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Zélia Gattai: um resgate das memórias da escritora paulistana

É irônico que Zélia Gattai, autora de tantos livros de memórias, seja mais uma escritora brasileira esquecida. O nome da paulistana, descentes de imigrantes italianos, talvez seja lembrado por Anarquistas, Graças a Deus, seu livro de estreia adaptado como novela para a Rede Globo em 1984. Mas Zélia não aparece com frequência entre as referências da literatura nacional.

Afinal, são poucas as mulheres que aparecem nesse tipo de lista. Como se dar destaque a escritoras como Clarice Lispector, Rachel de Queiroz e Cecília Meireles fosse uma prova de que a literatura feita por mulheres não é ignorada. A ideia por trás desse esquecimento da mulher escritora é que o trabalho esquecido não é bom o suficiente, como se não houvesse nenhuma relação de poder envolvida nessa questão.

Comadre, cuéntame cuentos, pedia sempre o poeta chileno Pablo Neruda ao encontrar Zélia Gattai, episódio que é narrado no livro Jardim de Inverno. Famosa pelas anedotas que contava aos amigos, Zélia começou a escrever no final dos anos 1970, quando já tinha 63 anos e alguns netos. Depois de relutar em ser vista como uma autora, lançou 16 livros, entre relatos autobiográficos, histórias infantis e apenas um romance. No entanto, esquecida como uma figura à sombra de Jorge Amado, com quem foi casada por mais de 50 anos, a escritora chegou a receber diversas críticas ao ser eleita para a Academia Brasileira de Letras, em 2001, como se a eleição de Zélia fosse algum tipo de cortesia póstuma ao escritor baiano.

Um exemplo do esquecimento de Zélia é que ela foi ignorada na programação especial da Flip em homenagem à amizade entre Jorge Amado e José Saramago. A jornalista e tradutora espanhola Pilar del Río ainda participou do programa oficial no evento, na mesa Contracorrente, mas não teve oportunidade de sair do rótulo de viúva de Saramago. E Zélia? Ela costumava brincar que o escritor da casa era Jorge, como se só houvesse espaço para um deles, mas falar da obra de Zélia nunca tirou nenhum protagonismo do marido, nunca sequer desviou o assunto.

Teria ela se tornado uma escritora caso não tivesse se casado com Jorge? É difícil imaginar qual teria sido o destino de Zélia se ela e o marido não tivessem se conhecido naquele evento do Partido Comunista, em São Paulo. Sabemos, no entanto, o quanto ela foi corajosa ao decidir publicar Anarquistas, em 1979, quando Jorge Amado já era um escritor conhecido no mundo inteiro. A própria Zélia relata em um de seus livros a insegurança ao mostrar seu primeiro rascunho ao marido.

E, claro, não dá pra pensar na obra dela sem levar em conta a influência e o incentivo de Jorge. Ao ler aquele rascunho, ele disse a Zélia que ela tinha escrito uma boa história, mas que ela deveria contar toda a sua infância em um livro. Foi Jorge também quem incentivou Zélia a escrever sobre a casa deles em Salvador, no livro A Casa do Rio Vermelho.

Mas o inverso também vale. A maior parte dos livros do escritor baiano foi lançada durante o casamento com Zélia, a responsável por bater à máquina todos os garranchos do marido. Ignorar a possibilidade de uma influência de Zélia na obra de Jorge é invalidar o trabalho dela como escritora e até a personalidade dela enquanto mulher que não era apenas esposa, mãe e nora.

Por ter como base os livros de memórias, é como se a obra de Zélia fosse rondada pela ideia de que ficção tem maior valor literário. Ou pela ideia de que os temas dos seus livros são muito domésticos, que tratam de questões familiares, do cotidiano. Os espaços tradicionalmente ocupados pelas mulheres que, quando ganham destaque na esfera pública, são vistos com estranhamento por quem gostaria que esses assuntos permanecessem na esfera privada. Nos livros de Zélia, o leitor é apresentado aos seus familiares, desde os imigrantes italianos até os parentes de Jorge Amado.

Com bom humor e grandes doses de otimismo, o que Zélia faz é contar anedotas cotidianas que revelam informações interessantes também sobre os lugares em que ela morou e sobre os momentos históricos de que foi testemunha. Anarquistas, Graças a Deus, por exemplo, é o retrato de uma São Paulo que ainda estava longe de se tornar metrópole, numa época em que eram poucos os automóveis da cidade. O livro deveria, inclusive, estar em todas as listas de leituras sobre São Paulo, já que a autora cresceu num casarão na esquina da Alameda Lorena com a Consolação e, assim, passou a infância numa das regiões mais famosas da cidade: a da Avenida Paulista.

Outro tema interessante abordado em seus livros é o do exílio no fim da Era Vargas, quando o Partido Comunista foi posto na ilegalidade e Jorge Amado, então deputado federal, teve que sair do país. Zélia, Jorge e o primeiro filho do casal viveram por alguns anos na França até que foram obrigados a se mudar novamente, dessa vez para a então Tchecoslováquia, após serem expulsos pelo governo francês.

