ela na época

    1. Como disse no texto, em nenhum momento a Bev é estuprada pelo pai, no entanto o medo do abuso e o assédio (esse explícito) está presente durante o todo filme.

      1. Por que ela foi estuprada por Henry Bowers ( o Bully no livro ) tanto que ele se refere a isso na briga de pedras. O pai da bev agride ela fisicamente pois não gosta que ela ande com garotos.

        1. Acho que não, João. Henry tenta estuprar a Beverly em uma passagem do livro, mas ela consegue se desvencilhar dele quando a senhorinha dirigindo um carro passa pela rua e tenta interceder pela garota.

          1. No livro ela não foi estuprada por Henry Bowers, e também não ficou claro se o pai chegou a esse ponto (talvez tenha ficado subentendido).

  3. Lola, a Beverly é descrita da mesma maneira no livro, ela está idêntica no livro, e em questão de sexualização acho que este texto e seu pensamento é um tanto exagerado, são garotos e quando veem uma garota eles agem diferente, o que é até normal na adolescência ( o que não é normal é ter pensamentos ilícitos sobre sexualização como pensar em transar a força), esses garotos não são babacas com a Beverly.

  4. Desculpa me intrometer na conversa da sexualização da personagem, mas eu concordo com a Lola e as amigas dela. Antes de qualquer coisa, deixo claro que li e reli o livro. Em nenhuma passagem o fato da Bev ser uma garota é sexualizado pelo S. King à exceção da cena final. Os garotos não agem diferente por ela ser uma menina. No começo, quando entrou no clube dos otários, ninguém pensou nada além do fato dela ser uma criança que estava ali e mantinha o mesmo pensamento deles, que não se importava em como poderiam se divertir – mesmo que fosse brincando no esgoto ou lixão da cidade.

    Vez por outra, alguns dos meninos, com exceção do Ben, percebem no fato dela ser uma garota, como se um letreiro piscasse por um segundo avisando “ei, ela é uma garota!” mas tal sensação nunca permanecia por muito tempo. Ben, ao contrário dos outros, se apaixonou por ela desde o ínicio. Os outros garotam sim, a sexualizavam (Henry e companhia).

    Outro ponto, no livro TODOS eles fumavam, inclusive o asmático Eddie, mas no filme novo colocaram apenas ela fumando, deixando a percepção dela ser mais adulta do que eles. Quando ela toma banho de sol, o filme objetifica o corpo da garota quando os garotos ficam lá, admirando de boca aberta (juro, eu imaginei a cena seguinte quando alguém iria se levantar rápido e disfarçar uma ereção, tamanha a sexualização da cena).

    Desculpa discordar, mas o filme sexualizou a personagem, sim.

  5. Sei de vários spoilers da obra, ainda não li. Mas, uma das observações q fiquei chocada foi com a cena “orgia” entre as crianças. Além de desnecessária, será que está cena não no livro não seria uma forma de objetificaçao da mulher, ou ainda, não possa ser vista pelos leitores como algo estimulante a pedofilia? Outra coisa. Não soa estranho apenas as vestimentas da menina ser escrita na obra?
    Eu queria ler, mas se for pra me deparar com tais pontos, prefiro não ler. Gostaria de saber de vc q leu como vc vê isso.

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