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Tomb Raider: 20 anos de Lara Croft

Tomb Raider é minha franquia de jogos favorita. Desde o momento em que meu irmão trouxe para casa Tomb Raider Gold: The Lost Artifact e eu o assisti enquanto jogava em um computador antigo, há muitos anos, fiquei fascinada pela trama da jovem moça que explorava, escalava, saltava e enfrentava o perigo de frente. Quando meu irmão disse que era minha vez de jogar e tomei os controles de Lara Croft pela primeira vez, não teve volta: fui fisgada pra sempre e não há um título da franquia que seja lançado que não fique com vontade de jogar imediatamente.

Desde aquele jogo de gráficos estranhos — mas incrivelmente legais para a época — me tornei fã de Lara Croft e suas tramas repletas de viagens, cenários sombrios e muitos puzzles. O primeiro jogo que caiu em minhas mãos foi, como citado, o Tomb Raider Gold: The Lost Artifact de 1998, mas Lara já estava presente no mundo gamer desde 1996, protagonizando seu primeiro jogo, Tomb Raider: Atlantean Scion. A partir de então a exploradora viu sua popularidade aumentar, assim como os lucros de sua produtora da época, a falecida Eidos Interactive, e não demorou muito para que Lara se transformasse em um dos principais ícones da indústria dos vídeo games, ganhando revistas em quadrinhos e até filmes protagonizados por ninguém menos do que Angelina Jolie. A personagem, inclusive, figura na edição do Livro dos Recordes de 2006 como a heroína mais bem sucedida no universo dos games daquele ano.

Em 2016, Lara Croft completa 20 anos de uma existência conturbada, nem sempre simples ou acertada. Como uma das primeiras protagonistas solo de sua própria franquia de jogos, é importante parar um momento para revisitar essa personagem tão controversa. Enquanto muitos clamam a respeito da importância de Lara na indústria e em sua representatividade, muito se fala, também, da sexualização desnecessária pela qual já passou. Desde sua primeira aparição, em 1996, ao seu reboot em 2013, uma coisa é verdade: Tomb Raider nunca esteve tão popular.

Origem

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Se hoje em dia jogos com cenários em 3D são totalmente comuns, no início dos anos 1990 a história era outra. Algumas empresas já davam os primeiros passos em criar ambientes em três dimensões, mas esse não era o caso da Core Design, empresa que havia pavimentado uma boa reputação em criar jogos diferentes no plano das duas dimensões, mas pensar em 3D ainda não era uma opção — pelo menos não até que um de seus designers, Toby Gard, começasse a imaginar um game em que o jogador pudesse se sentir parte de um filme interativo, coisa que outros games da época ainda não proporcionavam. Gard imaginou uma aventura que misturasse combate em terceira pessoa, quebras-cabeça e exploração, tudo em um único jogo.

Os primeiros esboços dessa época de desenvolvimento mostram um mundo detalhando em 3D com pirâmides, templos, tumbas, selvas e, o diferencial para a Core Design, um personagem que aparecesse na tela durante todo o tempo do jogo. A princípio, Gard esboçou um personagem masculino para ser o protagonista da trama, porém a semelhança gritante com o ícone dos cinemas, Indiana Jones, pedia uma reformulação urgente. E foi aí que o próprio Gard surgiu com a solução: uma protagonista feminina. Embora personagens femininas existissem em jogos, elas nunca eram utilizadas como protagonistas, apenas como as donzelas em perigo; não se considerava fazer com que jogadores masculinos utilizassem um avatar feminino (apesar de que o contrário era — e ainda é — totalmente comum; meninas jogam com avatares masculinos desde sempre e muito pouco se fala a respeito).

A troca de gênero do protagonista não veio pautada por nenhum viés inclusivo, foi apenas uma maneira de fugir de possíveis processos devido a similaridade que o personagem em questão teria com Indiana Jones. Gard passou a esboçar diferentes mulheres para tomar a liderança do jogo, mas demorou um pouco até Lara Croft tomar a forma como hoje a reconhecemos — uma aristocrata britânica cuja maior paixão é explorar. Até mesmo seu nome, Lara Croft, só foi decidido após a Core Design ser adquirida pela Eidos Interactive: a princípio Gard havia estabelecido o nome de Laura Cruz, uma mulher sul-americana (que incrível teria sido), conhecedora de antiguidades e de alto nível atlético. A Eidos, por outro lado, uma empresa britânica, decidiu que seria mais interessante um nome que soasse melhor em inglês e, em reuniões, saiu de cena Laura Cruz para entrar Lara Croft.

