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Wicked: o pessoal, o político e o discurso

Como boa pseudocult, eu costumava me achar fã de O Mágico de Oz. Parecia uma ótima história, o que poderia estar errado ali? Aparentemente nada, até que eu assisti Wicked, produção da Broadway cuja versão brasileira está atualmente em cartaz no Teatro Renault, em São Paulo. Desde então, não consigo parar de pensar sobre política, discurso e o que isso tudo tem a ver com a gente.

Atenção: este texto contém spoilers!

“Discurso” aqui é usado no sentido sociológico do termo, no sentido de exposição ideológica (ainda que não declarada) e que serve ao propósito da perpetuação dessa mesma ideologia. Não existe discurso neutro, existe apenas o discurso do lado que ganhou a batalha e, com isso, o direito de contar a história. Nunca tinha pensado que essa ideia se aplicaria a O Mágico de Oz, mas Wicked me mostrou como eu estava errada.

O musical

Não sabia muito sobre o lado “B” da trama. Minha impressão era que a peça contava a história de amizade entre Glinda, a Bruxa Boa do Norte (Fabi Bang), e Elphaba, a Bruxa Má do Oeste (Myra Ruiz), e era ambientada anos antes da história do filme, ponto. Então cheguei lá e senti como se jogassem uma bomba na minha cabeça.

Wicked é uma versão autônoma derivada do filme de 1939 e não tem relação com a história original do livro de L. Frank Baum, mas eu ainda queria beijar Stephen Schwartz e Gregory Maguire por essa trama. É a mesma história, se passa ao mesmo tempo, mas é contada do ponto de vista oposto. A maior diferença é que Wicked pega a narrativa em um ponto anterior ao filme. É basicamente a história do Outro (voltaremos a esse ponto na conclusão).

Elphaba, a vilã do filme, é a protagonista da peça. Filha rejeitada de um governador, ela acaba indo para uma faculdade para acompanhar e cuidar da irmã mais nova, deficiente física (Nessarose, a dona dos sapatinhos de rubi que acaba falecendo quando Dorothy cai em sua cabeça). Lá, Elphaba descobre e desenvolve seus talentos mágicos sem precedentes, ao mesmo tempo em que sem querer é colocada no mesmo quarto que sua rival e acontecimentos peculiares preocupam a jovem bruxa — tudo ao mesmo tempo, como na vida real.

Não leve seus filhos, irmãos, primos com menos de 13 anos e usem o gancho para conversar sobre política com os adolescentes. Muita gente (como eu) tem a ideia errada de Wicked, mas essa definitivamente não é uma história para crianças e elas vão terminar entediadas (como o menininho sentado ao meu lado que passou 90% do tempo mexendo no celular; não era culpa dele estar ali, ele apenas não tinha como entender o que acontecia naquele palco, não naquele momento).

O pessoal

Apesar de se passar com uma bruxa de pele verde em uma terra fictícia que fica além do arco-íris, a história de Wicked, a um nível pessoal, é muito comum: uma menina sofre discriminação por ter nascido diferente — no caso, por ter uma cor de pele fora do padrão.

Desde o nascimento, Elphaba foi preterida pelo próprio pai, relegada ao papel de cuidadora da irmã mais nova, que recebeu o direito de sucessão ao “trono”, apesar de ser mais nova. Além disso, há sua rival de praxe: Glinda, a Bruxa Boa do Norte, “perfeita”, dentro dos padrões de beleza, popular, mimada e confiante de que é, de fato, a dona do mundo. Pelo menos, a princípio.

A primeira impressão é de que todos os personagens vão ocupar os papéis que nasceram para ocupar. Elphaba tem tudo para ser o estereótipo da personagem boazinha que come o pão que o diabo amassou, mas permanece gentil e submissa, vencendo por uma mistura de de dons naturais com a bondade inata do seu coração. A peça, no entanto, deixa claro que não, ela não é mais uma dessas. Em cinco minutos ela mostra seus poderes, atrai a atenção que lhe é devida e declara seu ódio gratuito e sem nenhum fundamento por Glinda — porque “mocinha” não significa “perfeita” e todas nós, inclusive quem não esteve especialmente baixo na hierarquia social escolar nem sofreu bullying propriamente dito, já sentiu em algum momento essa implicância gratuita pelo outro baseada exclusivamente em primeiras impressões.

