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Ainda podemos ser amigos?

Quando a Netflix disponibilizou as seis temporadas de Sex and the City em seu catálogo, uma legião de fãs (res)surgiu. De quem revisitou a série até quem assistiu pela primeira vez, a repercussão foi vasta na internet — da análise de looks icônicos dos anos 2000, trechos de diálogos em páginas feministas, memes sobre relacionamento e a condenação de Carrie Bradshaw (Sarah Jessica Parker) como uma das piores protagonistas da televisão até a discussão sobre relacionamentos que a série apresenta, sejam eles românticos ou não.

Fato é que nenhuma das histórias de amor da série supera a história de amizade entre as quatro mulheres tão diferentes entre si que encontram um espaço de companheirismo, confiabilidade e apoio ao longo das décadas uma na outra (a considerar que a amizade começa anos antes e segue através dos filmes e da nova série, And Just Like That). Entre idas e vindas de namorados e maridos, Miranda (Cynthia Nixon), Charlotte (Kristin Davis), Samantha (Kim Cattrall) e Carrie encaram o trabalho, o sexo, o amor, o envelhecimento e o que é ser mulher no final dos anos 90 na cidade que nunca dorme, juntas. Esse recorte espaço-temporal é importante para entender porquê a série foi um marco cultural, com elementos que funcionam até hoje, enquanto. outras produções envelheceram da pior forma possível.

No final dos anos 90, não era comum que uma produção televisiva em uma das maiores produtoras e distribuidoras dos Estados Unidos apresentasse mulheres acima dos 30 anos, solteiras, que conversassem abertamente sobre suas relações. Entre a liberdade sexual de Samantha e o conservadorismo de Charlotte, brunchs e drinks regavam conversas sobre posições que facilitavam o orgasmo, se fazer oral era algo que gostavam ou se faziam só pelo parceiro, se existia de fato um momento certo para transar com o cara com quem estavam saindo, se aquele homem seria só um caso casual ou se era “o” cara. As conversas sem pudor em um horário de grande audiência, mostraram o quão possível era mulheres gostarem de sexo e que o lugar que se sentiam seguras para falar sobre era na amizade, mais do que com seus parceiros — o mesmo valia para o que as incomodava e agradava em seus relacionamentos com Big (Chris Noth), Aidan (John Corbett), Steve (David Eigenberg), Harry (Evan Handler) e Smith (Jason Lewis), com os quais raramente se tinha um diálogo.

Amigos

Ao unir esses dois elementos, a série se manteve atual e continuou a gerar identificação entre as espectadoras: a segurança da amizade e a desconstrução da ideia e de que mulheres acima dos 30 anos têm a vida toda resolvida. De fato, hoje a série é um abraço para muitas de nós, jovens mulheres adultas, que crescemos com a ideia de que, até os 30 anos, deveríamos estar casadas, com, pelo menos, um filho, e uma carreira consolidada, porque depois tudo ficaria mais difícil: arranjar um bom marido, encarar uma gravidez, ser mãe de crianças pequenas, crescer na carreira.

Ao contrário dos anos 90, no entanto, o público de 2024 é capaz de enxergar esse empoderamento ao mesmo tempo em que condena as personagens por passarem tanto tempo falando sobre relacionamentos e homens. A própria Miranda critica o grupo quanto a isso: “Como é que quatro mulheres tão inteligentes não têm nada para conversar a não ser namorados? É como a sétima série com contas bancárias.” — e, ao longo de toda a série, elas questionam o quanto os namoros ocupam espaço em suas vidas, até onde elas querem ir com o relacionamento e até que ponto estão sendo elas mesmas dentro das relações, especialmente entre Carrie e Big. Para uma série que traz o sexo em seu título, porém, focar nas relações românticas não é uma surpresa nem algo ruim: é a proposta desde o início. Sex and the City precisa ser revista no contexto em que foi produzida — quais eram as possibilidades de ser uma mulher solteira nos anos 90 — e as conversas que ela proporcionou quando ninguém mais fazia. Séries como The Bold Type (2017-2021), por exemplo, evocam ainda hoje Sex and the City: tratar apenas do romance não é suficiente, e o trabalho se torna o centro, mas o elemento amizade permanece, e é o que une as personagens. Se colocarmos as duas séries lado a lado, existirão muitas semelhanças, sendo surpreendente o quanto Sex and the City foi mais ousada em diálogos sobre relacionamento e sexualidade (a série, porém, peca no quesito diversidade dessas relações e sexualidade, onde The Bold Type consegue crescer e alcançar uma nova geração de jovens mulheres).     .

