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O mundo das irmãs Lisbon

Desde a primeira vez que ouvi falar sobre As Virgens Suicidas, filme de Sofia Coppola adaptado do romance homônimo de Jeffrey Eugenides, eu soube que assisti-lo não seria uma experiência qualquer.

Ambientado na década de 70, o filme conta a história das irmãs Lisbon, jovens entre 13 e 17 anos que são criadas por pais super protetores e bastante religiosos que tentam a todo custo mantê-las afastadas dos males do mundo em que vivem, mesmo que isso signifique privá-las de experiências comuns da adolescência e isolá-las da comunidade onde moram. A criação tão rígida, baseada no conservadorismo e puritanismo católico, imediatamente cria uma aura de mistério em torno das irmãs, que encanta e faz com que sejam vistas quase como santas pelo meninos que narram a história, além de fazer com que a família seja alvo constante de fofocas na vizinhança – uma situação que só se agrava após a tentativa de suicídio da caçula, Cecilia (Hanna R. Hall).

Aos 13 anos, Cecilia é uma jovem aparentemente normal, socialmente bonita e com uma vida inteira pela frente. Mesmo vivendo com pais super protetores e extremamente rígidos (interpretados por Kathleen Turner e James Woods), Cecilia não parece uma menina traumatizada e não deixa transparecer os conflitos que tomam conta de si. Sua tentativa de tirar a própria vida surpreende aos pais, que acreditavam genuinamente estar fazendo o melhor pelas suas filhas durante todo o tempo. Quando questionada pelo médico sobre os motivos que a levaram a tomar uma atitude tão extrema, já que nem sequer tem idade para saber o quanto a vida pode ser má, Cecilia responde que ele, obviamente, nunca foi uma menina de 13 anos. E ela não poderia estar mais correta.

As Virgens Suicidas 2

A verdade é que, embora nossas experiências sejam únicas e impossíveis de ser comparadas, a adolescência não costuma ser um período fácil pra ninguém. Fora mudanças físicas, conflitos internos e dilemas típicos dessa fase da vida – que são complexos por si só e inegavelmente capazes de atormentar até o mais cético adulto –, as cobranças impostas pela sociedade também surgem de forma bastante assustadora nessa mesma época, transformando completamente o mundo que conhecemos até então. E se esse mesmo mundo não é, de modo algum, gentil com suas mulheres, não há, então, porque não ser igualmente – senão mais – cruel com suas garotas adolescentes.

Só no Brasil, a incidência de suicídios entre jovens de 10 a 14 anos cresceu 40% entre 2002 e 2012, enquanto entre jovens de 15 a 19 anos ele cresceu 33,5% de acordo com o Mapa da Violência – publicação que faz levantamentos baseados nos dados coletados pelo Ministério da Saúde. Segundo estatísticas da Organização Mundial de Saúde (OMS), o suicídio já é a segunda causa de morte mais comum entre pessoas de 15 a 29 anos de idade no mundo, perdendo apenas para acidentes de trânsito. Além disso, embora a taxa de suicídios entre pessoas do sexo masculino sejam maiores, dados da própria OMS provam que, só de 2010 a 2012, o índice de mulheres que tiraram a própria vida cresceu quase 18% – um número que, não por acaso, tende a crescer em países onde a diferença de gênero, o machismo e a cultura do estupro aparecem com mais força.

Numa sociedade que tenta, desde muito cedo, limitar suas mulheres criando padrões e regras que seriam ridículas se não fossem trágicas, a prisão das irmãs Lisbon se torna uma representação simbólica daquilo que todas nós vivemos em alguma medida. Assim como Cecilia, Lux (Kirsten Dunst), Bonnie (Chelse Swain), Mary (A. J. Cook) e Therese (Leslie Hayman) foram privadas de viver a vida que queriam pelos medos da mãe, que apoia a criação das filhas em conceitos pregados pela Igreja Católica, e pelo pai, que nunca foi capaz de fazer nada para verdadeiramente ajudar as filhas, muitas meninas são privadas de conhecer o mundo que as cercam, de fazer as próprias escolhas e de conhecer a si mesmas pelo simples fato de serem mulheres. Desde muito cedo, meninas são ensinadas a se esconder, como se vestir e se portar, a ter vergonha dos próprios desejos, a reprimir seus impulsos e não explorar a própria sexualidade.