Após a aprovação do nome, história e desenho da personagem (sim, com seios enormes), Tomb Raider encontrou um pequeno empecilho: a Sony não se entusiasmou com a premissa do jogo e não autorizou seu début para PlayStation. O primeiro jogo da série só foi aprovado pelos executivos da empresa após um investimento pesado por parte da Eidos, que se empenhou em criar uma atmosfera única para o jogo compondo músicas atraentes, contratando a atriz Shelley Blond para dar voz à Lara, e adicionado as famosas cutscenes no decorrer do jogo — outro ingrediente pouco utilizado à época. Tudo isso aliado à uma estratégia de marketing ousada transformou Tomb Raider aos olhos da Sony que deu uma resposta entusiasmada para a Eidos, aprovando, finalmente, o jogo para a plataforma.

Ascensão e Queda

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O primeiro jogo, Tomb Raider: Atlantean Scion, foi lançado em novembro de 1996, apenas uma semana após Super Mario 64. Ao final do primeiro dia de vendas o game alcançou o topo da lista de mais vendidos e lá permaneceu pelos próximos três meses. Um dos primeiros jogos a mergulhar no universo 3D, Tomb Raider foi visto como revolucionário para a época ao reunir, além de gráficos nunca vistos antes, uma trilha sonora inspiradora, jogabilidade inovadora e uma trama instigante, capaz de prender o jogador por horas. O sucesso do jogo, inclusive, foi responsável por aumentar as vendas do PlayStation nos meses que se seguiram, fazendo do sucessor do primeiro título, Tomb Raider II: The Dagger of Xian, um dos mais aguardados de 1997.

O reconhecimento da qualidade de Tomb Raider não parou por aí. Lara Croft apareceu nas capas de diversos jornais e revistas, desde o The Financial Times até a Times, e o jogo recebeu diversos prêmios como, por exemplo, o Origins Award por Melhor Jogo de Ação para Computador em 1997, e foi escolhido como o 4º melhor jogo de todos os tempos pela Official UK PlayStation Magazine. Com a explosão de vendas, a personagem concebida originalmente como masculina transformou-se em um ícone feminino da cultura pop: Lara Croft era reconhecida no mundo inteiro, um ícone cultural do mundo dos vídeo games.

Seu sucesso fez barulho tanto para o bem, quanto para o mal. A Eidos teve que lidar com ativistas reclamando da maneira como Lara matava animais no jogo enquanto outros, com razão, levantavam a questão da sexualização desnecessária da personagem que se transformou em um símbolo sexual virtual. Embora tais argumentos pudessem dar alguma dor de cabeça para a Eidos, eles não estavam se importando muito com o falatório ao redor de sua maior propriedade: enquanto o dinheiro estivesse entrando, tudo estaria bem.

Mas Toby Gard não estava de acordo com os rumos que sua criação estava tomando. A Lara Croft que ele desenvolveu não se deixaria transformar em um símbolo sexual ou modelo. Lara é refinada, confiante, afiada e totalmente mortal, não uma modelo. Mas se Gard estava descontente com isso, nada poderia ser feito visto que, para todos os efeitos, Lara Croft e Tomb Raider eram propriedades da Eidos e a Eidos era a responsável por tomar todas as decisões a respeito da marca. Desiludido com a falta de controle criativo sobre seu próprio personagem, Gard não viu outra alternativa que não sair da Core e da Eidos.

A saída de seu criador, no entanto, não fez a locomotiva que era Tomb Raider parar. Com as vendas dos jogos crescendo cada vez mais, Core e Eidos haviam decidido: deveria haver um novo Tomb Raider nas lojas a cada mês de novembro. Modelos eram contratadas para realizar photoshoots reais de Lara, o time de designers corria contra o tempo para criar novos jogos e aprimoramentos a cada ano e o dinheiro não parava de entrar. Foi assim, pelo menos, pelos próximos cinco títulos até chegarmos no fatídico sexto título da franquia, Tomb Raider: The Angel of Darkness. Concebido originalmente como uma trilogia, o projeto foi logo abandonado após o fracasso de crítica e público. A reciclagem de tramas e movimentos não agradava mais aos fãs; após seis títulos, Lara não havia se reinventado e a saturação de sua imagem com jogos pouco inovadores em todos os anos não ajudou. Havia muito de Tomb Raider, e em todos os lugares — inclusive os dois filmes com Angelina Jolie em Hollywood —, mas nada de novo.

