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Precisamos de mais novelas como Totalmente Demais

A última novela exibida no horário das 19h na Rede Globo acabou no dia 30 de maio. Escrita por Rosane Svartman e Paulo Halm, durante seus quase sete meses de duração, Totalmente Demais bateu recordes de audiência e abriu espaço para inúmeras diversas discussões — a começar pelo fato de ser escrita por uma mulher e, capítulo após capítulo, deixar claro que debateria questões importantes de gênero em toda a sua trama.

A protagonista, Eliza (Marina Ruy Barbosa), começa a história fugindo da casa e da cidade onde morava — Campo Claro — para escapar do padrasto assediador que se julgava inocente por nunca ter conseguido encostar um dedo na menina, mas que a comia com os olhos o dia inteiro, chegando a entrar no banheiro enquanto ela tomava banho. Cultura do estupro não é só o ato físico do estupro, e a novela deixa isso bem claro desde o início.

Chegando ao Rio de Janeiro, Eliza é roubada e acaba vivendo nas ruas por um período. Por ter crescido tendo como principal referência masculina um padrasto horrível, ela sempre agiu na defensiva quando qualquer homem tentava se aproximar dela, mas acaba aceitando fazer amizade com Jonatas (Felipe Simas), outro trabalhador das ruas que a defende de dois marginais. Morador de um cinema abandonado, Jonatas convida a menina para dividir o espaço com ele e a ensina a trabalhar como vendedora de flores. Jonatas se apaixona rapidamente por Eliza, mas a relação é ditada por ela do começo ao fim: ele entende que ela precisa de tempo e não vê problema nisso; deixa claro seus sentimentos para ela, mas nunca forçou a barra — o mínimo, mas um bom exemplo que sempre nos dá um pouco mais de esperança.

A trama engrena quando Eliza é descoberta por Arthur (Fábio Assunção), o dono de uma agência de modelos que havia apostado com Carolina (Juliana Paes), com quem tinha uma relação amorosa turbulenta, que conseguiria transformar a garota “pedinte” em uma modelo de sucesso e grande vencedora do concurso Totalmente Demais, promovido pela revista da qual Carolina era diretora de redação em parceria com a Bastille, uma grande empresa de cosméticos. Arthur e Carolina jogam muito alto ao fazer suas apostas, de forma que o fato de Eliza vencer ou não o concurso se torna uma grande questão na vida dos dois. Arthur passa a fazer de tudo para que a menina vença o concurso, levando-a, inclusive, para morar em sua casa para poder treiná-la de perto e monitorar os seus horários. Carolina, por sua vez, faz de tudo para sabotar a garota nas provas do concurso, tendo chegado a encomendar que outra candidata lhe desse Boa Noite Cinderela em uma festa que contava pontos para o concurso.

Existem problemas no meio disso tudo? Sim, existem. Totalmente Demais contou com uma boa dose de mulheres rivalizando com outras mulheres (fosse no amor, fosse no trabalho), um chefe que fez de tudo para seduzir sua modelo (por mais que seus sentimentos fossem verdadeiros, não deixa de ser uma forma de assédio), entre outras situações que dariam muito assunto para problematização. Uma das passagens mais problemáticas da novela, por exemplo, acontece na festa de apresentação das candidatas do concurso, quando um empresário importante começa a dar em cima de Eliza, chegando até mesmo a puxá-la pelo braço. Mas, quando ela parte para a grosseria, é extremamente repreendida por todos os responsáveis pela organização do concurso, uma vez que ela deveria aprender a lidar com aquele tipo de situação e manter a elegância. Mulher é sempre louca quando reage ao machista, está sempre errada, fazendo escândalo onde não devia para deixar todos desconfortáveis. Fiquei consternada que, ao invés de aproveitar a situação para retratar algo realista e desenvolver de forma mais interessante, onde a questão fosse resolvida de forma aceitável, o folhetim prefira simplesmente passar em branco. Eliza é envergonhada em pública, leva bronca e absolutamente nada mais foi dito sobre o assunto. E nada aconteceu com o homem que a tinha assediado, é claro.

A construção de Eliza, no entanto, é um ponto a se elogiar. Ela é uma mocinha fora dos padrões de “mulher-boazinha-que-só-se-lasca-e-vive-em-função-do-mocinho”, que nunca teve medo de viver a própria vida, seguir o seu ritmo e encarar suas escolhas. Eliza tomou conta de si mesma, enfrentou a família quando necessário, não se avexou em reclamar quando achava que as coisas não estavam sendo feitas da melhor forma ou quando agiam de forma errada com ela. Principalmente, Eliza soube se colocar em primeiro lugar, mesmo quando foi chama de egoísta inúmeras vezes por se preocupar mais com a carreira do que com o namorado — quando ninguém julga um homem que faz o mesmo. No final, ela decide passar um ano em Paris a trabalho e é seu namorado quem tira licença do emprego para acompanhá-la, ao contrário do que normalmente acontece, com mulheres que sempre se sacrificam e/ou deixam suas vidas de lado pelo bem de uma relação (no caso de uma relação heterossexual).

Outro núcleo que acredito ter sido abordado com bastante bom senso foi o da família Matoso. Hugo (Orá Figueiredo) torna-se o pai solteiro de Cassandra (Juliana Paiva) e Débora (Olívia Torres) depois de ser abandonado pela esposa, que resolve mudar de vida quando as filhas ainda são bem pequenas. Durante toda a novela, no entanto, Hugo nunca foi endeusado por ter criado as meninas sozinho. Nenhuma mãe solo é glorificada e homem nenhum deveria ser aplaudido por fazer o que mulheres estão acostumadas a fazer sem levar crédito nenhum. Para completar, Suely (Danielle Winits), a esposa, também não é retratada com mais indignação do que um homem seria tratado se tivesse abandonado a família. Falou-se dela algumas vezes com raiva, o que é justificado, mas o próprio Hugo dizia entender que ela quis buscar a felicidade em outro lugar. Não digo que alguém é obrigado a encarar com naturalidade um cônjuge que abandona o lar e os filhos, mas é interessante que o folhetim não tenha malhado a personagem simplesmente por ser uma mulher nessa posição. Um pai que abandona esposa e filhos nunca é visto com a mesma crueldade com que uma mãe é vista na mesma situação — a barra sempre pesa mais para o lado da mulher — e por isso acredito que a abordagem dos autores foi muito cuidadosa.

Além das tramas principais, Totalmente Demais inseriu tramas paralelas esporadicamente para retratar temas tabus, como bissexualidade, homossexualidade em uma família extremamente conservadora, o preconceito racial e a desinformação a respeito do HIV.

A novela contou ainda com personagens femininas fortíssimas, como Rosângela (Malu Galli), Leila (Carla Salle) e Lili (Viviane Pasmanter), todas com características e bagagens completamente diferentes, mostrando que a força feminina pode ser representada de diversas maneiras.

Posso estar sendo otimista, mas acredito que entre problemas e méritos, o balanço do folhetim é positivo. Teria feito algumas coisas de forma diferente? Sem dúvida. Mas acho que Rosane Svartman deu muitos passos além do trivial ao não ter tido medo de colocar o dedo em feridas do machismo e escrever uma novela com muito mais histórias femininas importantes do que masculinas. Mesmo entre um causo e outro envolvendo homens, o foco de Totalmente Demais sempre foi das mulheres, suas lutas e suas formas de lidar com a vida, fossem elas quem fosse. Obrigada Rosane, até a próxima.