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Roller Derby: “Coloque seus patins e seja sua própria heroína”

A última vez que Bliss Cavendar (Ellen Page) havia andado de patins, ela ainda era uma criança e eles eram cor de rosa com adesivos da Barbie. Tudo não passava de uma brincadeira e aquele equipamento era o brinquedo que a tirava do tédio na pacata cidade de Bodeen, interior do Texas, um dos cenários do filme Garota Fantástica (Whip It!), do qual Bliss é a protagonista.

Avançamos, então, para a adolescência da personagem que após crescer participando de concursos de beleza, está no fim do ensino médio e trabalha meio período na lanchonete da cidade, dividindo o expediente e as aulas com sua melhor amiga. Fã de bandas de rock, inconformada com o tédio de sua cidadezinha e com sonhos da cidade grande, Bliss descobre o roller derby de uma maneira inusitada: quando duas jogadoras entram de patins em uma loja em que ela está com sua mãe. Elas distribuem folhetos sobre uma exibição do esporte, e Bliss fica curiosa e ao mesmo tempo encantada com aquela novidade.

Num pequeno ato de rebeldia, a garota mente para os pais e vai com sua melhor amiga à partida de exibição do esporte, se encontrando com as atletas que logo se tornam suas heroínas. Ao se aproximar da equipe que se apresenta, e também receber incentivo pela capitã da equipe, Bliss decide treinar para ser parte do time. E é aí que velocidade e a força de Bliss começam a se mostrar no filme e nas pistas e a garota se torna Babe Ruthless durante as partidas de derby.

O filme de 2009 marca a estreia como diretora da consagrada atriz Drew Berrymore, que também atua no filme, e foi baseado no livro Derby Girl de Shauna Cross, escritora, roteirista e ex-atleta de roller derby. Por se tratar de uma história de amadurecimento (coming of age), Garota Fantástica retrata inúmeros conflitos da juventude, como a relação familiar e a frustração das expectativas parentais, brigas entre amigas e um primeiro romance adolescente, ao mesmo tempo em que revela uma certa dose de empoderamento feminino e juvenil e, obviamente, serve de vitrine para o roller derby.

É através do esporte, ainda pouco falado no Brasil, que a protagonista encontra sua força, suas paixões, determinação, um sentimento de pertencimento, novas amizades e aprende a lidar com as consequências de suas ações. As cenas das partidas também chamam a atenção por outros fatores, seja pela velocidade, pelas manobras e até mesmo pela brutalidade dos golpes dados e recebidos pelas jogadoras. O roller derby divide o protagonismo do filme com Bliss, e aguça a curiosidade dos telespectadores que ainda não conhecem o esporte.

As regras do jogo

O roller derby surgiu nos Estados Unidos na década de 1930, e no início se tratava de uma corrida sobre patins, mas com marcação de tempo. Em 1935 a modalidade se transformou em um esporte de contato. Nas partidas, dois times de 15 patinadoras competem em dois tempos de 30 minutos. Cada tempo consiste em múltiplos jams, períodos de até dois minutos em que ambos os times podem marcar pontos, e em cada jam cinco jogadoras de cada time podem participar. O jam pode acabar antes do prazo de dois minutos no caso da jogadora jammer, a pontuadora, marcar pontos.

As posições das jogadoras numa partida de roller derby podem ser de jammer, aquela que usa uma estrela em seu capacete e é responsável por marcar pontos para seu time. A jammer deve passar por suas oponentes quantas vezes forem possíveis, dando voltas na pista e contornando as bloqueadoras. Nesse sentido, as jogadoras blocker (bloqueadoras) possuem dois grandes objetivos: impedir que a jammer oponente ultrapasse seu time e auxiliar a jammer de seu time nas suas ultrapassagens. O bloqueio é formado pelo maior número de blockers de cada time na pista. Além disso, há a jogadora pivot, uma bloqueadora que possui uma listra no capacete, e a única autorizada a aceitar um passe-estrela da jammer, podendo se tornar a nova jammer.

O esporte pode ser praticado em dois diferentes tipos de pista, como a inclinada (banked track), presente em Garota Fantástica, e a plana (flat track). As jogadoras podem bloquear suas oponentes com os quadris, a parte traseira, e ombros, não sendo permitido bloquear as oponentes pelas costas, com tropeços e/ou cotovelos. Responder juíz(a)? Nem pensar. E para as patinadoras que agem contra as regras, as penalizações chegam até 30 segundos.

