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Sociedade da Justiça: 2ª Guerra Mundial e o grande dilema dos super-heróis

Durante um raro dia de folga em Metropolis, Barry Allen (Matthew Bomer) vê o dever chamar quando o Superman (Darren Criss) precisa de ajuda para conter um vilão. Então, o que seria apenas um encontro com Iris West (Ashleigh LaThrop), sua namorada, transforma-se em uma viagem pelo tempo e espaço para um cenário muito diferente: a Europa na Segunda Guerra Mundial.

Produção da Warner Bros. Animation em parceria com a DC Universe Original Movies, de 2021, escrita por Jeremy Adams e Meghan Fitzmartin, Sociedade da Justiça: 2ª Guerra Mundial, coloca o herói de Central City em uma realidade — o aparente passado — diferente, onde existem mais pessoas com superpoderes, que se juntaram para criar uma liga, que auxilia o exército dos Aliados (Estados Unidos, França e Inglaterra) durante um dos piores períodos da humanidade.

Sociedade da Justiça

Intitulado Sociedade da Justiça da América, o time, que se reuniu para tentar deter os planos malignos de Hitler — o qual passou a buscar artefatos mágicos durante a Guerra para obter maiores vantagens — parece ser um protótipo muito bem organizado do que seria a Liga da Justiça no futuro. Liderada pela Mulher-Maravilha (Stana Katic), ele ainda conta com o Flash (Jay Garrick), a Canário Negro (Elysia Rotaru), o Gavião Negro (Omid Abtahi) e o Homem-Hora (Keith Ferguson).

Ainda que seja o Flash a guiar o espectador por essa realidade, a grande líder deste grupo segue sendo Diana, a Princesa de Themyscira, que tem de lidar, ainda, com seu interesse amoroso e responsável por uni-los sob a ordem do Presidente Roosevelt, dos Estados Unidos, o Coronel Steve Trevor (Chris Diamantopoulos). A Mulher-Maravilha é, sempre, uma personagem com muitos recursos para se explorar, por isso, colocá-la no centro do conflito, como personagem, para além do grande conflito da trama contra a ameaça iminente dos nazistas, é uma decisão assertiva da produção. Isso porque, sendo uma mulher imortal, que é praticamente uma deusa, ela se vê na constante necessidade de refrear seus sentimentos por Steve em nome do dever.

Diferente da Diana de Gal Gadot, que teve sua história de origem apresentada no filme de 2017, e passou a se habituar ao mundo dos homens e as regras da sociedade a partir daquele momento, conhecendo a si mesma, aos seus sentimentos e a sua sexualidade ao sair de Themyscira, a Diana de Sociedade da Justiça já está calejada, mas, como é muito comum, ainda não passou por sua grande provação e tem convicções muito firmes de como as coisas devem ser. Ainda assim, são convicções sobre as quais aquela Diana talvez seja mais sábia a respeito. Mesmo que imortal, a Mulher-Maravilha de Gal Gadot tem sede de viver, enquanto esta tem maiores receios, especialmente por conta da realidade perigosa em que Steve e ela vivem. Ambos são combatentes ativos na Segunda Guerra, sabem do potencial risco que correm a cada vez que entram em batalha e, principalmente, como representam a fraqueza um do outro. A questão é que Steve e Diana, na animação, enxergam isso de maneiras distintas: enquanto ele deseja viver o que pode diante da iminente possibilidade de não estar vivo no dia seguinte, ela tem fé de que poderão ter um futuro após o fim da Guerra.

Sociedade da Justiça

Este também é um grande arco de Flash. Em todas as histórias do herói, é constante a dúvida entre seguir com o amor da sua vida em todos os mundos, a jornalista Iris West, e salvar o mundo em si ou não colocá-la em perigo apenas por estar com ele. Na série estrelada por Grant Gustin e Candice Patton, que fez parte do Arrowverse para a televisão, quando finalmente consegue se declarar, o herói tem que se colocar à frente do homem e salvar Central City, uma lição que Oliver Queen (Stephen Amell), o Arqueiro-Verde, já havia ensinado a ele em seu primeiro ano como herói: “caras como nós não ficam com a garota”.

O Barry de Sociedade da Justiça passa pelo mesmo. Sem tempo para a vida pessoal e com receios de assumir Iris para não colocá-la em perigo, ele vive pela metade enquanto garante que os outros possam viver por inteiro até o ponto de a namorada questionar se o relacionamento é tão importante assim, apesar de entender o dever dele como Flash.

