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Do limão à limonada: Teresa e Estela em Babilônia

Nunca vou esquecer daquela noite: minha mãe, eu e minha avó sentadas em frente à televisão, assistindo à estreia de Babilônia. Era um dia como outro qualquer, em que nós três, de gerações tão diferentes, nos reunimos para ver novela, um hábito que carrego desde a época que me entendo por gente.

Nós jantávamos enquanto assistíamos as personagens de Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg, Teresa e Estela, respectivamente, entrarem em cena pela primeira vez. As duas conversavam sobre a filha de uma delas, Beatriz (Glória Pires). Até aí, nada fora da curva. De repente, o que ninguém esperava aconteceu: Teresa e Estela trocaram um beijo. Minha mãe e eu começamos a gritar na frente da televisão de tanta felicidade. Era uma felicidade quase clandestina, pois minha avó ficou em silêncio. Aquele silêncio me marcou para sempre, porque ele dizia muito. Três gerações que enxergavam a questão da homossexualidade de maneiras completamente diferentes. O silêncio de uma contrastava com os gritos de outra. A internet, é claro, veio abaixo com a cena do beijo. Ninguém sabia nem por onde começar a analisar. O que havia sido mais ousado afinal de contas? Duas damas da televisão se beijando em rede nacional? O beijo ter acontecido no primeiro capítulo?

Nossa felicidade, infelizmente, durou pouco. A reação conservadora que se seguiu após os dois beijos trocados pelas personagens, em questão de dois dias, deixou o brasileiro com um gosto amargo na boca. Um gosto de homofobia para ser mais precisa. As atrizes foram chamadas de velhas safadas pelo pastor de uma igreja e isso, somado a outros fatores, fez com que Gilberto Braga tivesse de abortar a trama prevista para Estela e Teresa.

Babilônia

Foi triste? Muito, muito mesmo. Contudo, o autor da novela pegou esse limão e transformou em uma limonada. Gilberto Braga usou a novela para fazer uma dura crítica ao conservadorismo, já que o casal de senhoras fora censurado pelo homem de bem. Estela e Teresa não foram as primeiras mulheres a se beijarem em rede nacional. Antes de Clarina, houve Amor e Revolução, novela do SBT que inseriu o primeiro beijo entre mulheres em rede nacional. Naquela época, ninguém ligou muito, pelo menos não da mesma maneira como Babilônia. As pessoas esqueceram rapidamente aquele beijo, mas por quê?

Uma emissora como a Rede Globo ainda mantém uma influência muito grande nos lares brasileiros. Uma emissora pioneira em novelas, de personagens inesquecíveis, como Viúva Porcina (Regina Duarte) e Perpétua (Joana Fomm). Querendo ou não, ela dita padrões. Junto a isso, temos Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg, as pratas da casa. Não é qualquer autor que consegue ter as duas na mesma novela; Gilberto Braga é um homem de sorte, porque conseguiu esse feito duas vezes, a primeira em O Dono do Mundo, em 1991. E o que ele faz? Quebra a prata da casa em frente aos olhos do brasileiro, esse homem de bem que adora uma piada racista e machista.

A prata da casa é o que um lugar tem de melhor a oferecer. Ela fica exposta para os convidados verem, para que você a use em ocasiões especiais, pois ela é preciosa. Contudo, em outros momentos, essa prata é deixada de lado, esquecida. Quando Gilberto Braga nos serviu o amor que não ousa dizer seu nome com o que a casa tinha de melhor a oferecer, o brasileiro “de bem” rejeitou. A prata da casa deve ficar de lado, não deve sentir ou ter desejos sexuais. A prata não tem o rosto de duas jovens mulheres, por isso não é tolerável. Foi isso que aconteceu a Teresa e Estela. O brasileiro “de bem” vomitou na prata da casa. O público já estava predisposto a odiar Babilônia antes mesmo de ela estrear. O título da novela já causava arrepios nos conservadores, pois fazia alusão à história de Babilônia na Bíblia:

“Deus usou o império babilônico para castigar seu povo por sua desobediência e idolatria. Na Babilônia eles se voltaram novamente para Deus, de coração sincero. Mas, por causa da crueldade dos babilônios, Deus prometeu castigar a Babilônia.”

