Categorias: COLABORAÇÃO, TV

Entre bolos e abraços: The Great British Bake Off

Os reality shows de culinária que mais bombam no Brasil e no mundo — Masterchef e Hell’s Kitchen — reproduzem a lógica daqueles que buscam novos talentos musicais: enquanto concorrentes nervosos do país inteiro tentam provar suas habilidades em rede nacional, uma bancada de jurados os analisa friamente em busca de defeitos que serão posteriormente exacerbados na esperança de criar uma cena suficientemente horrível para se tornar um vídeo viral. Essa lógica é completamente subvertida no britânico The Great British Bake Off (também conhecido por sua sigla mão-na-roda GBBO), transmitido pela BBC (e recentemente cancelado pela mesma) desde 2010.

Apesar de ter gerado diversas versões internacionais — inclusive uma brasileira, que estreou no SBT em 2015 — nenhuma se compara à original. A competição é exclusivamente focada em confeitaria — pães, bolos, patisserie — e a cada ano escolhe-se doze confeiteiros amadores para concorrer ao título de melhor do Reino Unido. Ao longo de dez finais de semana, eles se reúnem na tenda fofinha do programa, montada no jardim de uma daquelas grandes propriedades Elizabetanas à la Downton Abbey.

Para além de seu modelo mais humano, o grande ponto forte — que a emissora de Silvio Santos falhou miseravelmente em reproduzir — do GBBO é seu grupo de jurados e apresentadores: Mary Berry e Paul Hollywood são dois dos confeiteiros mais prestigiados da terra da Rainha Elizabeth II, mas só abrem a boca para dar críticas construtivas e, se o concorrente tiver sorte, se referir a seus baked goods como “scrumptious” [muito delicioso]. Quem guia tanto a audiência como os competidores é a dupla composta por Mel Giedroyc e Sue Perkins, comediantes que se apresentam juntas desde meados dos anos 1990 e conseguem realizar a proeza nem-tão-difícil-assim (apesar do que setores mais conservadores possam argumentar) de fazer piadas hilárias e nem um pouco ofensivas; e estão sempre prontas para descontrair ou oferecer suporte emocional àqueles bakers perfeccionistas que se encontram à beira de um ataque de nervos.

Algumas pessoas acreditam que programas de entretenimento não podem nos ensinar nada ou ter um impacto valioso em nosso dia a dia. Eu obviamente discordo. The Great British Bake Off tem uma estrutura e aura geral que são educativas tanto de um ponto de vista “formal” como sentimental: cada episódio conta com um quadro no qual uma das apresentadoras investiga as origens e tradições por trás das receitas propostas como desafios, oferecendo uma perspectiva histórica para um formato que frequentemente se resume ao imediatismo da competição. Esta, por sua vez, é tratada de modo completamente diferente no programa: além da postura bondosa (leia-se: não escrota) da equipe, os próprios competidores se ajudam. Confeiteiro nº1 acabou com tempo de sobra e viu que Confeiteira nº2 não vai conseguir desenformar todos os bolinhos sozinha? Confeiteiro nº7 não tá conseguindo dar conta de fazer a calda e tirar a massa do forno ao mesmo tempo? É pra isso que o resto dos competidores tá aí. O resultado? Não tem nada mais comum do que a eliminação de um participante causar crises de choro em todos os outros.

A minha impressão é que a grande razão de realities dedicados a destruir todo mundo que passa por ali serem tão bem sucedidos — não que o GBBO não seja, mas de um ponto de vista global, as duas febres não se comparam — é que esse tipo de atitude ressoa e muito com os valores hiper-competitivos da nossa sociedade. Mesmo que subconscientemente, somos adeptos da ideia de que devemos almejar ser os melhores em tudo que fazemos e que, para isso, alguém precisa ser o pior. E não existe nada mais reconfortante do que reafirmar essa superioridade por meio de um júri impiedoso e programas que reiteram a conexão entre mediocridade e humilhação. De certo modo, é uma reverberação daquela velha ideia foucaultiana de Vigiar e Punir (ou do episódio “50 milhões de méritos”, de Black Mirror, se preferir): manter e exaltar padrões limitantes e rígidos é a melhor maneira de nos manter na linha — que, neste caso, é uma mentalidade de competição e produtividade doentias.

