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The Girl King: uma rainha à frente de seu tempo

Christina, filha única do Rei Gustavo II Adolfo e da Rainha Maria Eleonora de Brandemburgo, foi proclamada rainha da Suécia quando tinha apenas seis anos de idade. Seu pai havia morrido na Batalha de Lützen — decisiva disputa durante a Guerra dos 30 Anos, travada entre protestantes e católicos em 1632 — e Christina, assegurada como legítima filha e herdeira do monarca, ascendeu ao trono em meio a um ambiente conturbado de intrigas políticas. Um tanto diferente do esperado, no entanto, foi a criação de Christina após a morte do pai: o rei deixou determinado que a menina deveria ser educada como um príncipe, o que marcaria o futuro de Christina para sempre.

Livremente inspirado nos primeiros anos da infância de Christina e em sua década de reinado, The Girl King (A Jovem Rainha, no Brasil) busca contar de maneira romanceada alguns dos eventos mais marcantes da vida da rainha. O título original, traduzido livremente, remete de uma maneira muito mais clara à vida de Christina: algo como “O Rei Menina”, que se relaciona diretamente com a educação refinada e diferenciada que ela recebeu à época. Mesmo para uma princesa, não era comum que às meninas fossem dadas lições sobre, por exemplo, estratégias de guerra e lutas de espada. Christina aprendeu sobre religião e filosofia, grego e latim; recebeu lições sobre política e lia sobre pensadores contemporâneos e antigos; discutia sobre Lutero e questionava religião ainda aos oito anos de idade; era fluente em pelo menos quatro línguas — alemão, dinamarquês, francês e italiano —; e, algo chocante para os padrões do século XVII, vestia-se, em muitas ocasiões, com roupas masculinas.

No filme, a jovem Christina (interpretada na infância por Lotus Tinat) já demonstra possuir um entendimento amplo sobre o ambiente em que está inserida. Após ser afastada da mãe (Martina Gedeck), a menina começa a trilhar um caminho na corte bastante consciente de seu lugar no mundo, seu papel e o que pretende fazer com a posição privilegiada que ocupa. A distância da mãe não é um empecilho visto que, por dois anos, Christina fora obrigada a conviver com o cadáver em decomposição do pai, pois Maria Eleonora não conseguia deixá-lo ser enterrado. Foram anos de puro terror e que certamente refletiriam no comportamento da menina nos anos que se seguiriam — Christina só foi retirada dessa convivência macabra com um cadáver (no qual era obrigada a dar beijos de bom dia e boa noite como se o rei ainda estivesse vivo) quando o Chanceler Axel Oxenstierna (Michael Nyqvist), cumprindo o desejo do falecido rei, a colocou sobre sua tutela. 

A partir de então, Christina passa a dedicar-se aos estudos, mostrando-se sempre uma menina curiosa e com sede de aprender — características cada vez mais acentuadas enquanto ela cresce, tornando-se traços evidentes e marcantes de sua personalidade. Em 1644, aos dezoito anos, Christina é oficialmente coroada e, agora interpretada pela incrível Malin Buska, começa a colocar seus planos para a Suécia em andamento: o país encontra-se preso na disputa entre católicos e protestantes, mas a rainha quer que seu reinado seja marcado pela paz — o que não é muito bem recebido por sua corte e generais que lucram com a guerra. A rainha Christina também pretende modernizar a Suécia trazendo filósofos, pintores e músicos para o convívio da corte, mas, novamente, seus ideais de grandeza não foram acompanhados por seus conselheiros e demais súditos que, no geral, só conseguiam pensar na rainha como uma mulher que precisava casar e engravidar de maneira a assegurar um herdeiro para o trono o mais rápido possível.

Essa não é uma história nova para mulheres em posição de poder, principalmente em monarquias. A pressão para se casar e produzir um herdeiro não é exclusiva da trajetória da rainha Christina — já aconteceu com a Rainha Elizabeth I e com a Rainha Victoria, só para citar algumas —, e a sueca, mostrando uma determinação implacável, decidiu que jamais se submeteria a outro homem enquanto vivesse, mesmo que para isso colocasse em risco a linha sucessória da Suécia. Nesse panorama, no entanto, é possível dizer que não faltavam pretendentes à rainha: no dia de sua coroação, por exemplo, ela foi pedida em casamento pelo conde Jakob de la Gardie (Jannis Niewöhner), enquanto era alvo das ambições do conde Johan Oxenstierna (Lucas Bryant) e do amor de seu primo, Karl Gustav Kasimir (François Arnaud). O fato é que Christina não queria ser vista apenas por aquilo que poderia prover ao reino, que viria na forma de um herdeiro, e, para afastar-se dos três pretendes, os despacha em missões variadas para que se ausentem da corte e a deixem livre de seu assédio.

