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Titãs: sombria na medida certa

Os trailers da série Titãs deixaram bem claro, desde o início, que a produção escolhida para marcar o lançamento do serviço de streaming da DC seguiria a linha dos filmes da editora que levam a assinatura do diretor Zack Snyder: nada de luz nos estúdios, aparentemente. Para aqueles que alimentaram esperanças de receber um produto diferente do prometido no conforto de casa, graças à distribuição mundial da Netflix, adiantamos que Titãs entrega justamente aquilo que prometeu: personagens e ambientação sombrias, muita violência, sangue, ossos quebrados e heróis mais obscuros do que suas versões coloridas, atrapalhadas e levemente infantis das animações Teen Titans e Teen Titans Go! A boa notícia é que, pela primeira vez desde que consigo me recordar, isso não tem um significado ruim.

Depois de uma série de tropeços no cinema, com tentativas frustradas de criar e desenvolver um universo cinematográfico consistente, a DC parece ter achado o caminho para contar suas histórias, mesmo que encontrar personagens da editora na TV não seja novidade, visto que séries como Arrow, The Flash Supergirl estão há anos dando vida a personagens dos quadrinhos. A diferença, desta vez, é que com o serviço de streaming próprio não só a liberdade criativa se torna maior, como a dependência da classificação indicativa torna-se consideravelmente menor, o que permite a construção de uma série mais adulta, cheia de palavrões e lutas que não param em alguns socos filmados de longe. Desta forma, é claro, a abordagem se torna mais ousada, com mais espaço para aprofundar a personalidade cruel e homicida de alguns personagens.

Com Dick Grayson (Brenton Thwaites), Rachel Roth/Ravena (Teagan Croft), Kory Anders/Estelar (Anna Diop), Gar Logan/Mutano (Ryan Potter) e, em segundo plano, com Donna Troy/Moça-Maravilha (Conor Leslie), Hank/Rapina (Alan Ritchson) e Dawn/Columba (Minka Kelly), Titãs varre da mente o trauma causado por Batman vs. Superman ou pela sua prima sombria da TV aberta norte-americana, Arrow, que descambou nas últimas temporadas com uma leve retomada da qualidade na sexta temporada.

Aviso: este texto contém spoilers!

Logo de cara, descobrimos o contexto da fala “Foda-se o Batman”, que deixou a internet e os fãs da DC em polvorosa no primeiro trailer e refle de forma sucinta a construção do personagem de Dick e qual versão do Robin iremos acompanhar ao longo dos onze episódios da primeira temporada. Quando a série começa, o menino-prodígio está em Detroit, bem longe do clima agourento de Gotham, que deixou para trás há cerca de um ano. Mesmo que ainda guarde o uniforme de Robin, Dick não quer ter mais nada a ver com Batman e companhia, mas o que todos sabemos é que esse submundo não demora a alcançar seus heróis novamente, mesmo contra sua vontade.

Em um dia normal em seu novo emprego como detetive de polícia, Dick conhece Rachel, uma adolescente transtornada que teve a mãe assassinada por um homem misterioso. Desde nova, Rachel lida com poderes demoníacos que se mantêm dentro dela com um poder imensurável e do qual não possui pleno controle. Tudo fica mais estranho quando Rachel reconhece Dick como o garoto que aparece em seus sonhos. Por fim, mesmo que em seu âmago Robin não queira mais se envolver em situações que recorrem usar as técnicas que aprendeu com Bruce Wayne, não lhe restam opções a não ser acolher Rachel e desvendar o mistério que cerca a garota. Mesmo para os desatentos, os paralelos entre a relação de Rachel e Dick com a deste e Bruce não passam despercebidos.

