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The Lizzie Bennet Diaries: Orgulho e Preconceito para millennials

É uma verdade universalmente conhecida que um livro clássico, que possua as qualidades certas, nunca deixa de ser atual — atualidade esta que desperta sentimentos de identificação em pleno século XXI, mesmo que a história seja contada em uma linguagem rebuscada, pontuada pela rigidez característica da sociedade de outrora. Clássicos são sobre sentir profunda e desesperadamente (ou reprimir esses sentimentos), e se sentir é algo universal e atemporal, a época em que se vive não faz tanta diferença. 

Talvez isso explique a alta cota de clássicos que, ainda hoje, servem de referência para leitores e autores. Como vivemos em um mundo no qual nada se cria, tudo se copia, a cultura popular — e com ela, o capitalismo, não perde a oportunidade de usar e abusar de uma fórmula bem sucedida. Isso significa que, de tempos em tempos, presenciamos o lançamento de um livro, filme ou (web)série que é, de alguma forma, inspirado na trama, nos personagens ou em características de histórias publicadas em séculos passados e que arrebataram o coração de leitores e críticos.

Veja, por exemplo, os clássicos de Shakespeare. Além das adaptações corriqueiras, seu trabalho também serve de base para a construção de produtos midiáticos que podem ser apreciados sem conhecimento prévio da história que os inspira e, ainda, presenciar a modernização e o rejuvenescimento dessas narrativa. Dez Coisas que Eu Odeio em Você pode ser considerado um dos casos mais famosos do subgênero de atualizações literárias, trazendo, para outra plataforma, A Megera Domada, uma das primeiras comédias escritas pelo autor.

Seguindo a mesma linha, autores como Arthur Conan Doyle, Mary Shelley, Jane Austen e, claro, incontáveis clássicos dos irmãos Grimm, tiveram seus livros remodelados em versões modernas, alcançando um público novo, por vezes jovem, que talvez não teria contato com tal conteúdo se este não tivesse sido alvo dessa modernização.

Foi, provavelmente, ao refletir sobre esse nicho de mercado e ramo criativo, que Hank Green e Bernie Su perceberam o vazio de adaptações de clássicos fora do eixo literário, cinematográfico ou televisivo e que fossem voltadas especificamente para aqueles que não querem apenas suspirar por um bom romance ou problematizar as convenções sociais e o sexismo nosso de cada dia, mas também anseiam em ver os desejos e angústias em relação a carreira, futuro e sonhos integrados a história. Os millennials (nascidos entre 1980 e meados de 1990, aproximadamente) são um público exigente e difícil de agradar, e nada menos deve ser esperado de uma geração que, em uma análise rápida e rasa, foi criada para acreditar que o sucesso está apenas a um passo de distância.

Foi no YouTube que Green e Su encontraram a plataforma perfeita para suas adaptações provindas de clássicos, histórias em que millennials pudessem apreciar e se identificar. Foi dessa ideia criativa e genial também que surgiu a Pemberley Digital, uma companhia especializada em produzir webséries, e que possui em seu catálogo trabalhos como Emma Aproved, Frankenstein MD, Welcome to Sandition e, obviamente, a adaptação pioneira e mais famosa do nicho, The Lizzie Bennet Diaries.

the lizzie bennet diaries

Por mais que as tragédias shakespearianas, recheadas de embates entre famílias, com finais agridoce e morte de mocinhos apaixonados, cativem e arranquem lágrimas e suspiros do público, nada proporciona tantos frios na barriga, desperta a mente para a crítica social e mostra como o sarcasmo e a ironia pontuais são uma forma poderosa de construir personagens como os romances de Jane Austen. Clueless, Lost in Austen, O Diário de Bridget Jones e muitos outros provam que os poucos e bons livros escritos pela autora não envelheceram, sempre havendo certo poder em suas tramas pitorescas, com heroínas que tentam arrancar das mãos do patriarcado sua felicidade e tomar o controle da própria trajetória em direção ao amor verdadeiro ou seu equivalente, dependendo do foco da história.

Na época de seu lançamento, em 2012, The Lizzie Bennet Diaries tinha apenas 20 e poucos episódios planejados para ir ao ar, mas, como esperado de um produto que se dispõe a contar a história do casal mais amado da cultura popular, a série não demorou a angariar muitos fãs, possibilitando que a produção durasse cerca de um ano, atingisse a marca de 100 episódios exibidos e conseguisse, em 2013, um Emmy na categoria de Outstanding Creative Achievement in Media-Original Interactive Program. Hoje, cinco anos depois, os episódios continuam disponíveis no YouTube e a página no Facebook da websérie vem realizando, desde junho, a campanha #LBD5Year, republicando os episódios em comemoração ao aniversário da produção.

