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The Love Witch e os estereótipos de gênero nos relacionamentos

Mulheres são emocionais, homens são racionais. Homens só pensam em sexo, as mulheres querem casar. Mulheres são sentimentais, homens não lidam com sentimentos e não discutem o relacionamento essas e tantas outras frases você com certeza já ouviu um dia. E mesmo agora, com toda a discussão feminista sobre as construções sociais dos gêneros e seus estereótipos nocivos à sociedade, ainda ouvimos muitas dessas frases.

Eu sou a bruxa do amor! Eu sou sua maior fantasia!”

Os papéis de gênero, definidos e impostos pelo patriarcado, nos perseguem desde que, no ultrassom, o médico diz, com base em nossos genitais, se somos meninos ou meninas. Essas definições, e todo o peso que cada papel do gênero que nos foi imposto carrega, nos perseguem durante o resto de nossas vidas — e, principalmente, quando se trata de relacionamentos amorosos (aqui, tomo como base os relacionamentos heterossexuais, ainda que, infelizmente, existam relacionamentos homossexuais que acabam refletindo esses estereótipos nocivos tão arraigados na nossa sociedade).

É exatamente com esses estereótipos que o filme The Love Witch, da diretora Anna Biller, vai brincar: quando uma bruxa resolve fazer um feitiço para os homens realmente se apaixonarem por ela, o feitiço dá tão certo que eles literalmente morrem de amor. A bruxa em questão é Elaine (Samantha Robinson), uma viúva que sai de São Francisco para tentar uma nova vida no interior dos Estados Unidos e superar a morte do marido. Na nova cidadezinha, ela se estabelece em uma casa gótica, e lá monta seu laboratório de alquimia para começar a fabricar suas poções, tudo com o intuito de fazer homens caírem aos seus pés.

The Love Witch

E ela consegue, enfeitiçando primeiro Wayne (Jeffrey Vincent Parise), um professor de literatura que acaba morrendo após começar a sentir todos os sentimentos possíveis ao mesmo tempo, tendo assim um ataque cardíaco. Após a tentativa fracassada, Elaine enfeitiça Richard (Robert Seeley), marido de sua vizinha e amiga, Trish (Laura Waddel), que acaba se suicidando por amor a ela. Com mais essa morte, o alvo de Elaine passa a ser Griff (Gian Keys), detetive durão e emocionalmente distante, que está investigando a morte de Wayne. Durante todo o filme temos flashes do passado de Elaine, que não conhecera relacionamentos saudáveis com homens: seu pai e seu falecido marido abusavam dela psicológica e fisicamente, criticavam sua aparência e seu modo de se portar; ela nunca era uma boa filha ou uma boa esposa o suficiente para eles, nos moldes padronizados da nossa sociedade, como uma mulher bela, recatada e do lar.

Elaine internalizou tudo isso e acha que apenas sendo a mulher perfeita encontrará o amor verdadeiro e a felicidade. Nas palavras da própria diretora, Elaine é como o monstro de Frankestein criada pelos homens a partir das expectativas opressivas que têm das mulheres, do que elas devem ser: perfeitamente belas e sexys, mas nem tão sexys assim; submissas; boas cozinheiras e cuidadosa com eles e os filhos; devem querer ter filhos; devem querer ser donas de casa, mas não devem ser dependentes; porém não devem ser muito independentes; e por aí vai, podemos ficar aqui o dia inteiro.

Assim, Elaine entrou para um culto onde lhe ensinaram as artes místicas e a alquimia, e ela se tornou uma bruxa. Tudo para ser a mulher perfeita que a sociedade espera dela, ao mesmo tempo em que se empodera sexualmente como mulher. Esse é um paradoxo do próprio discurso de empoderamento sexual da mulher que Biller usa durante o filme: a figura da bruxa ou feiticeira, que muitas vezes é usada para difamar mulheres que vão contra as expectativas da sociedade, também é usada como mais uma expectativa que as mulheres devem alcançar — “saiba como enfeitiçar o seu homem na cama” — além da ideia do próprio culto, onde Elaine aprende a lidar com sua sexualidade de forma livre, sem julgamentos, um discurso realmente empoderador. No entanto, esse discurso é pregado pelo homem que abusou de Elaine durante um dos seus rituais, e que provavelmente repetiu isso com outras mulheres do culto — uma ideia bem semelhante à figura de muitos homens que se dizem feministas.

Elaine: Dar sexo a um homem é um jeito de liberar seu potencial amoroso.
Trish: Você soa como se tivesse sofrido lavagem cerebral pelo patriarcado.”