Enquanto isso, na Áustria, somos apresentados a uma mulher de cabelos rosa choque, com um figurino tão espalhafatoso quanto suas madeixas, desmemoriada e envolvida em uma confusão com muitas mortes. Kory Anders não faz ideia de quem é, além do fato de que suas mãos geram canhões de energia solar e que precisa encontrar Rachel Roth. Sua cruzada a leva ao encontro, obviamente, de Dick, enquanto Rachel confraterniza com um novo amigo de cabelos verdes, Gar. A partir daí, não demora muito para Kory e Dick descobrirem a profecia da Destruidora de Mundos que marca a existência de Rachel e do envolvimento de seitas religiosas que querem matar ou usar a garota para trazer seu pai, um poderoso demônio chamado Trigon, de volta ao mundo. Apesar disso, o roteiro segura até o último momento alguns dos grandes plot twists, como a volta da memória de Kory, o que manteria o espectador curiosamente ávido pela reta final da temporada, se, em contrapartida, não fosse algo tão mal trabalhado que acaba gerando um anticlímax.

O trunfo de Titãs, contudo, para manter a trama em movimento de forma interessante e envolvente reside em focar no desenvolvimento de seus personagens, mesmo que secundários, como acontece com Hank e Dawn, Donna Troy e a Patrulha do Destino, que ganham um episódio exclusivo para si (mesmo que a introdução da Patrulha do Destino sirva mais como uma espécie de piloto para outra produção já está confirmada).

Trabalhando de forma competente o aprofundamento de cada um dos componentes da jovem equipe — vale excluir aqui Mutano, que ganha pouco tempo de tela e além de seu envolvimento com a Patrulha do Destino, não recebe muito mais atenção por parte dos roteiristas —, a série alcança um feito nada inédito, mas que parece ser esquecido muitas vezes por séries de heróis, que é o de tratar seus personagens como a parte mais importante a ser mostrada na tela — mérito para o episódio focado em Hank e Dawn —, evitando uma abordagem rasa e unidimensional. Com a preocupação quase detalhista com alguns personagens, a trama em si ganha vida e segue seu curso de forma orgânica e fluída, sem pressa de se utilizar dos quase 50 minutos por episódio para mostrar quem são e/ou no que se tornarão seus protagonistas. Para alguns, pode significar um ritmo lento e monótono, mas pessoalmente foi uma experiência de encher os olhos e que me lembrou os motivos pelos quais sempre ansiei pelas produções da DC mesmo sendo marvete assumida.

Naturalmente, no meio disto tudo, Dick Grayson é o grande foco da produção, não sendo medidos esforços visuais, estéticos e de roteiro para mostrar ao espectador o quão fora de controle ele está e justificar, sem questionamentos, os motivos que o levaram a deixar a proteção do Homem-Morcego. Atormentando por seu comportamento violento e fora de controle, Dick entra em uma guerra moral entre fugir de seu destino e enterrar tudo aquilo que aflora seu ódio e descontrole ou assumir seu papel como Robin ou algo diferente (como Estelar sugere) e cumprir o seu destino como bom mocinho. Nesse sentido, o sexto episódio, nomeado “Jason Todd”, cumpre de forma primorosa sua missão, que vai além de apresentar o novo Robin escolhido por Batman — interpretado com a dose certa de despreocupação e desprendimento da ética por Curran Walters —, e acerta em cheio ao preparar o terreno para o surgimento do herói Asa Noturna, um dos alter ego de Dick Grayson.

No que tange as personagens femininas, Titãs também não desaponta. Não temos apenas número, mas uma representatividade que realmente cumpre seu papel e quebra alguns estereótipos que perseguem personagens femininas no nicho dos quadrinhos. Com Ravena e Estelar como protagonistas e Dawn e Donna como participantes secundárias, a série mostra que o “privilégio” de desenvolver seus personagens não se estende apenas aos homens. Mesmo que tenham uma abordagem mais rasa, Dawn e Donna ainda existem por si só, mesmo que suas histórias estejam interligadas com personagens masculinos que ocupam papel de maior destaque na trama — não que isso faça muita diferença pois, graças à performance cativante das atrizes, ambas roubam a cena e são capazes de entregar, com a ajuda do roteiro, papéis que não dependem ou giram em torno do drama de homem branco rico de Dick Grayson, com motivações e paradigmas próprios.