À medida que a história avança, Elphaba mostra que, além de todas as características anteriores, ela também é orgulhosa, idealista, ambiciosa e não dá o braço a torcer. Mesmo humilhada, ela mantém seu terreno e dá a deixa para que Glinda venha também se redimir do estereótipo detestável que deram a ela de um jeito realista, sem que sua personalidade mude. Elas, então, constroem uma amizade que é 40% do valor final da peça pra mim: não uma amizade feminina comum que vemos na cultura pop, que parece muito boa, mas no fim deixa no ar aquela reserva que ajuda a perpetuar no inconsciente mais um estereótipo, o da rivalidade feminina. Elphaba e Glinda constroem uma amizade de verdade, muito mais próxima da que tenho com as minhas amigas na vida real, em que uma sempre parece pronta até mesmo a negligenciar a própria segurança em prol da outra. O tipo que até vemos na ficção, mas entre homens ou, no máximo, entre um homem e uma mulher (90% das vezes com algum interesse romântico secundário).

Elas não passam a peça às rusgas. Uma vez concretizada a amizade, ela é final. Mesmo quando têm um interesse romântico comum. Mesmo quando uma obviamente perde essa batalha. Mesmo quando a vida está em risco. Mesmo (supostamente) depois da morte. Elas estão juntas e agem com plena consciência de que estão no mesmo barco e precisam se manter assim.

O político

Acredito que, quando se trata de meios de comunicação de massa, “o pessoal é político” assume uma conotação muito verdadeira. A relação entre Elphaba e Glinda já é uma faceta política da obra. Mas escolhi fazer essa divisão porque Wicked possui uma faceta política ainda mais escancarada e geral.

Paralelamente à amizade entre as personagens se desenvolve uma trama abertamente política envolvendo a exclusão sistemática dos animais. De forma mais clara, não é sobre especismo no sentido usado na luta dos defensores dos animais da vida real, mas o especismo como metáfora para a exclusão de outras minorias dos espaços públicos. Nesse caso, a obra parece fazer referências mais diretas à exclusão e perseguição de determinadas ideologias políticas. Com o discurso “animais devem ser vistos, não ouvidos”, os animais que fazem parte do corpo docente da faculdade vão sendo aos poucos demitidos, presos, perdem suas habilidades de fala e passam a ser confinados em jaulas.

Elphaba, que já mostrava certa afinidade com o discurso desses professores que sofrem perseguição, se vê incapaz de acatar os novos ideais totalitários que estão sendo impostos. Ela acaba contando com a ajuda inesperada de Fiyero (Jonatas Faro/André Loddi), o príncipe rebelde sem causa que rejeita a educação tradicional e, no curso da história, surpreende a todos e a si mesmo ao descobrir sua veia ideológica e militante. Nesse momento, Elphaba é convocada pelo Mágico (Sérgio Rufino), a quem sonha conhecer, e então parte para a Cidade das Esmeraldas carregando sua mala e seu idealismo e, inocentemente, acreditando que ela e o Mágico formarão uma dupla que vai desvendar e parar as arbitrariedades políticas que estão sendo cometidas. Mas, ao chegar, ela descobre que o Mágico é, na verdade, o ditador que está por trás de todos os desmandes e quer se aproveitar dos poderes delas. Mostrando a que veio, Elphaba não apenas se recusa a ficar do lado do Mágico, como se coloca abertamente contra ele, assumindo assim o lugar do Outro.

O Outro, politicamente falando, é aquele que é rechaçado, demonizado, negado por quem ocupa o poder. Em uma democracia, a ideia do outro é (ou deveria ser) bilateral; independente de quem está no poder agora, há espaço para a discordância — você é o outro pra mim, eu sou o outro pra você, independente do nível de animosidade. Em regimes ditatoriais e totalitários, a ideia do Outro é absoluta: quem não concorda com a ideologia dominante é o inimigo e deve ser exterminado.

Quando Elphaba passa a ser o Outro, Wicked coloca toda a história de O Mágico de Oz sob uma nova perspectiva — e, basicamente, destrói a sua infância.

O discurso

Em resumo, Wicked é uma peça abertamente sobre o discurso. Os acontecimentos, as músicas, a trama e a produção de outro mundo estão ali, sim, mas o que faz a peça é o que acontece por trás. A intenção do argumento fica muito clara desde o começo, quando a peça abre com a suposta morte da Bruxa Má, quando o povo festeja e canta que “o mal precisa ser exterminado e não pode ser perdoado”. Ninguém parte de um discurso tão brusco e absoluto sem um quê forte de ironia.

Não é uma mensagem que fica nas entrelinhas, é uma mensagem que é jogada na sua cara mesmo que você esteja ali com o objetivo único e exclusivo de acompanhar mais um musical leve. Wicked não tem nada de leve (mas tem, sim, seus momentos de alívio cômico).