Outro aspecto importante do Bake Off é que ele consegue dar o show de representatividade mais natural e inesperado — afinal, temos o hábito de problematizar essa questão muito mais em obras de ficção — de todos, e acaba mostrando justamente o quão racional criar programas com diversidade é. Sue Perkins, uma das apresentadoras, é abertamente lésbica e inclusive constrói muitas das clássicas piadas sexuais do programa em cima deste fato. Entre os competidores, sempre enxergamos um reflexo da composição étnica do Reino Unido: uma maioria branca, sim (87,17% em 2011, a Wikipedia me conta); mas ao menos um de origem indiana ou paquistanesa (2,3% e 1,86% da população, respectivamente) e um negro (3,01%). Por ser um programa de culinária amadora, também contamos com grande diversidade de gênero, idade e ocupação: a quinta edição, por exemplo, colocou uma estudante branca de 17 anos (Martha Collison) para competir com uma estilista indiana de 35 anos (Chetna Makan), um engenheiro de 31 anos (Iain Watters) e uma profissional de recursos humanos aposentada de 60 anos (Nancy Birtwhistle).

O que torna o GBBO tão bem sucedido em todos os eixos é a aliança entre um ambiente mais dócil e desafios verdadeiramente complicados, que exigem tanta habilidade quanto as versões adeptas da pressão. O programa prova que a doçura não é sinônimo de tédio e muito menos moleza: a diferença é que, quando erros acontecem, é devido a dificuldade técnica dos desafios e não de um terror psicológico vazio que frequentemente impede os competidores de mostrar suas habilidades de fato. Centrado numa área da culinária que é vista por muitos como exclusivamente feminina — até por ser considerada menos “inventiva” que outras — ele prova que baking é difícil, e muito, e se afasta por completo da ideia de um padrão (de gênero, idade, etnia e até formato de corpo) ideal de confeiteiro.

O Bake Off ainda faz um ótimo trabalho de repaginar de forma convincente uma noção de britishness, valendo-se tanto da culinária típica das ilhas (acreditem: doces britânicos são gostosos) como dessa leve esquisitice cômica que é quase patrimônio nacional (os jurados discutem quem vai levar o título de destaque da semana enquanto tomam chá, por exemplo), mas a situando dentro dum Reino Unido globalizado e multicultural. No mundo mágico da tenda pitoresca, bondade, bandeirinhas e açúcar de confeiteiro do Great British Bake Off, tanto a arte da confeitaria como o próprio ser britânico são ideais pra lá de acessíveis e, além de tudo, divertidíssimos. Acessibilidade tão pronunciada que, a cada ano, as vendas de utensílios e produtos relacionados às receitas do programa têm um aumento vertiginoso, e uma pesquisa de 2015 do site de culinária Waitrose revelou que a confeitaria/panificação atingiu um ápice de popularidade: 19% dos entrevistados disseram que realizam a atividade ao menos uma vez por semana, e metade disse fazê-lo bem mais do que cinco anos atrás.

Há pouco mais de um mês, a BBC anunciou que não tem como arcar com os custos crescentes do programa, mesmo este sendo um campeão de audiência da emissora. Logo em seguida, o segundo maior canal do Reino Unido, Channel 4, se dispôs a dar continuidade ao reality. Suas estrelas — com exceção de uma, o jurado considerado o maior padeiro da terra da rainha, Paul Hollywood — decidiram não ir para o novo barco, tornando a futura versão do programa algo completamente incerto. Provavelmente preocupado em manter a popularidade do reality, seu novo lar já anunciou que utilizará aquilo que é potencialmente sua maior arma: o comediante Richard Ayoade, antigo protagonista da maravilhosa The IT Crowd conhecido pelo seu humor irônico, foi escalado como apresentador. Há rumores de que a BBC produzirá um novo programa com quem ficou — caso isso aconteça, estamos caminhando para uma disputa por audiência que, apesar de nada no espírito Bake Off, promete ser um tanto interessante.

Mesmo se seus descendentes acabarem sendo um desastre — hipótese na qual quem vos fala não acredita muito, não — a essência do GBBO continuará dispersa por tudo e todos que já entraram em contato com ele. Seja como uma referência de competição e crítica saudáveis (pegando emprestado outro marco da cultura pop britânica, esse é o programa mais lufano de todos os tempos. E isso talvez tenha muito a ver com seu local de produção, uma vez que as versões americanas e australianas foram descritas como bem mais competitivas); uma bagagem de conhecimento histórico; novos hobbies culinários ou algum dos muitos livros de receita lançados por antigos concorrentes, o Great British Bake Off já conseguiu ir de febre a patrimônio cultural.

Bárbara Reis é uma estudante de jornalismo paulista de 19 anos que fala rápido demais, ainda não aprendeu a não colocar sua vida nas mãos de bandas de rock e tem o péssimo hábito de acumular livros para ler e séries para assistir.