Desde que me entendo por gente (e por leitora), estou acostumada a esperar ansiosamente pelo filme de um livro que li e gostei. E digo “filme” mesmo, e não “adaptação cinematográfica” porque essa chavinha demorou a virar na minha cabeça — e até hoje, às vezes, esqueço que tenho que acioná-la. Qual a diferença? Toda. Quando a gente finalmente entende que livros e filmes são diferentes e que, por mais que a gente espere encontrar na telinha tudo aquilo que encontramos nas páginas, isso não vai acontecer, fica mais fácil não se frustrar. Adaptação, essa é a palavra de ordem. “Melhor nem criar tantas expectativas, não é o livro na tela, é só uma adaptação”.
Quando o filme da vez vem acompanhado do termo “baseado na obra de” e do nome “Tim Burton” na direção, já começo a tomar a vacina psicológica dias antes de comprar o ingresso. Foi o que aconteceu com O Lar das Crianças Peculiares, originário do livro O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares, de Ransom Riggs, que estreou nos cinemas brasileiros na última quinta-feira, 29 de setembro.
Atenção: o texto contém spoilers!
Primeiro baque: o pôster do filme. Alegórico, fantasioso e colorido, de cara um óbvio contraponto ao clima estabelecido pelos livros, que por sua vez têm capas escuras e sombrias. Outro possível baque: o que mais ouvi falar sobre O Lar das Crianças Peculiares na internet antes de sua estreia eram os fãs reclamando que Burton tinha invertido a peculiaridade de duas personagens. Fiquei em dúvida se isso me incomodaria como aparentemente estava incomodando aos interessados — também costumo ficar irritada com mudanças aleatórias na adaptação, mas, no frigir dos ovos, isso não ia fazer tanta diferença e o argumento do diretor foi que se Emma (Ella Purnell) flutuasse ao invés de ter a capacidade de criar fogo com as próprias mãos, as cenas seriam mais poéticas. Resolvi não encrencar e procurar não ler mais nada sobre o assunto. Comprei meu ingresso.
Não estudei cinema e não sei se é claramente estabelecida uma linha tênue que separa uma adaptação de algo que é apenas baseado, mas julgando que eu possa dizer algo sobre o assunto, diria que O Lar das Crianças Peculiares fica bambeando entre uma coisa e outra. Alguns personagens têm características diferentes, algumas peculiaridades são “complementadas” e, do meio para o fim, os responsáveis decidiram construir uma cena completamente diferente, embora com o mesmo intuito, e mudar o final da história de Riggs — ao menos desse primeiro livro.
O resultado é um filme divertido de Sessão da Tarde com algumas cenas mais pesadas. Imagino que, com pequenos cortes, futuramente ele seja tranquilamente exibido na semana do dia das crianças dividindo agenda com títulos como A Fantástica Fábrica de Chocolates. Tudo muito colorido, cheio de crianças com roupas de décadas mais antigas, monstros e até uma grande luta tendo como cenários um circo e um parque de diversões, algo que não existe no livro (uma luta de esqueletos contra monstros. Nunca assisti Os Fantasmas se Divertem, mas só conseguia lembrar desse título enquanto via esqueletos atacando e requebrando ao mesmo tempo).
Em relação às construções das personagens, O Lar das Crianças Peculiares fica muito na superfície, sem camadas, sem evolução. Não houve aprofundamento na história ou no psicológico/emocional de nenhum deles, o que me fez bastante falta, mas que, de fato, talvez não faça em um clichê de Sessão da Tarde. Assim como as personas, as relações foram pouquíssimo aprofundadas. Praticamente não se falou da história de vida do menino Jacob (Aiden Flowers) com sua família, nem de sua família com o avô, menos ainda de seu avô com seus colegas peculiares e, portanto, muitas questões e mágoas do passado foram ignoradas e permanecerão inexistentes para quem consumir apenas o filme, infelizmente.