Com a sua Babilônia, Gilberto Braga pretendia mostrar, mais uma vez, a corrupção e a imoralidade. Ele já fizera isso em 1989 com Vale Tudo, trama em que todas as personagens em uma ocasião ou outra tinham de se submeter ao sistema para poder subir na vida. Braga é um especialista em criar tramas que simbolizam a babilônia de todos os dias. Em O Dono do Mundo, por exemplo, temos a mesma ideia: Felipe Barreto (Antônio Fagundes) e sua família decadente caem em desgraça ao longo da novela por conta de um modo bastante peculiar de enxergar a vida.

De fato, quando Babilônia estreou, a analogia com a história da Bíblia estava bastante clara. Tínhamos Inês (Adriana Esteves), personagem que estava disposta a se vingar de Beatriz a todo custo. Sua obsessão era tamanha que ela colecionava recortes de jornal da inimiga. Contudo, o caráter de Inês era fichinha perto de Beatriz, que começou a manter um caso com um homem mais jovem. A tão respeitada Glória Pires aparecia em cenas tórridas, elevando ao máximo a sexualidade da mulher mais velha, ao lado de Diogo (Thiago Martins). Dito isso, o beijo entre Teresa e Estela foi a cereja no bolo do brasileiro de bem. Intolerável.

Babilônia

A reação conservadora à Babilônia foi tão grande ao ponto de a audiência sofrer uma queda vertiginosa. Alguns diziam que aquela era a pior novela das nove da história. Dessa forma, para se recuperar desse tombo, Gilberto Braga teve que consertar alguns pontos e suavizar outros. Teresa e Estela foram as que mais sofreram com isso. Para começar, o casal nunca mais apareceu no quarto. De roupão? Nunca mais! Porque qualquer uma dessas duas coisas era a insinuação de que elas tinham intimidade, de que faziam sexo e outras coisas com as quais o brasileiro de bem tem dificuldade em lidar.

Outro ponto massacrado foi a trama envolvendo o filho de Teresa, Lauro (Denis Carvalho). Ele e a mãe tinham problemas, pois Lauro não aceitava o relacionamento dela com Estela. Era uma ótima oportunidade para discutir a homofobia dentro do próprio círculo familiar, que vinha sendo mostrada de uma maneira sensível, mostrando o dilema de Teresa em convidar ou não o filho para seu casamento com Estela. Mas acabou que essa história paralela foi tratada de forma superficial, pois, após chegar para o casamento da mãe, Lauro sofre um ataque cardíaco, perdoa a mãe e morre. E só. O que poderia ser discutido ao longo da novela virou coisa de uma semana. O que não se faz para agradar o brasileiro de bem.

O contra-ataque de Gilberto Braga frente a todo o picoteamento de Estela e Teresa foi enfiar com muito gosto o dedo na ferida do brasileiro de bem. Para isso, ele tinha nas mãos a personagem de Aderbal Pimenta (Marcus Palmeira), um político pra lá de corrupto, mas que posa de homem temente a Deus para a sociedade. Sua mãe, Consuelo (Arlette Salles), também faz parte desse seleto grupo de cidadãos de bem, mas que larga aquela piada racista no almoço de família sem vergonha alguma. Aderbal e Consuelo são a Babilônia da Bíblia em pessoa.

A família imaculada de Consuelo começa a viver um inferno ao descobrir que Laís (Luísa Arraes) está namorando Rafael (Chay Suede), filho de Teresa e Estela. Em um primeiro momento, Laís não aceita a família do namorado, mas ao longo da novela ela começa questionar os pensamentos conservadores e homofóbicos de sua família. Por fim, ela percebe que os problemas de sua família tradicional e decide lutar contra eles. Aderbal e Consuelo querem trazer Laís para o lado bom da força, e é com muito humor que Gilberto Braga aborda a homofobia e o conservadorismo dessas duas personagens.