The Love Witch

Anna Biller também é genial ao retratar os males da masculinidade tóxica que permeia a nossa sociedade ao fazer os homens morrerem por sentirem demais, algo extremamente condenável nos homens, exatamente por ser um traço visto como feminino. Homens são ensinados que podem sentir apenas duas coisas: raiva e tesão. Tudo que vai além disso não é permitido porque as mulheres é que são emocionais; os homens são racionais. Homens não choram e se é para mostrar alguma frustração que seja socando uma parede (ou alguém). É por isso que o feitiço de Elaine dá tão errado (ou tão certo): ele elimina o bloqueio emocional que os homens foram obrigados a construir desde meninos, fazendo-os sentir todos os tipos de sentimentos que reprimiram durante toda a vida, o que é fatal para eles. Biller também retrata a masculinidade tóxica através do detetive Griff, que é basicamente o clichê do macho-alfa: pegador e emocionalmente distante. Isso atrai Elaine imediatamente, pois ela quer “curá-lo” e fazer com que ele se apaixone por ela — afinal, apenas mulheres têm o poder de mudar um homem.

Essa dinâmica dos relacionamentos heterossexuais, em que a mulher é quer um relacionamento e por isso deve fazer de tudo para mantê-lo enquanto o homem deve apenas conquistá-la e depois de saciado fugir, é retratada em uma cena em que Elaine e Griff vão à um festival/casamento medieval e temos um vislumbre dos pensamentos de ambos os personagens: enquanto Elaine sonha em se casar com Griff e fazê-lo amá-la para sempre, Griff só pensa o quanto Elaine é bonita e no quanto ele a deseja, mas que deve sair correndo dali antes que ela comece a pensar em casamento.

Elaine para Griff: “Talvez você seja um narcisista que não sabe amar.”

The Love Witch é o segundo filme de Anna Biller, que não só dirigiu como roteirizou, produziu, editou e assinou cenografia e o figurino. O seu primeiro longa-metragem foi Viva (2007), que além de tudo também atuou, ou seja, todo o conceito é dela, um trabalho totalmente autoral. A parte técnica do filme é de um primor ímpar, o longa é uma homenagem aos filmes de terror dos anos 60 e 70, por isso Biller recriou toda a estética dos filmes desse período, com uma precisão tão perfeita que, tirando os celulares e carros modernos, realmente parece que estamos assistindo a um filme da época. The Love Witch foi filmado em película 35mm e foi usada a técnica technicolor, com cores vibrantes e visual retrô; nas cenas com carros foi usado o famoso telão que simula o movimento deles; as transições de cenas são feitas através de fade — com a imagem esmaecendo enquanto outra aparece. Os figurinos e maquiagens são todos inspirados nas mesmas décadas, com olhos maquiados com delineado gatinho e sombras em cores fortes.

A interpretação dos atores é outro ponto a se destacar, com toda a afetação típica dos atores dos anos 60 e 70. Samantha Robinson faz um trabalho maravilhoso, com referências claras a Mortícia Addams e Elvira, fazendo Elaine ser divertida e ao mesmo tempo trágica. Nos apegamos e nos simpatizamos por e com ela, apesar de suas atitudes condenáveis ao longo do filme.

Muitos críticos também compararam The Love Witch aos filmes exploitation dos anos 70 (gênero favorito e revisitado sempre por Quentin Tarantino), um título que Biller recusou veementemente, dizendo que seu filme nunca será exploitation, pois é um gênero criado por homens e com a total visão masculina do que é o mundo (com toda aquela masculinidade tóxica e objetificação das mulheres) e não é isso que Anna quer recriar. Anna Biller quis retratar aqui a total visão feminina sobre mulheres e de como elas veem o mundo, e de acordo com ela é esse o objetivo dela como cineasta: trazer a visão das mulheres para o universo cinematográfico.

Apesar de amar exploitation, mesmo com as várias problemáticas do gênero, e também ter feito essa análise do filme inicialmente, tendo a concordar com a visão de Biller, e espero realmente que ela nos presenteie com mais filmes do gênero terror/horror, um gênero que está sendo resgatado pelas mulheres. Estou doida para conferir o próximo trabalho da diretora, que vai ser uma adaptação de Barba Azul, e não espero nada além de fantástico e mordaz.

“O dia que ele me deixou foi o dia que eu morri.
Mas então eu renasci uma bruxa.”

Camila Novaes tem 23 anos e sempre viveu em um triângulo amoroso com a Literatura e o Cinema. Escolheu a primeira e está se graduando em Português e Literatura na UERJ, porém vive um relacionamento aberto que sempre inclui o Cinema. Nerd, feminista, canceriana com ascendente em Leão e lua em Sagitário (God Help the Girl!). Em Hogwarts é Sonserina sim, Sonserina sim, mas promete que não é uma bruxa das trevas (pelo menos não muito)!
Atualmente escreve para o site Beco Literário.
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2 comentários

  1. Assisti esse filme e me apaixonei perdidamente, mas depois desse texto preciso assistir novamente só pra notar pequenas coisas que perdi e amá-lo mais ainda.

  2. “Portanto, Elaine entrou para um culto, onde lhe ensinaram as artes místicas e a alquimia, e ela se tornou uma bruxa.”

    Entendi que ela havia aprendido sobre o sagrado feminino e como a mulher possuí um poder pessoal negado pelos homens que também tentam dominar e usar ao seu favor se possuí tal conhecimento e abusado por aquele que supostamente deveria ter apenas apresentar o caminho.

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