Core e Eidos decidiram apressar o lançamento de Tomb Raider: The Angel of Darkness para antes do segundo filme com Angelina Jolie e o que se viu foi um erro tremendo: o jogo, pouco acabado e com uma trama confusa e praticamente sem sentido, afundou as vendas e a Core por tabela. Eidos, ainda no controle da marca Tomb Raider, passou a personagem para os cuidados de sua subsidiária norte-americana Crystal Dynamics.

Ensaiando o retorno

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Foram necessários três anos para que o mundo pudesse ver outro jogo da franquia Tomb Raider. Após o fracasso de Tomb Raider: The Angel of Darkness, todos ficaram apreensivos a respeito do que viria da nova produtora do game — e eu sei que fiquei. Passei boa parte do meu tempo jogando Tomb Raider e amava Lara Croft, então não queria, de jeito nenhum, vê-la desaparecer do mundo dos games. Sei que a questão da representatividade da personagem sempre foi muito debatida, visto que ela não nasceu para incluir protagonistas femininas nos jogos, mas como um mero acaso. No entanto eu, quando criança, amei ver um jogo em que a personagem principal era, como eu, mulher.

Muito se debateu, durante os primeiros seis jogos, a respeito da forma física de Lara. Muito se falou sobre ela ter sido desenvolvida muito mais para o deleite de olhos masculinos do que identificação feminina, porém, ainda assim, prefiro ver sua existência como algo positivo: se naquele distante 1996 tivéssemos recebido outro jogo com mais um protagonista masculino, teria a franquia feito tanto sucesso? Certamente os gráficos e trilha sonora inovadora foram importantes para a popularidade do jogo, mas ter Lara no comando de toda a ação também fez toda a diferença. Lara Croft surgiu em um momento que sequer se pensava em colocar mulheres protagonizando games, ainda mais uma que chuta bundas e faz tudo isso com muito classe e altas doses de sarcasmo.

Por isso quando, finalmente, coloquei minhas mãos em Lara Croft Tomb Raider: Legend, o primeiro título desenvolvido pela Crystal Dynamics e lançado em 2006, meu coração até aqueceu. Lara passou por um redesign, seus traços foram suavizados e ela agora realmente possuía as proporções de uma pessoa de verdade. Seus movimentos no jogo também foram trabalhados e melhorados, com controles mais responsivos e cenas belamente renderizadas. Meu coração de fã derreteu e eu reencontrei a Lara de que tanto gostava. Tudo o que eu adorava nos primeiros jogos estava de volta e eu não poderia ter ficado mais feliz.

Os bons jogos continuaram a vir: Lara Croft Tomb Raider: Anniversary, de 2007, comemorou os dez anos da franquia com um remake do primeiro jogo, inclusive sendo remasterizado em HD para o PlayStation 3. Lara Croft Tomb Raider: Underworld vem fechar essa primeira trilogia de retorno da Crystal Dynamics e abre espaço para o reboot. Sei que de todos os jogos da franquia, esses foram os três que mais joguei. Não me bastava terminar o jogo uma vez, eu sempre retornava querendo mais, trocando os níveis, tentando explorar as fases de maneiras diversas. A nova Lara Croft da Crystal Dynamics era tudo o que eu queria, mas na época ainda não sabia que o que estava bom ainda poderia ficar muito melhor.

O reboot

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Se você curte filmes ou quadrinhos de super-heróis já deve estar bem familiarizado com o termo reboot. Já cansamos de ver a reinicialização de muitas séries de heróis e vou citar só o Homem-Aranha e suas TRÊS franquias diferentes como exemplo. Com Tomb Raider não foi diferente: no lugar de dar continuidade à trilogia iniciada pela Crystal Dynamics, optou-se por uma reformulação da franquia de Lara com o jogo de 2013. Embora a história de origem de Lara Croft já tenha sido contada algumas vezes, inclusive no relativamente recente Lara Croft Tomb Raider: Legend, decidiu-se reiniciar toda a trama da arqueóloga no novo Tomb Raider, dessa vez capitaneado pela Square Enix, uma divisão da Crystal Dynamics.

A ideia era atualizar a heroína, adicionar o modo sobrevivência ao jogo e deixá-lo ainda mais próximo do real. Os gráficos detalhados no PlayStation 3 foram essenciais para esse recomeço, visto que os visuais trabalhados deixam o game ainda mais legítimo. Esqueça, também, a antiga Lara Croft, aristocrata entediada e caçadora de tesouros. A nova Lara Croft é recém graduada em arqueologia, uma history geek, é bem mais jovem do que suas versões anteriores e tem medo. Quando se encontra sozinha em uma ilha após o naufrágio do navio em que viajava, o que Lara mais sente é medo. Ela nunca esteve por sua própria conta, e o medo e a vulnerabilidade estão presentes o tempo inteiro — o que, porém, não a diminui, não retira seu poder mas a deixa mais humana.