Pensando nas questões de gênero, o protagonista é um menino adolescente e estamos acostumadíssimos com a famigerada jornada do herói. Até aí nada muito diferente de Harry Potter ou O Ladrão de Raios. Jacob conhece as crianças peculiares, forma um time com elas e então a participação das meninas acontece de maneira natural. Embora esse protagonista seja um garoto, não vi diminuição das personagens femininas ou minimização de seus atos e poderes. A criança com a peculiaridade de ser muito forte, inclusive, é uma menina, enquanto temos um personagem masculino que tem a habilidade de projetar seus sonhos, o que, fazendo uma leitura rasa, pode parecer mais emocional e, portanto, habitualmente considerado algo feminino.
Uma passagem que não existe no livro e que foi um adicional completamente desnecessário: uma das meninas acaba sendo congelada por um vilão durante a luta. Como ela se descongela? Bem, com um beijo de amor do garoto por quem ela tinha uma crush. Fui pega de surpresa e de repente me senti assistindo A Branca de Neve ou A Bela Adormecida — em pleno 2016.
Um grande ponto são as ybrinies, um grupo de mulheres (e apenas mulheres) que possui a peculiaridade de manipular o tempo, além de se transformarem em aves. São extremamente importantes dentre os peculiares, porque são elas que constroem as fendas no tempo — onde todos vivem, para se proteger dos perigos de serem hostilizados e até violentados pelas pessoas normais e também de uma certa facção existente dentre os peculiares, que se voltou para um caminho torto. As ybrinies, portanto, se tornam as grandes líderes e, eu diria, até meio mães, afinal de contas, como no caso da Srta. Peregrine (Eva Green); muitas acabam apenas crianças em suas fendas do tempo. Dentro delas, o tempo não passa. É como se fosse uma terra do nunca de apenas um dia, que é congelado e onde todos passam a viver, sendo que em todo final de noite a ybrinie reinicia a fenda e volta-se ao início dele.
É extremamente interessante que só mulheres sejam capazes de uma função tão importante, mas não deixa de ser também um pouco questionável, afinal de contas…. porque, novamente, só as mulheres são responsáveis por cuidar das crianças? Mesmo com esse “detalhe”, acredito que ainda seja positivo que sejam apenas mulheres, porque em minha visão elas são muito poderosas antes de serem as cuidadoras das crianças.
Um ponto que não é mostrado no filme, mas acredito que seja interessante discutir porque existe no livro é o fato da Miss Peregrine ter essa característica de mãe protetora tão forte que acaba sendo bastante manipuladora. Em diversos momentos cheguei a pensar que ela seria, no fundo, uma vilã. Ela tenta impedir o protagonista de sair do orfanato e voltar para casa, como forma de proteger as outras crianças — como uma velha história de que os fins justificariam os meios. Fiquei com bastante birra dela durante a leitura, o que não aconteceu em O Lar das Crianças Peculiares porque isso não foi aprofundado.
Por fim, algumas questões ficaram rodeando minha cabeça: que faixa etária Burton quis atingir? A superficialidade das relações e das psiques dos personagens incomodam os leitores da obra e possíveis espectadores adultos que procurem algo a mais história. Por sua vez, do mesmo jeito que O Lar das Crianças Peculiares pecou na leveza do conteúdo emocional, no caso de um filme para adultos, pecou em algumas cenas de ação no caso do filme ser para crianças. Os vilões da história se alimentam dos olhos das crianças peculiares, existem cenas deles roubando os olhos dos rostos delas e fazendo um jantar, ou seja. Sendo assim, não consigo direcionar o filme nem para adultos e nem para crianças. Acredito que ele seja a diversão perfeita para uma faixa pré-adolescente de espectadores, mas algo certamente faltou para que se encaixasse melhor num público mais amplo.
Eu sempre tinha imaginado a Emma Thompson como Miss Peregrine, hahaha. Eu não consegui levar tão na boa assim o fato da Emma ser peculiar do ar porque em muitos momentos a elementariedade dela com o fogo é importante no livro, sabe? E parte da personalidade dela também, e acho legal mostrar uma menina mais agressiva e corajosa que seu par romântico, meio que pela afinidade com o fogo mesmo.
Gostei do filme como adaptação livre, até porque com o mashup que eles fizeram entre os três livros só dá pra ser esse mesmo. É bem divertido, mas a experiência dos livros é muito mais surpreendente.
p.s.: fico pensando muito se o Del Toro ou o Calderón tivessem adaptado, como seria mais ok com o livro e mesmo com as ~sombras~ da obra