E essa, talvez, seja a crítica mais importante presente em As Virgens Suicidas. Embora seja muito difícil determinar o que leva uma jovem a cometer um ato de violência contra a própria vida – ainda que depressão, bullying, mudanças abruptas e conflitos com os pais sejam motivos frequentes nesses casos – e que, no filme, não tenhamos acesso ao que se passa na cabeça das cinco irmãs, uma vez que a história é narrada pelo ponto de vista de um grupo de garotos, é perceptível o quanto suas vidas são problemáticas e como essa realidade foi um gatilho para que elas desenvolvessem um quadro depressivo, construindo um universo para si mesmas como escape, um lugar onde trançavam os cabelos umas das outras e podiam ser quem verdadeiramente eram, uma vez que a realidade havia se tornado tão melancólica e cruel. Mesmo que saibamos muito pouco sobre Bonnie, Mary e Therese, o fato de todas elas decidirem tirar as próprias vidas mostra que Cecilia não era um caso isolado e que a sexualidade latente de Lux também nunca foi o problema.

As Virgens Suicidas 3

É triste pensar que, preocupados em manter suas filhas longe das tentações adolescentes, os pais tenham deixado de enxergar o verdadeiro transtorno que culminou no suicídio de Cecilia e, posteriormente, de Lux, Bonnie, Mary e Therese – e mais triste ainda é pensar que, cegos por dogmas religiosos ou movidos pela crença de que conflitos vividos por adolescentes não são importantes, muitos pais deixam de enxergar doenças como a depressão e a ansiedade. Da mesma forma que transtornos mentais em adultos são vistos como tabus, adolescentes são silenciados e têm seus problemas tratados como uma mera busca por atenção – ou como uma mentira –, sendo muitas vezes motivo de chacota. É só uma fase, eles diriam. São só os hormônios. É só coisa da sua cabeça, diriam eles mais uma vez.

Lembro de, aos 13 anos, ter muitos dos meus próprios sentimentos invalidados por pessoas mais velhas e como essa fase foi particularmente difícil pra mim, desenvolvendo alguns traumas que carrego até hoje. Lembro também de todos os jovens que apareciam em jornais locais, na internet ou na televisão, por terem pulado de um prédio específico de Brasília, pondo fim a própria vida. Muito se falava sobre a má influência nessa época, sobre a falta de religião (!) na vida desses jovens e como eles eram fracos (!) por tomarem tal atitude. No entanto, nada era questionado sobre os problemas que eles estavam enfrentando, sobre os gatilhos que os impulsionaram, muito menos sobre como doenças mentais são problemas reais, que não são tratados com orações e que não vão embora quando colocamos um sorriso no rosto, mas que necessitam de acompanhamento médico e/ou medicação, e que não fazem distinção de idade, raça ou classe social. Não existe uma vida, muito menos uma pessoa imune aos efeitos de um transtorno mental.

Se vivemos numa sociedade que vende a ideia de uma felicidade compulsória e que é incapaz de lidar com alguém que saia “fora da linha”, a perspectiva de um adolescente que deseje tirar a própria vida já é, por si só, inaceitável. Mas a vida de um adolescente não é tão simples quanto muitos acreditam e seus problemas e sentimentos devem ser validados tanto quanto o de qualquer ser humano. A mente humana, tanto qualquer outra parte do nosso corpo, merece atenção e cuidado, e pedir ajuda quando as coisas não estão tão legais não é sinônimo de fraqueza, muito pelo contrário: é, para muitos, uma chance de sobrevivência. Assim como a ajuda médica, existem inúmeras associações, como o Centro de de Valorização da Vida, que estão aí para ajudar aqueles que precisam e, infelizmente, nem sempre encontram apoio e conforto necessários em pessoas mais próximas, oferecendo uma nova perspectiva para quem já não consegue enxergar através da névoa que cobre o próprio mundo.

I’m a teenager, I’ve got problems, diz um adulto ridiculamente bêbado ao final do filme, num deboche muito típico de quem não é capaz de enxergar que sim, a adolescência é um período importante e extremamente difícil, e nós precisamos falar sobre ela, assim como precisamos falar sobre como transtornos mentais podem surgir nessa fase e como é importante que eles sejam devidamente tratados. Porque adolescentes têm (muitos!) problemas e já passou da hora deles terem seus sentimentos e conflitos tratados com a devida atenção.

3 comentários

  1. Gente não sabia desse filme! Vou procurar.
    Aquilo, engraçados adultos menosprezarem os problemas de adolescentes sendo que, eles já passaram por essa fase na vida.

  2. Eu assisti ou li em algum lugar um psicólogo falando que nós passamos o resto da vida tentando superar os traumas criados durante a infância e a adolescência, e apesar de ser muito triste, acho que é isso mesmo. O setembro amarelo foi uma das iniciativas mais bonitas que já vi, é mais que necessário.

  3. Olá, amei sua análise sobre as meninas Lisbon e fiquei pensando em uma análise sobre Mustang também. Aqui no Brasil o filme recebeu o nome de Cinco Graças, e existe muitas comparações entre os dois filmes apesar de serem, na minha opinião, bem diferentes em diversos pontos. Fica a dica, beijos.

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