Semelhante, porém mais poderosa e cheia de significado, é a performance de Anna Diop como Estelar. Se a série sofreu com críticas e comentários desacreditando a produção antes mesmo da estreia, devido a caracterização ainda não finalizada dos personagens em fotos vazadas do set de filmagens, o que Diop teve que enfrentar foi muito além. Sua personagem Estelar é uma alienígena e carrega essa característica em sua pele, sendo sempre retratada com cabelo rosa e pele laranja. O mesmo acontece com Mutano, que originalmente tem a pele verde devido a sua mutação e é interpretado por um ator de origem asiática na série. Por motivos de coerência com a proposta da série, os roteiristas descartaram pintar ambos com suas cores “originais”, sendo que Diop, uma mulher negra, foi selecionada para o papel de Estelar. Os racistas de plantão, é claro, não demoraram a botar suas garras de fora e o discurso de ódio chegou a tal nível que obrigou atriz a se afastar das redes sociais por um tempo e alguns colegas saírem em sua defesa.

Mesmo que esteja cansada de dizer e ouvir pessoas do meu círculo social partilhando do mesmo discurso (que acho importante destacar, tem mais lugar de fala do que eu, mulher branca cheia de privilégios), situações como essa, que se repetem mais do que seria aceitável na época que estamos, mostram que ainda é preciso reafirmar a importância de pessoas não-brancas ocupando papéis de destaque e que não foram, especificamente, criados para serem preenchidos por tais. Pessoas negras também existem além de sua cor, não devendo ser resumidas a apenas uma característica de seu ser, bem como LGBTQs, que também precisam combater e enfrentar essa representação unidimensional constantemente. Os ataques sofridos por Diop, em sua maioria velados com desculpas esfarrapadas preocupadas com a qualidade da atuação da atriz e da fidelidade da obra, foram respondidos com o desempenho de sua personagem na série, que destoa da garota ingênua, desastrada e engraçada que conhecemos dos quadrinhos, e apresenta uma Estelar badass, cheia de atitude e poder, e sombria na medida certa. Apesar de ter ressalvas quanto ao figurino da personagem, que poderia ser bem menos sexualizado e mais funcional para as cenas de luta, acredito que todos recebemos a Estelar que merecemos e na qual muitas meninas terão um exemplo para se espelhar.

No que se refere a construção de Ravena, porém, a atriz parece não entregar uma atuação tão convincente e poderosa como era necessário nos momentos em que o roteiro exigia mais de sua personagem, como nas cenas carregadas de drama e emoção, dois sentimentos que parecem estar atrelados a personagem. Entretanto, com a ajuda do roteiro, Rachel funciona como uma “cola” para o grupo, sendo o pivô da união dos Titãs e criando uma relação de amizade e companheirismo com todos eles.

No fim, o que faz a série sofrer um pouco é justamente a falta de dosagem do elemento que foi a ruína da maioria dos filmes da DC: o tom sombrio da produção. Nos primeiros episódios, somos apresentados a uma escuridão caricata, milimetricamente calculada, como se a série precisasse provar um ponto, com cenas gráficas e pesadas e diálogos que deixam pouca margem para o espectador pensar algo além de quão obscuro são os personagens, o que torna tudo um pouco forçado e não orgânico.

Todavia, ao contrário do que vimos acontecer no cinema, aqui a produção consegue se desvencilhar dessa armadilha e é quando a série para de provar a si mesma, sem necessariamente deixar a dita “escuridão” de lado, que as coisas começam a realmente brilhar, entregando um produto que me deixou orgulhosa de ainda ter pique para acompanhar uma produção de super-heróis. Isso prova, mais do que nunca, que não importas quais os elementos utilizados, o mérito e o êxito estão em como eles são utilizados; Titãs segue quase a risca a fórmula de algumas produções do DCEU, acrescentando apenas mais sangue, palavrões e, a cereja do bolo: um roteiro quase redondo e personagens nada unidimensionais com uma proposta coerente dentro da trama.