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Master Gardener: a romantização de um (ex-)neonazista

Existe uma cena em Zona de Interesse — longa de Jonathan Fraser, vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional em 2024 — em que uma dona de casa aparentemente comum apresenta à mãe o jardim de sua casa. É um belo jardim, com piscina, flores, horta e estufa, mas o que poderia ser um momento banal entre mãe e filha deixa de sê-lo quando se presta atenção ao redor: o muro cinza e o arame farpado que separa a casa de Auschwitz, campo de concentração nazista no qual morreram entre 1,3 a 3 milhões de pessoas durante a Segunda Guerra Mundial; a sinfonia aterrorizante de tiros, latidos e gritos, ou a inescapável fumaça oriunda da queima de corpos.

Menos uma adaptação do livro que lhe dá título do que uma chamada para o que Hannah Arendt escreve em Eichmann em Jerusalém (inclusive para além do conceito de banalidade do mal, embora este também esteja presente), o filme demonstra que o mal não se apresenta como monstros com chifres e dentes afiados, mas homens e mulheres aparentemente comuns que cometem atos criminosos deliberadamente se são beneficiados por isso. Nesse sentido, o jardim apresentado à mãe pela filha funciona não apenas como um contraste com os horrores do campo, mas da construção do eu em si mesmo: aquele que planta, rega, admira a beleza das flores também participa ou é condescendente com o extermínio de milhares de seres humanos, um ato da mais vil e profunda violência. Há uma pergunta intrínseca a essa questão, e que não se restringe apenas aos adultos do filme, mas também às crianças, as sementes das gerações futuras que, ao germinarem, podem se tornar qualquer coisa, a depender de como respondem aos estímulos externos — uma alegoria, vale ressaltar já utilizada por pensadores como Montaigne, Rousseau e Nietzsche.

Master Gardener

De certa forma, o mesmo raciocínio serve ao mais recente filme de Paul Schrader, Master Gardener (ou Jardim dos Desejos, em sua péssima versão para o português), aproximando-os em abordagem e, em alguma medida, temática. O filme é o terceiro volume da trilogia iniciada com First Reformed, de 2017, e da qual também faz parte O Contador de Cartas, de 2021, e narra a história de Narvel Roth (Joel Edgerton), um homem solitário com um passado perturbador (arquétipo comum nas obras de Schrader). Jardineiro-chefe de Gracewood Gardens, propriedade da arrogante Norma Haverhill (Sigourney Weaver), Narvel mantém uma rotina restrita, limitada ao trabalho, à interação com sua equipe e aos eventuais encontros com Norma — com quem mantém uma relação indefinida, embora não estritamente profissional.

Esse cenário aparentemente imaculado (das roupas sempre impecáveis de Norma, aos modos muito polidos de Narvel, até o próprio jardim, que mesmo quando seguem a estética inglesa, mais livre em comparação aos padrões simétricos dos jardins franceses, ainda servem a um objeto mais amplo) se transforma a partir da chegada de Maya (Quintessa Swindell), sobrinha-neta de Norma, a quem ela pede que Narvel ensine jardinagem como uma forma de mantê-la ocupada e longe do vício em drogas, que já havia vitimado seus pais. Embora uma parente distante, em um primeiro momento, Norma parece se preocupar com o futuro da menina, e o sucesso de Narvel com o ofício sugere que Maya também possa obter sucesso, ainda que a natureza de seus problemas sejam muito distintas.

Norma não está completamente errada: ainda que o vício seja uma questão mais complexa (mais, inclusive, do que o próprio filme parece se dar conta) e que não possa ser tratada apenas com atividades extracurriculares, Maya deixa quase imediatamente o estereótipo da jovem rebelde para se mostrar uma menina tão inteligente quanto interessada. É também com ela que, pouco a pouco, Narvel se despe das barreiras que construiu para si mesmo, experimentando o estreitamento de uma relação que parecia se restringir a um único aspecto de sua vida. Essa aproximação, no entanto, revela o racismo e o comportamento errático de Norma, tornando a situação na propriedade insustentável. Em determinado momento, durante um almoço com Maya e Narvel para o qual a própria Norma os havia convidado, ela humilha propositalmente a sobrinha-neta, que sai do ambiente aos prantos. É a primeira vez que Norma se mostra de forma tão clara e, no entanto, todos os sinais já estavam lá: da sua demora em dar boas vindas à Maya, ao momento em que, após uma situação de perigo, não a convida para dormir na casa grande, ou quando a demite (junto com Narvel) por nenhum motivo além de sua própria mesquinhez.