Possuir a fórmula pré-pronta de um produto de sucesso e de como-adaptar-clássicos disponível não significa, obrigatoriamente, que a ideia será bem sucedida. Nesse quesito, a sensibilidade, visão criativa e a capacidade de entender a mensagem do livro e definir o que se quer repassar desse conteúdo para seu público foram essenciais no trabalho desenvolvido por Green e Su. Transformar um clássico como Orgulho e Preconceito em uma série de vídeo diários (ou vídeo blogs, como a prática é popularmente conhecida) que retratam a vida da família Bennet requer que as perguntas certas sejam feitas em relação ao material base que se possui. Quem seria a heroína mais famosa da literatura se ela fizesse parte da Geração Y? Quais seriam seus anseios, dúvidas, preocupações, crenças? E quanto a Darcy? Bing Lee? Jane? Lydia? Sra. Bennet? Charlotte Lu? Que papel cada personagem desempenharia na sociedade contemporânea?

Na visão dos dois produtores, Lizzie Bennet (Ashley Clements) seria uma jovem de 24 anos, concluindo sua pós-graduação em Comunicação, com uma montanha de dívidas de crédito estudantil, que busca um espaço no mercado de trabalho. Como boa millennial, Lizzie ainda mora com os pais, junto com suas duas irmãs, Jane (Laura Spencer) e Lydia (Mary Kate Wiles), e divide com Charlotte Lu (Julia Cho) e com a internet, por meio de seus vlogs, as frustrações profissionais, as loucuras da mãe, que insiste que todo homem solteiro e rico do mundo foi feito para casar com suas filhas e, claro, o fascínio pelo romance que se estabelece entre Jane e o novo morador rico da vizinhança e estudante de medicina em Harvard, Bing Lee (Christopher Sean), além do ódio à primeira vista pelo seu melhor amigo, William Darcy (Daniel Vincent Gordh).

Os vídeos produzidos por Lizzie iniciam como parte de um projeto de sua pós-graduação, mas tomam uma proporção sem tamanho e imensurável quando o número de espectadores — a quem Lizzie constantemente cita e agradece pelo engajamento — cresce surpreendentemente a cada episódio, levando a protagonista a se tornar um fenômeno na rede, além de render uma proposta de trabalho de Ricky Collins (Maxwell Glick).

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Com o cenário de gravação limitado, na maior parte dos episódios, ao seu quarto e, depois, à empresa de Darcy, a Pemberley Digital, a saída encontrada pelos escritores para que a trama se tornasse fluída e não fosse prejudicada pelos numerosos monólogos de Lizzie diante da câmera, foi aderir a recursos teatrais, com Lizzie e quem estivesse à mão da protagonista — fosse Jane, Charlotte, Fitz Williams ou até Darcy — representando situações e acontecimentos que auxiliassem a dimensionar a história para o espectador.

Para quem está do lado de fora, os motivos que levam a história de Lizzie e sua versão romantizada dos fatos de sua vida se tornarem um sucesso e viralizarem na internet não precisam ser alvo de análise profunda, uma vez que todos os pontos que a fazem uma boa história estão presentes. Quando Lizzie se pergunta, vezes e mais vezes, o motivo de ainda acompanharmos sua vida desinteressante e com um vazio de grandes emoções, reflete perfeitamente a produção de conteúdo na era digital: produtos despretensiosos, simples, mas sofisticados, que possuem o apelo certo para conquistar um público específico, mesmo que aos olhos dos intelectuais, o que está sendo dito não tenha relevância no grande plano das coisas. Afinal, consideramos sim, a trajetória de Elizabeth Bennet interessante, educativa, divertida, angustiante e, sobretudo, um entretenimento, e fazemos com os vídeos postados no YouTube por ela, o mesmo que leitores vêm fazendo com Orgulho e Preconceito: devoramos, comentamos e tornamos a história, os personagens e as lições parte de nossa vida. E não é deste modo, nos tempos atuais, que nos comportamos frente aos produtos midiáticos da cultura pop, especialmente aqueles que nascem na internet e ganham rapidamente o mundo, expandidos pela conexão invisível que nos liga? Mesmo que julgados desinteressantes e sem relevância — às vezes até por seus criadores —, a vasta gama de conteúdos que permeiam o mundo on-line permitem que uma parcela da população compartilhe, absorva e se identifique com experiências por meio de uma tela.

