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Black Sails: a melhor série de piratas que você (ainda) não viu

Ao fazer uma pesquisa rápida sobre Black Sails, esta parece se tratar apenas de mais uma série histórica sobre piratas, com muitas cenas de ação (afinal, a produção executiva é de Michael Bay — diretor conhecido pela franquia Transformers), batalhas marítimas e, claro, a busca por um tesouro. Apesar de Black Sails apresentar tudo isso de forma espetacular, não foram exatamente esses fatores que fizeram com que me apaixonasse pela série e a recomendasse sempre que tenho a oportunidade.

Lançada em 2014 pelo canal Starz, Black Sails (atualmente disponível no catálogo da HBO Max) é uma espécie de prequel de A Ilha do Tesouro, obra clássica de Robert Louis Stevenson. A série conta com quatro temporadas (38 episódios) e é situada durante a Era de Ouro da Pirataria, na Ilha de Nova Providência, nas Bahamas. Tem como protagonistas o Capitão Flint (Toby Stephens) e John Silver (Luke Arnold) — ambos personagens da obra de Stevenson —, mas também piratas da vida real, como Cálico Jack (Toby Schmitz) e Anne Bonny (Clara Paget).

É preciso reconhecer que essa breve apresentação não é tão convincente e admito que, antes de assistir à série, pensava se tratar apenas de uma mistura de Piratas do Caribe com Game of Thrones (não que eu desgoste dessas obras, pelo contrário), mas não poderia ser mais surpreendida. Afinal, por que vale a pena assistir uma série de piratas, finalizada em 2017, que muitos nunca nem ouviram falar?

Black Sails

Protagonistas femininas complexas

A este ponto, pode parecer repetitivo usar o protagonismo feminino como propósito para assistir a uma série. Porém, sabemos que, apesar dos pequenos avanços em relação à representação de personagens femininas no audiovisual, ainda são poucas as séries históricas que conseguem trazer mulheres em papéis de destaque sem reduzi-las a estereótipos.

Black Sails poderia seguir o caminho fácil e apresentar mulheres em posição de submissão ou, então, apenas uma única pirata durona na narrativa. No entanto, a série apresenta diversas personagens femininas, cada uma delas com motivações e conflitos próprios. É impossível colocar as mulheres de Black Sails em uma caixinha simplista: ao mesmo tempo que são fortes e independentes, todas também têm suas paixões e vulnerabilidades, e são tão complexas que é impossível amá-las ou odiá-las completamente.

Além disso, todas possuem conflitos e relações entre si, sem precisar da mediação masculina (sim, Black Sails passa com êxito no Teste de Bechdel), e são mulheres diversas, com as mais variadas posições na sociedade da época, todas agentes da própria história, sejam negociantes, piratas, prostitutas ou até mesmo uma princesa revolucionária.

Diversidade

Algumas séries históricas, sobretudo narrativas que se passam em um contexto europeu, justificam a falta de diversidade dos personagens como se, naquela época, simplesmente não existissem pessoas não-brancas ou LGBTQIA+. Em Black Sails acontece praticamente o oposto: a série traz personagens não-brancos e diversos papéis que fogem à heteronormatividade.

É importante mencionar que não se trata de personagens que aparecem poucas vezes: em Black Sails, pessoas LGBT estão em papéis de protagonismo e não existem de forma ocasional: ao mesmo tempo que a condição — enquanto parte de grupos socialmente minoritários — é um elemento essencial, eles estão longe de se resumir a isso. Dessa forma, a obra normaliza relações interraciais, entre dois homens, duas mulheres, ou até mesmo não-monogâmicas, mas não ignora as implicações que um relacionamento amoroso não-normativo possuía naquele contexto.

Black Sails também consegue escapar dos estereótipos, fazendo com que os personagens sejam agentes da própria trajetória. Os personagens LGBT não são colocados sob uma perspectiva meramente punitiva, nem os negros retratados apenas pelo ponto de vista da escravidão. Sim, há o reconhecimento das injustiças e da opressão da conjuntura (afinal, estamos falando do auge dos impérios colonialistas). No entanto, a série foge das visões simplistas ao apresentar personagens que não estão ali somente para sofrer, mas também para resistir e controlar as próprias narrativas.

Black Sails

Construção dos personagens

Quem nunca se sentiu frustrada com os rumos da trajetória de um personagem ao longo de uma série? Há muitos casos em que nos indignamos porque as ações deixam de ser condizentes com o que foi construído anteriormente, perdendo o seu sentido. Black Sails faz o oposto, uma vez que os personagens se transformam conforme a trama avança e à medida que detalhes de seus passados são revelados.

No primeiro episódio, por exemplo, parece impossível acreditar que um personagem trivial se tornará o famoso Long John Silver, antagonista do clássico A Ilha do Tesouro. Porém, ao final da série, é compreensível entender como e porque ele se tornou o que se tornou.

