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The Hour: jornalismo, crítica e protagonismo feminino nos anos 50

Considero The Hour, série criada por Abi Morgan e exibida pela BBC entre 2011 e 2012, como minha história injustiçada particular. Situada na década de 1950, mais especificamente em 1956, The Hour contou a história de um grupo de jornalistas e produtores trabalhando em um noticiário comandado por uma jovem mulher, Bel Rowley (Romola Garai). A série teve apenas duas temporadas com tons bastante distintos. A primeira delas tem um clima pesado de espionagem, com uma carga deliciosa de jornalismo investigativo conduzido por Freddie Lyon (Ben Whishaw), e também se concentra no estopim da Guerra de Suez. É uma temporada ótima que se resolve em si mesma, mas é na segunda que a série brilha ao máximo, desvelando aos poucos um grande esquema que envolve corrupção, chantagem, racismo, xenofobia e misoginia. Podem parecer elementos demais, mas a mão de Abi Morgan não deixa a história desandar, e não foi por acaso que ela recebeu um Emmy pelo roteiro dessa temporada em 2013.

The Hour foi exibida pela BBC2, um canal secundário da BBC com uma programação com menor apelo para o grande público, mas mesmo para os padrões do canal a audiência foi considerada baixa para que a série fosse renovada para uma terceira temporada. Entendo o motivo. Os episódios são longos — todos têm uma hora —, o ritmo é lento e o roteiro pede algum nível de compreensão da história do período, de um jeito que eu nunca senti em Mad Men, a qual ela sempre foi comparada, por exemplo, porque lá a história era mais pano de fundo e menos central.

Ainda assim, uma série de elementos fizeram o esforço valer a pena. Embora a produção tenha sido criticada por quem viveu o jornalismo da época (e o período em si), The Hour é muito bonita visualmente, especialmente quanto à forte presença das cores. A trilha sonora é ótima, ajudando muito na construção do clima de suspense que ronda a primeira temporada. O desenrolar dos fatos é gradual e bem equilibrado ao longo de cada temporada, atiçando a curiosidade. Mas a maior força da série está em seus personagens — especialmente em suas personagens femininas.

O protagonismo feminino

Quando a série começa, Bel recebe o encargo de produzir um programa de televisão, e é perceptível sua insegurança no papel, que ela se esforça para preencher. Ela precisa aprender a lidar com a desconfiança que existe em torno de seu trabalho, seja porque é um programa novo, seja porque, bem, ela é uma mulher jovem. Bel se destaca em um ambiente majoritariamente masculino e esse é um peso que tem de carregar. Do século XXI, Bel foi considerada um pouco moderna demais por quem tem conhecimento de causa, e mesmo Romola Garai, que deu vida à personagem, reconhece que ela é, de certa forma, uma fantasia — uma fantasia principalmente de independência, vontade própria e grande sucesso profissional numa idade bastante jovem.

Enquanto aos poucos se assenta em seu papel de produtora, fazendo um bom trabalho e contrariando os céticos, Bel também precisa lidar com as pressões sociais mais comuns para uma jovem mulher solteira. E ela as questiona: por que as mulheres precisam sempre estar casadas, ou então não casadas — ou seja, por que o estado civil de uma mulher precisava ser uma característica tão primária em relação a ela? Bel é alguém que ama o jornalismo e para quem sua carreira é algo essencial, assim como é para seu colega e amigo Freddie, mas dificilmente alguém questionaria tão incisivamente o segundo quanto a sua dedicação a esse aspecto da sua vida. Quando Freddie é questionado, é porque não está pensando em como se proteger dos riscos que corre ou porque não está pensando na proteção que deve à sua fonte. Ou seja, por questões profissionais.

Assim, é inspirador ver Bel dizendo que vai “fazer exatamente o que quer, e pro inferno com o resto”. O que não a torna menos suscetível às dúvidas a respeito de si própria quando ouve do homem com quem está se relacionando que ela é impossível, porque não existe espaço algum entre ela e a notícia e o jornalismo. Permitindo que Bel questione a si mesma, às suas motivações pessoais e eventualmente também profissionais e os caminhos que toma, permitindo que ela demonstre insegurança e incerteza, Abi Morgan permite que Bel seja uma personagem com nuances e, nesse sentido, ela passa longe de uma fantasia.

Lix Storm (Anna Chancellor) divide o espaço da redação com Bel, e ocupa os papéis de amiga, mentora e voz da experiência. Lix é mais velha e, consequentemente, mais experiente, além de transitar mais confortavelmente no espaço masculino que tornou seu — o que tem grande relação com a experiência. Assim como Bel, Lix é um protótipo de career woman, e não temos oportunidade de vê-la para além de sua função nos estúdios da BBC até a segunda temporada, com a introdução de Randall (Peter Capaldi) nos bastidores do programa. Randall faz parte de seu passado de maneiras que nos são apresentadas muito sutilmente. O que vemos em Lix não é arrependimento pelas escolhas passadas, e sim a percepção de que algumas coisas vivem conosco para sempre e são experiências que carregaremos por toda a vida.

A trama de Lix na segunda temporada dá à personagem alguns belos momentos de emoção contida, mas profunda. Eles permitem que ela seja muito mais do que a pessoa que fala a Bel, em quem ela de certa forma se vê, como uma conselheira mais experiente ou do que a voz que coloca as coisas em perspectiva para seus colegas mais jovens e mais empolgados (por vezes até demais) com as histórias que querem contar. Aliás, a segunda temporada cresce muito em termos de caracterização de seus personagens de um modo geral, provavelmente porque o mais importante na primeira era estabelecer o trio protagonista: Bel, Freddie e, por fim, Hector Madden (Dominic West), o apresentador do programa. O que nos leva a Marnie Madden (Oona Chaplin).

