Há uma frase do personagem do ator Jesse Plemons, em Guerra Civil, que define perfeitamente a crueza da inspiração real para o filme: que tipo de americano você é?
Isso parece refletir bem o sentimento atual em um país dividido, não apenas política quanto socialmente. Em um cenário onde as pessoas passaram a se dividir em comunidades com que mais se identificam, conforme seus valores e rechaçar radicalmente o diferente, a ideologia e a origem nunca contaram tanto. Ficção ou realidade?
Dirigido por Alex Garland, do vencedor do Oscar Ex-Machina (2015), Guerra Civil (HBO Max) brinca com o real e o cinematográfico o tempo todo, colocando a realidade de uma guerra em território americano sob o olhar do jornalismo fotográfico e documental, que, ironicamente, sempre retrata conflitos em países distantes. Oriente Médio, África, ditaduras nas Américas… Sempre houveram guerras e louros para aqueles dispostos a registrar os acontecimentos históricos. Não por outro motivo, a personagem de Kirsten Dunst ganha o nome não muito sutil de Lee Miller, mesmo da fotógrafa, que mostrou para o mundo, sob sua lente, os horrores dos campos de concentração de Dachau na Segunda Guerra Mundial.
Assim, não seria diferente em um mundo hiper globalizado e conectado como o da produção, ainda que a realidade imponha obstáculos práticos, como a falta de internet, de comunicação e de locomoção. A diferença, no entanto, é que a guerra no próprio quintal soa pior, estarrecedora, confusa, imotivada e, ainda que não se saiba muito sobre o quarteto que guia o espectador por essa trama sangrenta, o que se sabe é o suficiente para fazer com que suas jornadas sejam importantes em meio ao objetivo de conseguir a história perfeita.
Lee, Joel (Wagner Moura), Jessie (Cailee Spaeny) e Sammy (Stephen Henderson) integram esse time de profissionais de gerações diferentes, com experiências, personalidades e crenças distintas, mas com a mesma intenção de conseguir uma entrevista com o Presidente dos Estados Unidos, em Washington D.C., antes de ser deposto do poder pelo chamado Exército das Forças Ocidentais, liderado pelos estados do Texas e da Califórnia.
É interessante notar como a realidade do jornalismo de guerra os moldou de maneiras distintas: enquanto Jessie ainda se habitua à sua crueza e magnitude, sem muita noção do perigo do mundo real, Joel se mostra viciado na adrenalina deste mesmo cenário e, por outro lado, enquanto também está determinada a conseguir a melhor foto, o melhor registro, Lee se parece mais com Sammy em sua experiência anciã, pois o conflito não a deslumbra, embora a sensibilize tão profundamente que, às vezes, prefere silenciar — como em uma fotografia, um registro estacado no tempo.
A personagem de Dunst é repleta de falta de entusiasmo capitaneada pela consciência de que é apenas mais um trabalho e a guerra que se desenrola por todo o país não é entretenimento, nem um problema indiferente, como é comum. Por mais impactante, cruel e violenta que possa ser, americanos estão matando americanos e ela está cansada disso tudo. Ao mesmo tempo, Cailee Spaeny faz um ótimo trabalho em desenvolver o arco de sua personagem, da inocência ao terror passando pela culpa e, por fim, à anestesia profissional, como uma boa aprendiz de sua mestre.
A produção não específica há quanto tempo o conflito está em andamento quando a jornada deles pelos Estados Unidos até Washington se inicia, ao estilo de um “filme de estrada” sob um cenário quase apocalíptico, mas é possível perceber um claro momento decisivo quando as tropas começam a se alinhar para a capital do país em um movimento de tomada de poder. Além disso, o filme não faz um juízo de valor quanto a certos e errados em torno do conflito em específico, mas não se intimida ao abordar que a violência ali retratada está totalmente ligada à política e determinada ideologia, uma vez que o combate é motivado pela quebra de juramento do Presidente às instituições americanas, dentre elas as eleições, o FBI e a própria Constituição.