O roller derby apesar de um tanto quanto desconhecido, possui estruturas bem definidas. A Associação Feminina de Flat Track Derby (Women’s Flat Track Derby Association – WFTDA) é um órgão internacional que representa mais de 450 jogadoras em seis continentes. A organização tem como objetivo governar e promover o roller derby, ao mesmo tempo em que deseja revolucionar o papel das mulheres (sejam elas cis, trans ou pessoas não-binárias) no esporte através da voz de seus membros ao redor do mundo.

Expectativas x realidade

Depois de entender um pouco mais sobre o esporte, é possível investigar os pontos de verossimilhança de Garota Fantástica e as atletas do mundo real. Para isso, conversei com Sam Bernal-Damasco, jogadora de roller derby e apaixonada pelo esporte.

Sam é natural do Rio de Janeiro e vive há seis anos em Providence, Rhode Island (EUA), onde trabalha como programadora. Nas partidas de derby, ela adota o nome de Brazilian Whacks, que de acordo com ela faz “brincadeira com a depilação aqui conhecida como brazilian wax, mas com whacks”, gíria que pode ser traduzida como porrada, paulada e pancada. Confira o nosso papo, realizado em setembro de 2019.

Como conheceu roller derby?

SAM BERNAL-DAMASCO: Um dia eu acordei com um e-mail encaminhado da minha namorada (na época, apenas um contatinho) com a informação sobre um recrutamento. Ela achou que seria um bom esporte/hobby para eu começar. Coincidentemente, uma amiga minha no Brasil tinha acabado de entrar pra seleção Brasileira de derby para o mundial de 2018 (oi, Kira!).

E como começou a praticar?

S.B.D: Por conta do e-mail, eu fui no meet & greet e foi amor à primeira vista. Imediatamente já comecei o processo de recrutamento. Na liga em que eu jogo são 10 semanas de skills (habilidades) mínimas, onde te ensinam basicamente a andar de quad (tipo de patins), coisa que nunca tinha feito na vida. Depois das 10 semanas tem um assessment (avaliação) pra ver se você consegue cair de maneira segura, parar e basicamente andar de quad. Depois são mais 10 semanas de treino com contato, onde você aprende como bater, cair e levantar.

Em que liga(s) joga/jogou?

S.B.D: No momento jogo na Providence Roller Derby, uma das ligas fundadoras da WFTDA, pela minha segunda temporada, indo pra terceira em 2020.

Qual a sua posição?

S.B.D: No meu home team (Sakonnet River Roller Rats), eu jogo de jammer. Pelo Travel Team, no qual eu estou no time B (Killah Bees), eu jogo tanto de blocker quanto jammer.

Como é a prática/os treinos?

S.B.D: Na minha liga tudo depende se você está no Travel Team ou não. No Providence Roller Derby nós temos dois times no Travel Team: As Riveters (time A), que jogam partidas sancionadas para o ranking mundial de ligas pela WFTDA; e as Killah Bees (time B), que praticam junto com as Riveters e participam de torneios e jogos para os times B. E muitas das jogadoras que começam no time B eventualmente vão para o time A.

Quando você é parte do Travel Team, a semana de treino é bem intensa. Temos treino nas terças por duas horas só para o Travel Team, nas quartas nós temos treino para a liga inteira por duas horas, e nos domingos nós temos scrimmage (um treino amistoso) com a liga inteira, mais outro treino de duas horas com o Travel Team. Os treinos em si são condicionados pela treinadora que guia, a nossa liga tem treinadoras especializadas em certas habilidades, mas sempre é estruturado para ser inclusivo de todos os níveis de habilidade que temos na liga.

A temporada é dividida entre Travel Team e Home Season. De dezembro a julho o Travel Team está a todo vapor, e no final da primavera aqui (entre abril e maio), as pessoas que só jogam na Home Season voltam pra liga, o que dá um gás a mais pra galera que está jogando desde o começo do ano.

Sam Bernal-Damasco, imagem fornecida pela entrevistada

Como é o relacionamento com o time?

S.B.D: Por passar maior parte da minha semana com meu time, a gente acaba sendo bem próximas. Felizmente a minha liga tem um relacionamento muito bom entre si e ainda consegue manter um bom nível de competitividade. Recentemente recebemos muitas transferências de ligas próximas por conta do nível de toxicidade nos relacionamentos pessoais dentro dessas.

Quais são os benefícios do roller derby pra você?