Em The Hour, existe vida fora da redação também, e é especialmente na figura de Marnie , esposa do âncora/galã do programa, Hector, que isso aparece. A personagem é apresentada como aquela que preenche o papel da boa esposa dos anos 1950, vestindo saias rodadas, preparando jantares e fingindo que não enxerga os flertes descarados do marido com outras mulheres ou que jamais desconfia das muitas noites que ele passa longe de casa. Marnie jamais chega à rebeldia de questionar seu papel de esposa e futura mãe e adota todas as imagens e funções tipicamente femininas, mas é através dessas funções que ela tem seu maior ato de rebelião, ganhando um programa culinário na concorrente ITV.

Marnie se torna cada vez menos calada e cada vez mais dona da própria vida, e se ela nunca toma medidas drásticas é porque quer preservar a si mesma, à sua própria imagem, não a do marido, não por um senso de dever em relação a ele. É óbvio que Marnie não morre de amores pelas mulheres com quem o marido tem casos extraconjugais, mas o foco dela nunca é nessas mulheres que não significam absolutamente nada para ela, e sim no homem que a escolheu como esposa e fez votos para ela. Ao invés de insistir na velha narrativa de colocar mulheres competindo uma com a outra, a série põe na boca de Marnie as palavras “duas mulheres bonitas e sensatas desperdiçadas por causa de você. Você não tem vergonha?”. A revolução de Marnie é quieta, mas muito significativa, e é fascinante vê-la confrontar uma sala cheia de executivos importantes quando eles sugerem que sua imagem não é mais a daquele ideal doméstico em que estavam interessados.

O jornalismo e a crítica

Embora a trama de The Hour se passe na década de 50, ela existe pela mão de uma roteirista contemporânea, e seria impossível fazê-la ou assisti-la sem a influência daquilo que vivemos hoje. Desse modo, é uma história de nossos tempos — especialmente considerando-se os temas que aborda. Porque estamos discutindo muitos deles até hoje.

Um dos personagens secundários de destaque, por exemplo, é Sey Ola (Tomiwa Edun), médico negro e imigrante que passa a sofrer ataques racistas e xenófobos diariamente, com uma porção de vizinhos pichando o prédio onde e vive e mandando-o sempre voltar pra casa (para que eles possam tornar o Reino Unido grande de novo, talvez?), nos lembrando que a história se repete e enquanto sociedade aprendemos muito pouco e muito lentamente. Freddie, o jovem jornalista empolgado, é vizinho de Sey e assiste a todos esses ataques, chegando à conclusão de que o The Hour deve reportar a onda xenófoba que vê crescendo no país. Buscando aquele ideal inatingível de imparcialidade, ele convida Sey e seu maior algoz para debaterem juntos no programa, o que deixa a redação inteira incrédula: Freddie quer trazer um fascista para falar na BBC? Freddie acredita que o garoto se afundaria pelo próprio discurso e confia o suficiente na sua habilidade de destruir sua argumentação fazendo as perguntas certas. Ainda assim, todos sabemos o quanto é perigoso dar corda para esse tipo de discurso. Freddie é idealista demais e confia muito no público que tanto deseja informar da melhor maneira possível, muitas vezes se esquecendo de levar em consideração o quão diferente dele as pessoas podem ser.

Paralelamente, somos apresentados a Kiki Delaine (Hannah Tointon), jovem dançarina no clube noturno ascendente El Paradis. Kiki é violentada por alguém fora da tela e denuncia Hector, apresentador do The Hour, como seu agressor. É uma denúncia falsa e o roteiro jamais exime a personagem de sua culpa ou justifica sua atitude, mas a explica. Kiki é brutalmente violentada por um homem poderoso porque é só uma prostituta e, depois que a inocência de Hector é confirmada, parece que ninguém mais na redação quer saber por quem e como ela foi violentada. Cabe a Bel lembrá-los que as marcas daquela violência ainda estavam lá e a afirmar que eles têm o dever de perseguir aquela história.

Não só Kiki, mas todas as jovens mulheres do El Paradis são vistas como meros objetos. Elas devem ser mulheres bonitas e preferencialmente burras que entretenham homens importantes e, no momento em que não satisfazem mais esses requisitos, elas se tornam dispensáveis. Ninguém se importa, ninguém quer saber, ninguém as está obrigando a fazer aquele trabalho pago, afinal. Mais uma vez, cabe a Bel lembrar que se elas são colocadas em posições tão vulneráveis e degradantes aceitando tão pouco, é porque existe um público sedento por isso e aqueles que lucram da exploração de seus corpos.

Aos poucos, as tramas paralelas que permeiam a redação do The Hour são amarradas de uma maneira cada vez mais complicada que não perdoa quase ninguém. A série não tenta ser uma aula de como fazer jornalismo, e sim uma reflexão sobre a responsabilidade implicada por esse trabalho, a importância da precaução antes de reportar uma história e as pressões externas que a imprensa sofre, especialmente em momentos como o que o Reino Unido vivia lá na década de 1950. Tudo isso dentro de uma trama que deu muito espaço às suas personagens femininas, buscando retratar com profundidade — e talvez um pouco de inspiradora fantasia — o que significava ser uma mulher em meios predominantemente masculinos, recusando a subordinação ou o papel de objeto que lhes era reservado.

P.S.: Em nome da honestidade: a série foi cancelada em meio a um cliffhanger, mas garanto que suas míseras doze horas de duração — disponíveis em sua totalidade na Netflix — valem muito a pena mesmo assim.

1 comentário

  1. Adorei seu texto Fernanda. Confesso que essa série já está há um bom tempo na minha lista pra assistir, mas sempre invento alguma desculpa e deixo ela pra depois.
    Fiquei bem curiosa pra começá-la.

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