Em outras palavras, Green e Su levantarem os questionamentos corretos sobre como proceder com uma adaptação moderna de Orgulho e Preconceito leva não apenas a um produto de alta qualidade que conversa com anseios e necessidades de consumo de entretenimento de uma geração mais jovem, mas também um pedaço da cultura pop que ajuda a endossar o coro contra produções que insistem em utilizar recursos supostamente ultrapassados. Nesse sentido, o produto final alcançado pela dupla fomentou um espaço de identificação e representatividade, e abriu espaço para o debate de temas delicados, muitas vezes romantizados e mascarados como cuidado e amor, como relacionamentos abusivos, slut-shaming e invasão pessoal.

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Aqui, os preconceitos de Lizzie também ganham novas formas, desdobramentos e sentidos. Sua personalidade é carregada de nuances, com o humor satírico e ácido e as análises pontuais e lúcidas, que já conhecemos; contudo, nessa nova representação, somos apresentados a uma Elizabeth que não é cega apenas em relação a Darcy e a bagagem que vem com ele, mas também deixa suas percepções limitadas e crenças arraigadas interferirem em seus relacionamentos com Charlotte — quando esta decide tomar decisões que contrariam a visão de mundo de Lizzie —, a Sra. Bennet e, especialmente, Lydia.

Toda a trama, digna de novela mexicana, que ocorre entre Lizzie, Lydia e Wickham na história original, ganha uma profundidade assustadora na websérie, à medida que o relacionamento das duas irmãs Bennet vai sofrendo rachaduras, motivadas pelas atitudes “promíscuas” e inconsequentes de Lydia — estimuladas, em sua maioria, com o objetivo de chamar a atenção e ganhar o carinho de Lizzie, que apenas aponta a irresponsabilidade e inconsequência da irmã caçula. Desta forma, somos testemunhas do slut-shaming contínuo que a protagonista realiza com a irmã, sem medir palavras, chegando ao ponto de chamá-la de “stupid whorey slut” (piriguete, em tradução livre).

Deste ponto em diante, sem contar com o apoio da família, sentindo-se abandonada e não amada, não é preciso muito esforço da parte de Wickham para seduzir Lydia e, assim, ela entra em um relacionamento abusivo e codependente. Manipulada, a adolescente é levada a gravar um vídeo íntimo com o então namorado, que ameaça publicá-lo na internet se não receber uma quantia em dinheiro.

O escândalo envolvendo Lydia levanta questões importantes e sensíveis sobre um tema delicado: culpa, vergonha e responsabilidade atingem em cheio as irmãs Bennet. E é aqui que a mensagem positiva para os espectadores entra em cena. Com o tema tratado de forma correta e ponderada, vemos a culpa que recai sobre a vítima ser tirada de seus ombros e repassada, única e exclusivamente, para o abusador, a quem pertence por direito. A compreensão, o respeito e apoio mútuo que se estabelece entre Lizzie e Lydia também é um bom exemplo para as milhares de mulheres que sofrem com o vazamento de conteúdo íntimo — ou para alguém que possui uma conhecida/amiga/familiar vítima da situação — e que não encontram na mídia em geral um abrigo, mas, sim, um lugar de julgamento e condenação.

Além disso, levando em conta que The Lizzie Bennet Diaries é uma websérie sobre reconhecer as mudanças sociais e proporcionar um reconhecimento dos espectadores no que se passa na tela, é indispensável e imprescindível que o apagamento de raça e gênero promovido vertiginosamente por Hollywood fosse subvertido. Fitz William nessa versão, por exemplo, é gay. E negro. Bing Lee, Charlotte Lu e sua irmã, Maria Lu, são representados por atores orientais.

Claro que a diversidade está longe de ser ideal, mas em tempos repletos de whitewashing e queerbaiting, ter representações saudáveis e bem escritas é tão raro que, ao mínimo sinal, já nos sentimos contemplados. Ainda mais em uma produção que se propõe a adaptar um clássico, geralmente repletos de figuras brancas. A decisão de incluir atores que fujam do padrão eurocêntrico em uma produção icônica em nada afeta o desempenho, a mensagem a ser transmitida ou a visão da história, como alguns gostam de clamar por aí.

Em suma, mais do que trazer à tona uma série de características da geração millennials — crise existencial, a falta de dinheiro, a impossibilidade de concretizar um sonho, como ter uma carreira bem sucedida, ter relacionamentos amorosos estáveis e alcançar a máxima do sucesso em todas as áreas possíveis —, o papel da Lizzie Bennet, em sua versão século XXI é nos fazer refletir sobre quem somos, o tipo de vida que estamos construindo para nós mesmos e as diversas facetas de uma mulher (a ingênua, a que não nega sua sexualidade, a sonhadora, a de opinião forte, a que ama tecnologia, dentre muitas outras), todas elas aceitáveis, mesmo que o padrão comportamental da nossa sociedade diga o contrário.