S.B.D: O benefício físico é inexplicável! O esporte carrega um atletismo que eu não esperava quando comecei a jogar, o que acaba ajudando nos fatores psicológicos e emocionais. Já entrei em treinos mal querendo estar lá e saí me sentindo uma pessoa nova. Além do mais, tenho muita sorte da minha liga ser incrivelmente solidária com as patinadoras novas e inexperientes, creio que isso vem da cultura do esporte em si. Por passar muito tempo pensando, estudando e jogando derby o esporte acaba sendo a maior parte da minha vida social, o que é incrível!

Você já assistiu ao filme Whip It (Garota Fantástica, com Ellen Page). Quais as semelhanças e diferenças você enxerga em relação a sua prática?

S.B.D: Adoro Ellen Page e adoro Whip It!, porém o filme retrata o banked track derby, não o flat track. Mas o senso de comunidade e união é bem retratado no filme. A maior diferença entre o Garota Fantástica e o derby que jogo é a quantidade de violência. Derby é incrivelmente técnico e estratégico, o que não é mostrado no filme.

Para você, qual a principal diferença entre o roller derby e outros esportes?

S.B.D: A ideia que você não precisa ser forte ou incrivelmente atlético para jogar derby. Não importa o tipo do seu corpo ou se você nunca praticou um esporte antes, tem espaço pra todas e todos na pista.

Você enxerga alguma relação entre o roller derby e o empoderamento feminino?

S.B.D: Derby é um esporte feito majoritariamente por mulheres e é feito para todas e todos. Eu, pessoalmente, nunca vi um esporte agressivo de contato ser majoritariamente jogado (e celebrado) por mulheres (cis ou não), trans e/ou não-binárias.

Imagem fornecida pela entrevistada

Enquanto isso, no Brasil…

Apenas duas ligas brasileiras fazem parte da WFTDA, sendo elas a Ladies of HellTown e a Gray City Rebels, ambas de São Paulo e já consolidadas na capital paulista. Contudo, existem outras ligas independentes espalhadas pelo país, que inclusive competem anualmente no Brasileirão de Roller Derby. A competição nacional é organizada pelas próprias equipes e muitas jogadoras competem também a nível internacional, como na Copa do Mundo de Roller Derby. A Brasil Roller Derby foi uma das 13 seleções da primeira edição do evento, em 2011, e também marcou presença nas edições de 2014 e 2018.

No entanto, apesar de estar conquistando seu espaço, o roller derby no país ainda está longe da popularidade. E este tópico também foi explorado na entrevista com Sam, que lembra que “jogar derby não é brincadeira, nós somos atletas. Há muito sacrifício, suor e sangue para manter uma liga de pé. E como qualquer atleta nós precisamos de patrocínio, suporte e público”. Quando questionada sobre como podemos acompanhar mais o esporte, Sam diz: “Infelizmente Derby ainda é um esporte muito elitista, sendo a maior concentração de ligas fora da América do Sul, mas há sim como acompanhar. A maioria dos times que fazem torneios postam os vídeos no YouTube. Os playoffs internacionais pela WFTDA têm um serviço de streaming (pago, infelizmente) ao vivo, mas eventualmente fazem o caminho do YouTube também. O mais importante segue sendo: SUPORTE SUA LIGA LOCAL! Há outras maneiras de participar de Derby sem jogar! Assista aos jogos, seja um non-skating oficial [pessoas que ajudam em tarefas durante os jogos, como marcar a pontuação, tempo de penalidade, identificação de penalidade, entre outras], ou uma juíza, há sim formas de participar!”

Em Garota Fantástica, Bliss também se dedica ao roller derby para além dos treinos. No decorrer do filme, é possível identificar importantes mudanças de rotina e atitude da protagonista, seja em relação à sua vida acadêmica e profissional, aos relacionamentos com a família e amigos, e também consigo mesma — afinal, estamos falando de um coming of age.

A vida real está longe de ser um filme como Garota Fantástica, mas é possível se inspirar em histórias como a de Bliss, e também a de Sam. Se como nossas personagens (a ficcional e a real), você se interessou pelo esporte, que tal se aproximar de uma liga? Ou quem sabe até mesmo montar a sua própria? Para saber mais sobre a realidade do roller derby no Brasil, é possível entrar no grupo Roller Derby – Brasil no Facebook, que é “dedicado a jogadores e todos mais que queiram fazer parte do universo do Roller Derby”. Citando uma fala de Garota Fantástica: talvez seja a hora de colocar os seus patins e ser sua própria heroína.