Sobre esse período, as pequenas crônicas de Zélia mostram uma Europa pós-Segunda Guerra Mundial e uma visão sobre a vida em alguns países da União Soviética, talvez a parte mais interessante das histórias. Militante do Partido Comunista, a escritora reflete com frequência sobre o socialismo, e o leitor percebe a mudança do olhar de Zélia sobre o sistema político quando ela passa a conhecer casos de corrupção entre os dirigentes soviéticos e quando presencia episódios de repressão contra amigos próximos. Todo o período do exílio é retratado em Senhora Dona do Baile e Jardim de Inverno, que podem ser lidos em sequência.

As anedotas de Zélia têm como personagens, além do já citado Neruda, Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre, Dorival Caymmi, Pablo Picasso, todos retratados nas situações mais corriqueiras. Numa visita ao Brasil para conhecer a Ilha do Bananal, Simone de Beauvoir está morrendo de sede, pede uma “cervejinha” e se encanta com a expressão “estupidamente gelada” para falar da bebida. O personagem mais recorrente é, claro, o próprio Jorge Amado. Assim, por ter tanto acesso ao escritor, Zélia criou um problema aos seus biógrafos. Será que algum consegue tão bem trazer Jorge à vida?

Fugindo um pouco da linha de narrar experiências da própria vida, Zélia também resgata memórias dos seus avós paternos que deixaram a Itália para fundar uma colônia anarquista no norte do Paraná. Como se já não tivesse muita história para contar, ela é descendente de uma dessas famílias que ganhou um terreno do governo imperial para fundar a Colônia Cecília, iniciativa que fracassou em poucos anos. O episódio é narrado brevemente em Anarquistas, Graças a Deus e com mais detalhes em Cittá di Roma, que ainda traz a história da origem materna da escritora. Esse lado da família tinha tradição católica e isso explica a contradição entre a o anarquismo e a religiosidade no título do seu livro de estreia.

Fora os livros infantis, Zélia se aventurou na ficção com Crônica de uma Namorada. Um romance corajoso que retrata a o início da adolescência de Geana, uma menina que, coincidentemente, morava na mesma região de São Paulo que marcou a infância da autora. O despertar da sexualidade da protagonista é um dos principais temas do livro, e é curioso que a personagem passa por um rompante feminista em defesa do prazer feminino. É curioso porque, nos livros de memórias, ela não se manifesta tão diretamente sobre questões feministas.

Zélia Gattai escreveu até os 90 anos. Os últimos livros lançados pela escritora, como Um Baiano Romântico e Sensual e Memorial do Amor, foram como etapas do luto após a morte de Jorge Amado, em 2001. Pouco antes disso, escreveu, em Códigos de Família, histórias sobre o marido para voltar a ter lembranças dele antes que ele ficasse cego e entrasse num quadro de depressão.

Penso que Zélia não gostaria de um final triste para este texto, mas peço licença para compartilhar um conselho que ela recebeu de Pablo Neruda, reproduzido em A Casa do Rio Vermelho, num momento em que ela ainda não imaginava que se tornaria uma escritora:

“— Aprenda mais essa, comadre, um livro de memórias jamais tem fim. A vida continua. Novos fatos vão acontecendo. Um livro de memórias de pessoas como nós, Jorge e eu, não pode ter fim. Nós vivemos a vida ardentemente. Vidas cheias de acontecimentos, bons e maus, sofremos as piores injustiças, desfrutamos as maiores alegrias e recompensas, […]. Um livro de memórias nosso, de Jorge e meu, repetiu, não pode ter fim. Nem nosso, nem de ninguém, riu. […]

Ao dar-nos tão importante lição de vida, Pablo estava longe de imaginar que um dia sua comadre também acabaria escrevendo livros, livros que, inclusive, contariam suas histórias.”

A conversa aconteceu na última visita de Neruda à casa de Zélia e Jorge, que hoje é museu em Salvador. Quando o poeta já tinha anos de anotações que seriam reunidas no livro Confesso que Vivi. E Zélia, bem, ela dizia em entrevistas nunca ter feito um apontamento sequer para os seus livros. Foi tudo obra da memória.

3 comentários

  1. Me senti um pouco envergonhada ao ler esse texto, envergonhada por nao conhecer a obra de Zélia e acabar conhecendo ela como a mulher do Jorge. Adicionarei a minha lista de leituras pra ontem e pretendo também finalmente ir visitar a casa deles. Obrigada pelo texto.

  2. Interessante como vim para aqui: estou revisando um texto que mencionava “o romancista Jorge Amado e sua esposa, Zélia Gattai”. Daí pensei, ela não foi só esposa dele, né? E me dei conta que conhecia pouco, muito pouco, sobre sua obra. Gosto muito do gênero de memórias, e espero ler em breve mais coisas dela.
    Um abraço!

  3. Que escritora mais maravilhosa! A conheci quando tinha 16 anos, com o livro “Anarquistas, graças a Deus”. Assim que terminei de ler o livro, o iniciei novamente. Sua escrita é tão envolvente que por vários momentos eu me sentia em uma sala de estar simples e acolhedora, escutando as histórias da família italiana que teve que adaptar em uma São Paulo em expansão, da boca de uma velhinha querida! Zélia Gattai é a insígnia da escritora que não morreu, e não poderá morrer jamais!

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