A primeira discussão épica entre Consuelo e Teresa traz à tona uma questão bastante pertinente: a de que o brasileiro de bem acredita que a orientação sexual não heterossexual deva ser mantida entre quatro paredes. As duas batem boca porque Consuelo não aprovara a participação de Teresa em um programa de televisão, no qual ela expõe seu relacionamento com Estela. Os xingamentos de Consuelo são tão absurdos que valem a reprodução neste texto:

“Eu conheço você. A mestre das lésbicas, a bruxa da inversão! A maior pederasta do Brasil!”

Em outra cena, Consuelo invade o antiquário de Estela e quebra tudo o que vê, na tentativa de encontrar a neta. Gilberto Braga a retrata como uma mulher maluca, histérica, e não sabemos até que ponto isso é realmente bom. Será que não reforça estereótipos? É de ficar pensando. Ainda assim, é interessante notar que o conservadorismo chega com essa veia pra lá de escrachada, contrastando completamente com a postura segura e calma de Teresa e Estela.

Babilônia

Aderbal também seus momentos engraçados, porém, Gilberto Braga está mais interessado em mostrá-lo como um homem que poderia ser muito bem o tiozão do almoço de família. Ele rouba dos cidadãos de Jatobá, cidade da qual é prefeito, mantém um caso mesmo sendo casado e é machista. Essa é a face do brasileiro conservador para o autor.

O momento de ouro envolvendo Aderbal acontece quando sua família e a de Rafael se reúne para jantar em um restaurante. Ele fica furioso com a presença de Estela e Teresa e comenta sobre essa tal de heterofobia, que fazia com que ele tivesse de tolerar aquelas duas mulheres. Teresa não deixa barato e responde:

“A sua heterossexualidade é difícil pro senhor?”

Gilberto Braga, eu te amo! Porque é isso, o homem de bem acredita na heterofobia, que heterossexuais podem sofrer algum tipo de discriminação. O mais legal disso tudo são as respostas de Teresa e Estela, que não deixam barato aquele tipo de humilhação. Não temos personagens submissas, muito pelo contrário, elas se colocam a todo momento. Foi importante que Teresa respondesse à altura, com a ironia fina que só Fernanda Montenegro sabe verbalizar, até porque vivíamos a época em que a heterofobia corria o risco de ser criminalizada.

Apesar de terem sofrido cortes violentos, Teresa e Estela também tiveram tempo para sofrer os mesmos abalos que qualquer casal, como brigas e até a possibilidade de separação. Elas viviam em uma eterna tensão por causa de Beatriz, pois Estela não acreditava que a filha pudesse ser uma má pessoa. Isso gerou o maior dos conflitos entre elas, fazendo com que as personagens ficassem separadas por alguns capítulos. Elas viviam as mesmas coisas que outros casais de Babilônia, com a diferença de lhes ter sido negado o direito de aparecer no quarto ou de roupão.

No final da novela, elas deram um último beijo; uma cena muito bonita, pois o outro casal da novela, formado por dois homens, também se beijara minutos antes. Acho que ali Gilberto Braga mandou o último recado aos conservadores: uma batalha foi perdida, mas não a guerra. Teresa e Estela incomodaram, responderam à lesbofobia com humor e seguiram firmes e fortes até o final da novela. Babilônia mostrou que ainda há muito caminho pela frente, principalmente no que diz respeito à sexualidade da mulher mais velha.

Quem dera que a Babilônia fosse só aquela da novela. Mas não é.

O dia 28 de junho é o Dia Internacional do Orgulho LGBT. Nessa mesma data, em 1969, lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e drag queens se uniram contra as batidas policiais que ocorriam com frequência no bar Stonewall-Inn, em Nova York. O episódio marcou a história do movimento LGBT, que continua lutando por direitos e visibilidade. Em homenagem à data, durante o mês de junho, portais nerds feministas se juntaram em uma ação coletiva para discutir de temas pertinentes à data e à cultura pop, trazendo análises, resenhas, entrevistas e críticas que tragam novas e instigantes reflexões e visões. São eles: Collant Sem Decote, Delirium Nerd, Valkirias, Momentum Saga, Nó de Oito, Ideias em Roxo, Preta, Nerd & Burning Hell, Séries por Elas, e o Prosa Livre.

1 comentário

  1. Simplesmente demais este texto, com um olhar franco e devastador sobre esse câncer chamado preconceito!

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