Esse questionamento moral dos sentimentos românticos não é uma exclusividade dos heróis da DC Comics, mas uma convenção comum no gênero, que aprofunda esse tipo de personagem. Em Game of Thrones (HBO), Meistre Aemon (Peter Vaughan) diz a Jon Snow (Kit Harrington): “o amor é a morte do dever”. Na cena, ele pergunta ao jovem porque acha que os Patrulheiros da Noite não podem ter esposas nem filhos, além de quebrarem o elo com suas famílias pregressas ao fazer seus votos, e explica que isso se deve à continuidade de seu juramento, pois tudo o que se ama eventualmente é colocado à frente do dever.

Na última temporada da produção, no entanto, Tyrion Lannister (Peter Dinklage) inverte a frase, criando um dos paradoxos mais interessantes da série. Naquele momento, Jon chega a mais cruel encruzilhada de sua vida: escolher entre seu sentimento por Daenerys Targaryen (Emilia Clarke) e o mal que ela representa para Westeros ao tentar tomar o poder através da tirania.

“Eu sei que a ama. Eu também a amo. Não com tanto sucesso como você, mas eu acreditei nela com todo o meu coração. O amor é mais poderoso do que a razão, todos sabemos disso. Olhe para o meu irmão. […] Às vezes, o dever é a morte do amor. Você é o escudo que guarda o reino dos homens. Você sempre tentou fazer a coisa certa, não importa a causa. Você tentou proteger as pessoas. Quem é a maior ameaça ao povo agora? O que eu estou pedindo é terrível, mas também é a coisa certa. […]”.

Sociedade da Justiça

Tyrion faz um paralelo com o irmão, Jaime Lannister (Nikolaj Coster Waldau), que, por muitas vezes, deixou sua função como membro da Guarda Real de lado em nome do amor por Cersei Lannister (Lena Headey), sua irmã gêmea, mas sentiu o chamado ao dever, com o qual sempre flertou durante seus resvalos de consciência moral, após algumas temporadas, em uma das jornadas de redenção mais interessantes do enredo.

Para Jon, o dever termina por ser a morte do amor e a morte literal da amada. Sem Daenerys, ele pode seguir, de boa vontade, para uma espécie de autopunição no Norte, finalmente seguindo aquela que sempre foi sua grande obrigação, uma vez que o personagem, como nortenho, jamais deixaria de fazer o que deveria em nome de qualquer outra coisa — o que já havia aprendido com Ned Stark (Sean Bean) no primeiro episódio da série: “o homem que dá a sentença deve brandir a espada.” 

O Universo Marvel também está repleto de exemplos. Em Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (2022), Wanda Maximoff (Elizabeth Olsen) se sacrifica após se dar conta da ameaça que a Feiticeira Escarlate e o Darkhold, livro proibido das artes ocultas, representa para o multiverso, mas, principalmente, ao se dar conta de que seus filhos são uma fantasia. Wanda morre pelo dever do que é certo e, com ela, também o amor.

Sociedade da Justiça

Há controvérsias se Jon Snow e Jaime Lannister, de fato, se encaixam no perfil comumente associado aos heróis, sobretudo o último, embora nenhum personagem de George R. R. Martin carregue tais características de forma pura; também há discussões morais a respeito da jornada de Wanda Maximoff, tanto no Universo Cinematográfico Marvel quanto nas HQ’s, porém, no caso do Flash e da Mulher-Maravilha, raramente esses questionamentos são feitos devido, especialmente, aos seus propósitos. Em Sociedade da Justiça eles estão, indubitavelmente, em defesa da humanidade, independente de como devem conquistá-la, mas, nesse caso, em uma época crucial da História.

Não transformar a animação em um grande romance é um acerto: os relacionamentos de Barry e Iris ou Diana e Trevor não são o centro da história, que está totalmente focada no combate contra os nazistas em 1945 e nas descobertas do Flash sobre aquela realidade. Suas narrativas pessoais servem, portanto, para lhes dar a empatia que precisam para se conectar com o público ao compreenderem, também, a vida.

Ao final, é observando o relacionamento quase platônico de Diana e Steve Trevor, uma mulher imortal com um humano comum, que Barry chega às próprias conclusões sobre seu futuro com Iris: como todos, eles estão fadados a desfrutar do hoje, pois o amanhã é incerto, e é no passado, ao menos na saga intitulada Tomorrowverse, que ele aprende o que fazer com o futuro.

Uma das histórias mais originais envolvendo os heróis da DC, Sociedade da Justiça se revela um filme enxuto, fincado em um passado histórico recente, mas interesse de se explorar, como se vê em tela, e ninguém melhor do que a Mulher-Maravilha para ser a grande capitã da Liga da Justiça desta realidade. Uma grande bússola moral e, claramente, alguém que inspira o respeito e a confiança dos demais, ela ganha nas telas o papel de destaque que merece, especialmente para celebrar suas diversas facetas e desenvoltura como líder, ainda que tenha de lidar com questões existencialistas.