Pessoas que não se conhecem e que não sabem por quais lados lutam estão em guerra, sendo que aquele é o cenário mais extremo de uma realidade que vai se escalonando na normalidade através de acontecimentos isolados, como falas racistas e xenofóbicas, por exemplo, e outras ocorrências capazes de determinar o real destino de uma nação, como a eleição de determinado presidente. Não por outro motivo, Guerra Civil se passa em locações tipicamente americanas, com suas grandes casas de fazenda, postos de gasolina, super acampamentos de guerra e, posteriormente, na própria Casa Branca e seus arredores, um grande símbolo do país, afinal um conflito em território estadunidense levaria a violência a um patamar assustador, restando a sutileza do roteiro em outros pontos, como a calmaria reflexiva de Lee, o fato de o personagem de Wagner Moura ser da Flórida, um reduto de imigrantes, e de a imprensa não ser bem aceita em Washington em um claro aceno à censura, tornando a jornada do quarteto ainda mais perigosa.
Ainda, em um roteiro que se mostra cuidadoso nos detalhes, fica clara a desvalorização da moeda americana e a desumanização em relação aos acontecimentos, tanto deles, como jornalistas, que — em tese — não devem fazer juízo de valor quanto à história, quanto das pessoas num geral: uma vez que a guerra civil já ocorre há algum tempo, as pessoas se acostumaram a viver em território de conflito, com algumas o ignorando completamente e outras, simplesmente, não se importando — mesmo isso, estando retratado na ironia da utilização da poesia da tradicional música country como trilha-sonora para um cenário de guerra.
Chocante, mas, sob este prisma, também é possível questionar se o impacto dessa desumanização não ocorre mais por conta do cenário do que pela ocorrência em si. Todos os dias, o mundo é bombardeado com notícias de conflitos reais, do Rio de Janeiro à Palestina e à Ucrânia. Vez em quando, o mundo ainda prende a respiração quando um líder crucial sobe o tom em relação a outro e volta a girar normalmente no dia seguinte, quando nada acontece; mais recentemente, o Brasil, através de operação Polícia Federal, descobriu ter passado por uma grande conspiração para matar o presidente eleito e depor o regime democrático.
Em nenhuma dessas ocasiões, os Estados Unidos foram o palco (apesar de ser um ator ativo na geopolítica mundial), por isso, a violência parece ser apenas a cereja do bolo desse momento de “exceção” retratado no filme. Especialmente porque, até chegar ao terceiro ato, é recheado da crua realidade das pessoas normais — aquelas que não estão no governo nem nos exércitos. Tanto lá, quanto em terras distantes, a guerra pode começar sem que se perceba até ser tarde demais, até que ela esteja em seu próprio quintal e o trabalho deles é apenas registrar no silêncio eterno de uma fotografia ou na reprodução histórica e super interpretativa de uma única frase.
Com um roteiro que foge do convencional e coloca a guerra civil distópica americana sob a câmera e escrita desses jornalistas, conferindo real peso ao papel da documentação histórica através da liberdade de imprensa para estar onde esta acontece, Guerra Civil é tudo, menos uma produção esquecível. A produção sabe balancear muito bem a importância de todos esses personagens, que, por vezes, se tornam coadjuvantes do conflito-protagonista, conferindo real tensão a todo o filme, mesmo em cenas, que se passam à luz do dia, seja na calmaria, seja no caos, onde tudo pode acontecer, pois nada é previsível.
Certamente, um dos maiores acertos da produtora A24 neste ano, com um trabalho de direção e fotografia impecável, o filme eleva o olhar dos personagens, especialmente as femininas, ao nível de arte, de forma natural, sem fazer que percam a humanidade — na verdade, como o último bastião de humanidade em meio ao conflito, o tornando extremamente relevante e impactante aos tempos atuais, bem como, ao futuro, pois a questão inicial, sobre o tipo de americano ou de cidadão que se é no mundo se torna cada vez mais latente.