Nesse meio tempo, Christina é apresentada à condessa Ebba Sparre (Sarah Gadon), na ocasião noiva de um nobre. No longa é possível notar imediatamente que a rainha sente-se interessada à primeira vista pela condessa, uma moça bela e delicada que, de início, parece intimidada pela presença da monarca. Criada desde sempre como herdeira do trono, as atitudes de Christina espelham a de qualquer nobre e, portanto, podem sobressaltar os menos acostumados com suas maneiras autoritárias, o que não impede que as duas mulheres comecem a desenvolver um relacionamento amoroso. Em The Girl King, o diretor Mika Kaurismäki e o roteirista Michel Marc Bouchard decidem contar essa história sem meias palavras: a rainha Christina sente-se completamente atraída por Ebba Sparre e não poupa esforços para seduzir a condessa, presenteando-a com um belo vestido azul, ordenando que pintassem um quadro de sua figura e solicitando sua presença sempre que possível. Muito se fala a respeito da vida privada da rainha Christina e alguns estudiosos, inclusive, levantam a hipótese da monarca ter sido hermafrodita (a exumação do corpo da rainha, uma dentre as três mulheres enterradas na Basílica de São Pedro, em Roma, entretanto, foi inconclusiva quanto a isso). Especula-se, também, sobre a sexualidade de Christina e muitos teorizam se a rainha foi bissexual ou lésbica — porém, o que fica marcado, mesmo com esse questionamento, é que Christina foi uma mulher muito à frente de seu tempo e, como tantas outras, sofreu por ter um espírito livre e pensar por conta própria. 

Todos os ensinamentos que Christina recebeu durante a infância não foram importantes apenas por conta de seu dever enquanto rainha, mas também serviram para fazê-la pensar por si mesma. Uma das frases mais repetidas por ela durante The Girl King fala justamente sobre a desconstrução do pensamento e, inspirada pelo filósofo René Descartes (Patrick Bauchau), com quem trocava correspondências, vem a semente da dúvida que floresceria mais tarde, fazendo com que a rainha abdicasse do trono da Suécia e se convertesse ao catolicismo: “Para atingirmos a verdade na vida devemos descartar todas as ideias que nos foram ensinadas. E reconstruir todo o sistema de nosso conhecimento.” Desde criança, Christina questionava a vivência e os costumes deixados por Lutero e se recusava a seguir as normas que regiam a sociedade em que estava inserida, fossem essas normas de gênero, religião, política ou filosofia. A ideia principal de Christina era não se deixar limitar por aquilo que lhe foi ensinado, procurando sempre se aprimorar e descobrir o novo. Suas cartas e conversas com Descartes demonstram que a rainha tinha uma personalidade flexível e prezava, acima de tudo, por sua liberdade. Seu espírito desafiador e seus ideais de grandeza foram como um estorvo para aqueles na corte, como o Chanceler Oxenstierna, que imaginaram poder manobrar a rainha como bem quisessem — quebrar o espírito idealista de Christina se mostrava difícil, mas de planos malignos a mente do Chanceler estava cheia.

Aproveitando-se do amor que Christina sentia pela condessa Ebba Sparre — sentimento correspondido em meio a beijos no meio de espólios de guerra e livros raros —, o Chanceler decidiu enviar a condessa para longe, casando-a com um nobre. O Chanceler levou Ebba Sparre a acreditar que se casar era o que de melhor poderia fazer pelo bem da rainha, conseguindo iludir a moça para que aceitasse o matrimônio. A ausência de Ebba na corte — a quem Christina chamava carinhosamente de Belle —, é sentida profundamente pela rainha que, perdendo a força e o vigor, passa a vagar pelo palácio e a empreender cavalgadas solitárias em meio a neve do rigoroso inverno sueco. Amor e dever geralmente não caminham de mãos dadas, principalmente se você é uma rainha do século XVII, e a história de Christina e Ebba dificilmente teria um final feliz. Com o coração partido, a saúde debilitada, exausta de ter que lidar com os deveres da corte e a pressão para se casar com um de seus pretendentes, Christina decide que, para conquistar sua tão preciosa liberdade e ser completamente dona de si, precisaria abrir mão da religião de seu pai — o protestantismo de Lutero — e o trono da Suécia.