Apesar das batalhas belíssimas em alto mar, com direito a perseguições de navios gigantescos e muitos tiros de canhão, o foco de Black Sails são os seus personagens e as suas trajetórias. Inclusive, os dois protagonistas, Capitão Flint e John Silver, são retratados de forma praticamente oposta: enquanto o passado de um deles é revelado pouco a pouco, justificando suas motivações, o passado do outro se mantém um mistério, como se a história dele tivesse começado junto com a série.

Além disso, e de modo geral, Black Sails oferece personagens tão complexos e bem escritos que é impossível desprezá-los ou defendê-los completamente. Muitos personagens queridíssimos na primeira temporada acabam se tornando detestáveis ao longo da série e vice-versa. Entretanto, é muito difícil separá-los de forma dicotômica entre heróis ou vilões: eles sentem, têm qualidades, defeitos e tomam decisões acertadas e erradas como qualquer ser humano.

Black Sails

Narrativa coerente — do início ao fim

Escrita com quatro temporadas já planejadas, Black Sails não possui furos de roteiro ou tramas desenvolvidas de última hora com o objetivo de chocar a audiência. Inclusive, em um vídeo-ensaio de Rowan Ellis sobre a série, a youtuber defende que Black Sails seria uma espécie de Game of Thrones que deu certo, sem se perder no caminho.

O final dos personagens faz sentido diante de tudo o que foi desenvolvido ao longo da série, trazendo um dos desfechos mais satisfatórios da televisão. Não necessariamente um final feliz ou triste, mas totalmente coerente com o que foi apresentado durante as quatro temporadas. Toda a narrativa de Black Sails é dessa forma: alguns momentos da primeira temporada são ainda mais impactantes quando descobrimos as motivações dos personagens (que são reveladas nos episódios posteriores) e, inicialmente, se a impressão pode ser a de que a série deixa algumas pontas soltas ou mistérios não resolvidos, tudo sempre é explicado ou desenvolvido no decorrer da trama. Nem mesmo as mortes são gratuitas: elas sempre têm implicações significativas no desenrolar da narrativa.

Mistura de ficção com histórias reais

Apesar de ser um prequel de A Ilha do Tesouro, Black Sails consegue integrar, de forma orgânica, piratas da vida real na narrativa, tornando-a ainda mais interessante. Esses personagens, somados à ambientação baseada em fatos históricos, torna a série mais factível e faz com que desejemos buscar a verdadeira história dos piratas retratados, como Anne Bonny, Cálico Jack, Charles Vane e Barba-Negra e enxergá-los sob uma nova perspectiva. Dessa forma, a série é um deleite para quem gosta de obras históricas, mas também para quem aprecia uma boa narrativa de ficção.

Questionamentos sobre quem são os reais vilões da história

No imaginário popular, os piratas são perversos, saqueadores e homens que estão à margem da “civilização europeia”. Black Sails nos convida a olhar para a História de outra forma. Afinal, os piratas são realmente vilões ou trata-se de uma forma dos impérios (sobretudo o britânico) de controlar a narrativa histórica? Existiram piratas, de fato, maus — o que não deixa de ser retratado na série. Mas, de acordo com várias obras sobre pirataria, eles se resumiriam a esse estereótipo vilanesco.

Black Sails traz discussões complexas sobre colonialismo e as estruturas de opressão da época, cujas consequências persistem (e que, de certa forma, ainda existem) até os dias atuais, e questiona quem é mais perverso: um império colonialista que saqueia terras, toma seus nativos como escravos e marginaliza, tortura e enforca qualquer pessoa que fuja às normas sociais, ou piratas que tentam, de alguma forma, resistir a essas estruturas? O que é mais justo: um monarca que governa baseado na hereditariedade e no direito divino ou um capitão eleito pelo voto de sua tripulação? Um império que concentra todas suas riquezas entre poucos ou um sistema que prevê a divisão de lucros entre os marujos?

Em uma de suas falas mais marcantes, o Capitão Flint declara:

“Quando o rei nos denomina piratas, ele não quer nos tornar adversários. Ele não quer nos tornar criminosos. Ele pretende nos tornar monstros. Pois essa é a única maneira de seus súditos, que temem a Deus e pagadores de impostos, entenderem os homens que mantêm o que é deles e não temem ninguém. Quando digo que há uma guerra chegando, não quero dizer contra o Scarborough, contra o Rei George ou a Inglaterra. A civilização está chegando. E isso significa nos exterminar.”

Black Sails consegue quebrar todas as expectativas que temos em relação a uma série de piratas, discutir as políticas complexas da época, desenvolvendo protagonistas multifacetados — tanto baseados na obra de Stevenson, como na vida real —, tudo isso provando que é possível incluir personagens diversos, sem que isso se torne algo banal. Além disso, nos incita a pensar a respeito da História e sobre quem vilanizamos em nossas narrativas e no próprio imaginário popular.

“Tudo isso será em vão. Teremos sido em vão. Definidos por suas histórias… distorcidos para se adequar em suas narrativas… até que tudo o que resta de nós serão os monstros nas histórias que contam a seus filhos.” — Capitão Flint


Inspirações e referências:
Black Sails: The Perfect Show You’ve Never SeenRowan Ellis
Villains Of All NationsMarkus Rediker
Fathoms Deep — A Black Sails Podcast.