Carrie, Miranda, Charlotte e Samantha são um grande símbolo do que é amizade feminina, um assunto tão discutido e valorizado. A amizade feminina vai na contramão da rivalidade feminina, fruto da sociedade machista que cria competições das quais não somos capazes de participar: quem é mais bonita, quem é mais magra, quem é mais sedutora, quem atrai mais homens, quem casa primeiro, quem tem a família perfeita, quem equilibra todos os pratinhos. A amizade das protagonistas constantemente mostra a imperfeição de cada uma e como são capazes de se ajudar, se elevar e se conduzirem para o amadurecimento. Quando Miranda engravida e cogita a possibilidade do aborto, Charlotte sente um misto de raiva e inveja por estar passando por problemas de infertilidade, mas sabe que o laço entre elas é maior do que seus sentimentos confusos e volta para o lado da amiga, sem saber que ela tinha escolhido seguir com a gravidez. No casamento de Miranda, Samantha quer esconder a notícia do câncer para não estragar o dia, recebe o apoio e o colo de Carrie e, antes que o episódio acabe, Miranda a lembra que “você é a minha pessoa, nada mais importa, agora me conte tudo que sabe e vamos resolver isso juntas” — o laço entre elas sempre foi mais forte do que todos os empecilhos da vida.

Amigos

Reproduzimos essas relações em nossas vidas reais e cotidianas, temos grupos de WhatsApp, nos encontramos para jantar e colocar a conversa em dia, trocamos figurinhas e conselhos. Sofremos com suas ausências diante novos encontros amorosos, questionamos se aquele cara é tudo isso mesmo, vamos em seus casamentos e chás de bebê. Nossas amigas são nosso centro e o caminho de voltarmos a nós mesmas de um jeito que nossos namoros não conseguem fazer — até mesmo uma trend de TikTok diz: “eu percebendo que tive mais encontros com minha melhor amiga do que com um homem”. Porém, em nossas vidas e na ficção temos dificuldade em manter amizades entre homens e mulheres, especialmente entre pessoas heterossexuais. É só olhar para a prerrogativa de Harry e Sally – Feitos Um Para o Outro (1989) — vale dizer que a autora considera essa uma das melhores comédias românticas já feitas — em que logo no início Harry (Billy Crystal) afirma que eles não serão amigos por conta da tensão sexual entre eles, o que deixa Sally (Meg Ryan) indignada:

“ — A parte do sexo sempre estará presente, a amizade está destinada a acabar.
— Bom, então não seremos amigos? Que pena, você era a única pessoa que eu conhecia em Nova York.”
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Aqui, o principal problema é a incapacidade do homem e da mulher em olhar para o outro sem torná-lo objeto de desejo. Tanto um quanto o outro podem ser inteligentes, simpáticos, divertidos, leais e companheiros, mas tudo isso fica em segundo plano quando vemos a sexualidade acima de tudo na forma que o outro existe. É comum na ficção que existam homens gays e mulheres com a vida amorosa desastrada, em que o homem exerce o papel próximo ao de um irmão. Ou, então, entre o garoto popular e a garota masculinizada (raramente colocada claramente como lésbica) que é vista como um dos caras até a página 2. Existe ainda o clássico friends to lovers [amigos a amantes] cujos exemplos incluem Lorelai (Lauren Graham) e Luke (Scott Patterson), de Gilmore Girls; Chandler (Matthew Perry) e Monica (Courteney Cox), de Friends; Robin (Cobie Smulders) e Barney (Neil Patrick Harris), de How I Met Your Mother; Peralta (Andy Samberg) e Santiago (Melissa Fumero), de Brooklyn 99. Até Seth Cohen (Adam Brody), de The O.C, admite que não consegue ser amigo de Summer (Rachel Bilson) porque continua a sentir atração por ela, como se fosse impossível admirar o sexo oposto (no caso de pessoas heterossexuais) sem desejá-lo e, ao não realizar o desejo, é preferível não manter nenhum tipo de relação.