Durante as quase três horas de duração, o musical destrincha da maneira mais didática possível e imaginável o conceito de discurso e como ele sempre serve a um ideal. Wicked é sobre política, e sobre como é fácil se deixar levar por um discurso aparentemente inocente, sem atentar para todas as camadas que o constroem e todos os interesses, fatos e variáveis envolvidos no processo. Por mim, Wicked seria matéria obrigatória em todas as escolas como parte de um programa de educação para a vida. Fica minha sugestão.

10 comentários

  1. Amei o seu texto e fiquei com vontade de assistir ao musical e viver essa experiência. Desconhecia Wicked. Sempre gostei da história do Mágico de Oz porque achava lindinha aquela moral toda sobre bondade e coragem e eu amava/amo o Espantalho e também tenho um apego àquela coisa de que não existe lugar como o nosso lar, enfim, sempre foi muita magia pra mim. Mesmo: daquelas que leu livro, viu filme, viu no teatro. Pensando hoje, acho bacana ter uma história com uma personagem principal feminina que é uma heroína (veja bem, não é o mesmo que dizer que seja uma história feminista). Bom, dia desses eu vi um vídeo onde um cara falava que O Mágico de Oz é uma história onde o heroísmo (Dorothy), a sabedoria (Bruxa Boa) e a maldade (Bruxa Má) estão representadas todas por mulheres e, bem, normalmente as representações são masculinas. Aí agora fui catar sobre outra coisa que esse cara falava que era a semelhança com Star Wars e achei uma informação que se relaciona com o seu texto que é sobre os habitantes da Cidade das Esmeraldas usarem óculos com lentes verdes para verem tudo verde, por determinação do Mágico. No primeiro livro, a Cidade não seria totalmente verde, mas o Mágico queria que os habitantes a vissem apenas assim. No entanto, alegava que eles precisavam dos óculos para se protegerem da intensidade do brilho das esmeraldas. Quer dizer, eles viam a cidade com as lentes do ditador acreditando que era para o seu bem. É uma boa metáfora, não? Enfim, obrigada pelo seu texto, só dá pra agradecer mesmo quando a gente lê uma coisa linda dessas. <3

    1. Aff, miga, maravilhosa <3
      Sem nem o que dizer do elogio, e sempre amo seus comentários (mesmo quando são só "em off") porque você sempre traz referências e informações novas. Essa dos óculos verdes, por exemplo, eu não fazia ideia.

  2. Nossa, essa história. Foi tão maravilhosa.

    É incrível aquela hora que a Elphaba foi jogada naquela situação de ter que apoiar o mágico e ela se negou totalmente e abraçou aquela situação de ser uma “maldita” enquanto cantava Defying Gravity e deixava a gente de boca aberta. E a construção da figura de bruxa dela. O chapéu foi o primeiro lá no começo, mas ali naquela salinha ela pegou a capa e a vassoura e abraçou a figura de bruxa pra valer, voou e tudo mais.

    Essa peça tem tantas e tantas camadas. É sobre amizade feminina, sobre ser discriminado, sobre amor não -correspondido, política, propósito de vida. Quase morri do coração quando fui ver. E tou até pensando em ir ver de novo, por olha.

    1. Ana, eu quero TANTO ver de novo também.

      É uma peça tão maravilhosa em tantos níveis que acho que mil textos ainda não dariam para abordar tudo! Essa parte da caracterização da bruxa realmente é muito ótima mesmo. E Defying Gravity QUE MÚSICA.

  3. Eu sempre achei o Mágico de Oz uma parada meio boba, tanto o filme como o livro. Mas quando eu li Wicked, aí sim minha vida mudou.

    Que bom que você foi assistir a peça sem saber a história e ainda assim gostou e aprendeu as lindezas dela.. O livro é sensacional, arranje uma cópia dele! Assim que terminei também desejei, e ainda desejo que se torne obrigatório na vida de todas as pessoas

    1. Nossa Tayná, já estou desejando MUITO o livro. Não estava ligando especialmente para ele não, mas sua indicação com certeza vai me fazer ir atrás.

      E olha que eu gostava de O Mágico de Oz antes. Mas nunca mais vou conseguir assistir da mesma forma.

  4. gente, querendo DEMAIS ver depois desse texto. sou mega fã das histórias de Oz (inclusive, atualmente em um projeto de ler todos os livros sobre elas este ano), então desde que descobri Wicked, já queria ver (só pela curiosidade mesmo), mas esse texto me deu toda um gás do tipo PRECISO VER.

    1. Menina VEJA. Se puder, VEJA MESMO. Vale a pena em TANTOS NÍVEIS que não dá nem pra comentar tudo em um texto só.

      E se quiser voltar depois pra comentar, to aqui!

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