Christina abdica do trono com apenas uma década de reinado, em 1654, indicando seu primo, o apaixonado Karl Gustav Kasimir, como seu sucessor. Utilizando-se de uma saída inteligente, Christina “adota” seu primo, colocando-o, dessa maneira, na linha sucessória da monarquia sueca. The Girl King é um bom filme para mostrar a imagem fascinante e controversa da rainha Christina que, conhecida como “a rainha rebelde” por seus contemporâneos, foi fiel aos seus ideais e seguiu um caminho próprio, se recusando a ser limitada pelas convenções sociais de sua época. Christina era constante alvo de fofocas e especulações em sua corte por não se interessar pelas coisas ditas “femininas” — era inconcebível para uma mulher do século XVII demonstrar curiosidade intelectual, pensar por si mesma ou usar calças para cavalgar. Sua abdicação ao trono e conversão ao catolicismo foram apenas mais dois itens a serem inseridos na lista de controvérsias na vida de Christina. A rainha nunca se interessou completamente pela religião de Lutero e por boa parte de seu reinado estudou o catolicismo, aos poucos encontrando uma religião e uma fé com que se identificasse. O catolicismo, para Christina, era capaz de reunir fé e razão da maneira como ela acreditava ser o ideal e para converter-se a outra religião ela não poderia continuar a ser rainha de um país oficialmente protestante — uma ruptura sem planejamento poderia desencadear uma guerra civil e a morte da própria Christina.

Em The Girl King não são dados muitos detalhes dessa conversão, mas, de acordo com a História, Christina trabalhou nessa transição por muito tempo, imaginando a melhor maneira para deixar sua amada Suécia sem causar muitos danos. A conversão de Christina para o catolicismo, inclusive, a fez ser vista com bons olhos por Roma, que passou a utilizá-la como um trunfo da ContrarreformaO filme também peca em não ir além da abdicação de Christina ao trono, limitando-se a dividir sua história e focar por boa parte do tempo no romance da rainha com a condessa Ebba Sparre. Não que exista algo de errado em contar uma história de amor entre duas mulheres nobres do século XVII, mas a vida de Christina não se resumia ao romance. Após afastar-se da corte sueca, Christina passa a viver em Roma, recebida de bom grado pelo Papa Alexandre VII, e aos poucos transforma sua estadia no exílio naquilo em que ela sempre sonhou em transformar a Suécia: o ponto central das mentes mais brilhantes de seu tempo, que se reuniam ao redor dela para debater, refletir e criar.

A história de vida da rainha Christina da Suécia é rica e inspiradora. Nascida menina enquanto todo o reino aguardava ansiosamente por um príncipe, Christina teve a sorte de receber uma educação esmerada quando o padrão, por ser uma princesa, seria completamente diferente. Embora o desejo de seu pai tenha sido essencial para o curso que sua vida tomaria, Christina cultivou sua própria inteligência e declinou do privilégio de ser rainha para fazer aquilo que ela acreditava ser o correto para conquistar sua liberdade. Ser forçada a casar e ter filhos pelo bem de seu país, passar a vida sendo direcionada por um grupo de homens não era nem de perto o ideal de vida que Christina tinha para si. Ela poderia ter se mantido no trono, com todos os seus privilégios, e permanecido cultivando as aparências da fé luterana, mas decidiu que a verdade plena e a liberdade de espírito eram coisas muito caras. É preciso coragem para abrir mão de tudo aquilo que lhe é querido em prol de uma realização maior, e foi isso o que Christina fez. Planejou com cuidado sua saída e escolheu um sucessor capaz para não prejudicar a Suécia, país que amava profundamente, e encontrou seu destino em Roma em meio à arte, filosofia e ciência que tanto atiçavam sua curiosidade.

The Girl King, embora tenha falhas, é um filme interessante e serve como porta de entrada para a vida dessa figura tão controversa da História. A rainha Christina amou e viveu intensamente, algo que é permitido à poucos. Utilizou-se de sua posição privilegiada para tentar transformar seu país, mas foi podada por uma sociedade rígida e pouco aberta para experimentar o novo. Christina foi adotada como símbolo da comunidade lésbica e teve sua trajetória singular como inspiração para peças de teatro e musicais, além de um filme estrelado por Greta Garbo em 1933, o Queen Christina. 

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