Com a demissão, Norma é deixada para trás para que Narvel e Maya sigam seus caminhos, mas Schrader não deixa de utilizá-la como uma forma de analogia: da pessoa que, sempre preocupada se seu jardim estaria belo o suficiente para competições e feiras, nunca se importou em cultivar algo mais honesto e verdadeiro. Mesmo sua tentativa de fazer uma boa ação é frustrada quando seus interesses pessoais são postos em xeque — que Maya precisasse de apoio e não tivesse outro familiar a quem recorrer não era de importância alguma. Mais tarde, quando ameaça Narvel com uma Luger (arma de fabricação alemã, muito utilizada por nazistas durante a Segunda Guerra Mundial), uma herança do pai e de um passado a qual parece dar grande importância, a face mais sombria de Norma surge outra vez: de repente, seu conhecimento sobre a vida pregressa de Narvel em uma gangue neonazista deixa de ser uma mera formalidade (na medida em que ela lhe dá um emprego e ele, por sua vez, está em liberdade condicional), para se tornar também uma simpatia (a cena em que pede para ver suas tatuagens ganha novo significado nesse sentido). Se sua propriedade sugere um passado escravocrata e seu comportamento com Maya confirma seu racismo, a Luger é um lembrete definitivo de suas reais inclinações.

Master Gardener

A partir deste momento, Master Gardener abandona momentaneamente o cenário — e a metáfora — do jardim para acompanhar Roth e Maya em um novo contexto, no qual o maior conflito parece ser o fato de Maya não ter qualquer conhecimento sobre o passado de Narvel. À essa altura, os dois estão envolvidos o suficiente para que pequenas anedotas sejam trocadas em meio à demonstrações de afeto, mas leva algum tempo até que a verdade seja exposta e confrontada. É anticlimático, então, que, uma vez revelada, tudo se resolva com tanta facilidade. Schrader não trata a vida pregressa de Roth como um segredo para o público, preferindo, ao invés disso, desafiar o espectador a sentir algum nível de empatia por um personagem tão controverso. Maya, por outro lado, é mantida no escuro, ao mesmo tempo uma parte da provocação de Schrader e uma vítima em potencial do passado de Narvel. É difícil acreditar, portanto, que ela seja capaz de se satisfazer com a simples promessa da remoção das tatuagens, ignorando o peso que carregam em uma sociedade que mata compulsoriamente pessoas como ela.

Narvel tampouco parece demonstrar um nível realmente profundo de arrependimento. É inegável que suas escolhas o levam a lugares sombrios — o assassinato, a perda do direito de ver a filha e da própria liberdade etc. Mas são questões que carecem de maior profundidade: seu relacionamento com Maya é, em si mesmo, um desafio à mentalidade neonazista, assim como seu relacionamento com pessoas de outras etnias. Ainda assim, Master Gardener não consegue carregar de forma satisfatória o peso de uma questão tão complexa e atual. Somente no Brasil, a incidência de grupos neonazistas cresceu 270,6% no período de janeiro de 2019 a maio de 2021. Mas o país não é o único: na Alemanha — onde o banimento de partidos políticos que ameacem a democracia é previsto pela Constituição —, representantes do partido de extrema direita AfD encontraram-se com neonazistas e empresários para discutir um plano de deportações em massa de estrangeiros. Em seu programa oficial, a legenda não menciona o projeto, mas é a favor do fechamento de fronteiras, mudanças na legislação sobre o direito de asilo e que muçulmanos (cerca de 6% da população alemã) não tenham mais espaço no país.

Em meio aos destroços, é inegável que Schrader projeta certa ternura em sua narrativa. Muitas das cenas mais belas de Master Gardener acontecem quando Narvel fala sobre jardinagem, ou está ao lado de Maya, ou quando fala sobre jardinagem ao lado de Maya. É o mais próximo que o filme chega de retratar um ser humano real, com sentimentos ambíguos e um passado do qual de fato se arrepende, que fala de forma fluida sobre aquilo que sente. Porque nada existe no vácuo, é impossível se desvencilhar da realidade em que vivemos, no entanto — e a história de redenção de um ex-supremacista branco, que tem seu final feliz e dança com a mulher que ama, não cabe neste lugar.

Em um mundo repleto de maldade, ainda é preciso aprender a contar as histórias que realmente importam.