No primeiro título do reboot, batizado somente de Tomb Raider, a trama gira em torno do crescimento de Lara. Ela ainda não é a exploradora que conhecemos nos outros jogos e estamos presenciando suas descobertas em primeira mão. Sozinha em uma ilha desconhecida, repleta de pessoas hostis, Lara descobre até onde pode ir em prol da própria sobrevivência — e aí está a beleza do jogo. Lara não é mais sexualizada em roupas mínimas, seus trajes estão de acordo com sua faixa etária e atividades (mesmo que, no caso, a atividade seja a sobrevivência). O novo Tomb Raider até mesmo passa do Teste de Bechdel além de ter um elenco diverso de personagens no que se refere à etnia. O jogo de 2013 é, certamente, muito mais violento do que seus anteriores, mas nada que destoe de títulos como Assassin’s Creed ou Uncharted. A diferença aqui, claro, tem relação com o gênero de seu personagem principal: Lara sofre, sim, nas mãos dos habitantes da ilha, mas nem por isso é diminuída. Ela luta, ela rebate, e ela jamais desiste. Finalmente, Lara Croft pode ser uma mulher forte sem ser objetificada — e isso é maravilhoso.

Em 2015 foi lançada a continuação do jogo de 2013, Rise of the Tomb Raider, em que continuamos a acompanhar o crescimento pessoal e profissional de Lara. Lançado para PlayStation apenas agora em 2016 devido a um contrato de exclusividade entre a Square Enix e Microsoft (e seu XBox), o jogo chega a tempo para as comemorações dos 20 anos da franquia e mostra que Lara Croft está mais incrível do que nunca. Recebendo inclusive prêmios — Jogo do Ano para Xbox One e Melhor Jogo de Acção/Aventura pelo IGN, portal especializado em vídeo game — o reboot de Tomb Raider se mostrou bem acertado. A nova Lara não cai nas armadilhas de ser um símbolo sexual virtual e prova que ainda tem muitas bundas para chutar. Os tempos são outros, claro, e hoje em dia consigo problematizar bem mais facilmente do que com meus 12, 13 anos, mas o contentamento em assumir os controles e explorar com Lara nunca foi maior.

O renascimento de Lara Croft, inclusive, pode ser colocado na conta da britânica Rhianna Pratchett. A escritora que liderou o roteiro do jogo de 2013 e retornou para sua sequência, já foi responsável por roteirizar jogos como Overlord, Mirror’s Edge BioShock Infinite. Seu trabalho em Rise of the Tomb Raider recebeu prêmios como Outstanding Achievement in Videogame Writing pelo Writers Guild of America e Outstanding Achievement in Character pelo D.I.C.E. Awards. Para Rhianna, tanto a Lara “clássica” quanto a “nova” Lara são personagens inventivas, fortes, determinadas e inteligentes e o que difere uma da outra é, simplesmente, a questão de marketing. Enquanto a Lara dos anos 1990 era explorada por um olhar masculino, direcionando o game para garotos, a Lara dos anos 2000 é escrita para todos. E isso, para Rhianna, é a chave do sucesso do reboot: Lara não está mais presa aos estereótipos que a tornaram símbolo sexual, e agora está sendo feita justiça para a personagem que era muito mais do que um corpo a ser observado.

Embora nunca tenha deixado a franquia de lado durante todos esses anos, jogar o novo Tomb Raider me transportou para o tempo em que fiquei realmente animada em ver uma protagonista feminina em um vídeo game. Para um tempo em que eu me divertia simplesmente assistindo meu irmão jogar ou que ficava muito apavorada com o monstro do lago Ness para prestar atenção em outra coisa que fosse. Vídeo game não é só um passatempo se você decide mergulhar na história, memórias afetivas podem estar ali, entrelaçadas, se você permitir. Lara Croft pode não ter sido a primeira de todas as heroínas, mas muitas de suas sucessoras devem a ela por provar que gênero não é um fator determinante para a qualidade de um bom jogo, um bom protagonista, um bom enredo. Obrigada, Lara, por mostrar que tudo é possível e a gente pode, sim, chutar bundas se tiver vontade de encarar.