Amigos

Caso a falta de amizades reais entre homens e mulheres na ficção não seja suficiente para entender essa problemática, basta observar a quantidade de histórias sobre um casal que sente ciúmes da melhor amiga do noivo e que a narrativa leva o enredo para a traição, reforçando a falta de confiança que se tem entre parceiros e suas respectivas amizades. Na vida real, é comum que, ao entrarmos em um relacionamento, deixemos nossos amigos de lado, muitas vezes cortando laços a pedido do outro, que não acredita que aquela pessoa só queira ser um amigo. Se deixarmos os estereótipos de lado, no entanto, podemos vivenciar amizades genuínas entre homens e mulheres, que duram anos, atravessam namoros, superam dores e celebram as alegrias da vida. Na ficção, esse é o caso de Meredith (Ellen Pompeo) e Alex (Justin Chambers), que por 16 temporadas de Grey’s Anatomy cuidaram um do outro entre mudanças de carreira, os dramas entre Derek (Patrick Dempsey) e Izzy (Katherine Heigl), a perda de amigos e a vulnerabilidade de se permitir viver. A amizade entre eles é tão genuína que Meredith o coloca no mesmo lugar de Cristina (Sandra Oh) como “sua pessoa”, e é a ela que ele escreve primeiro para dizer que foi embora — e por ser uma amizade tão bem construída, seus parceiros amorosos nunca sentem ciúmes ou questionam a relação que existe entre eles.

O mesmo ocorre com Dwight (Rainn Wilson) e Pam (Jenna Fischer) em The Office, que foram de colegas a melhores amigos ao longo de nove temporadas. Todo o carinho e cuidado que Dwight tem por Pam existe apenas para ela, é algo que nem Jim é capaz de lhe oferecer e que Dwight não dá a mais ninguém. Assim como Ted Lasso (Jason Sudeikis) e Rebecca (Hannah Waddingham), em Ted Lasso, que, apesar da expectativa de se tornarem um casal, desenvolveram uma bela amizade. Ambos se conhecem após os respectivos divórcios, quando tinham dificuldades para lidar com as dores e a vulnerabilidade do momento, e encontram um no outro o apoio que precisam. Passado esse período, a relação continua para aprenderem a lidar com a saúde mental, os sonhos para o futuro e suas famílias, criando uma relação que lhes permite ser sinceros, se divertirem e desejarem o melhor para o outro, inclusive na ausência.

É importante notar nos exemplos como a individualidade de cada parte é respeitada e como se vêm como homem e mulher, de modo que não é preciso anular as identidades, tornando-a como “um dos caras” ou vendo nele “a amiga que não tive porque não consigo ter amizade com mulher”. Uma relação de amizade entre homem e mulher permite conhecer mais do outro e de nós sob uma perspectiva que nossas construções sociais tentam barrar — sensibilidade costuma estar associada à mulher, enquanto coragem está associada ao homem e, nessas relações, podemos apontar no outro quando ele é capaz de exercer esse aspecto em sua vida, por exemplo. Nossos gostos são diferentes e podemos apresentar novos mundos. Podemos desconstruir os paradigmas que fomos criados, apresentar realidades diferentes e, assim, caminharmos juntos para o amadurecimento.

A questão para a nossa vida e para a ficção é: podemos ser amigos?