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Sylvia Plath: se essa redoma fosse minha

Antes de ler A Redoma de Vidro, da Sylvia Plath, um número considerável de pessoas já havia me dito que ele era pesado e que haviam ficado mal com a obra. Quando finalmente comecei o livro, eu não esperava menos dele do que ele realmente foi: a leitura densa da qual eu estava precisando. 

E eu precisava mesmo dele na minha vida, de uma maneira que nem eu sabia, mas que fez com que, ao finalizá-lo, eu me sentisse um pouco melhor. Não aliviada — muito pelo contrário —, mas compreendida. Por esse motivo não consigo falar sobre o livro sem uma conotação bem particular, então fica aqui um aviso que esse texto é mais pessoal do que uma resenha comum.

A Redoma de Vidro (The Bell Jar, no original) foi o único romance publicado de Sylvia Plath — uma escritora, poeta e contista estadunidense que, aos trinta anos, suicidou-se de maneira não convencional, enfiando, literalmente, a cabeça no forno. Começo logo falando de seu suicídio, pois, ainda mais com ele, Sylvia caiu na boca do povo.

Durante o processo de escrita desse texto, fiz algumas pesquisas sobre a escritora e surpreendentemente descobri que sua morte foi e é alvo de piadas, ganhando referências em filmes famosos e até mesmo virando fantasias de festa. O mundo não tem muito jeito mesmo; e é nesse mundo sem jeito que somos apresentados a Esther, a personagem principal de seu livro autobiográfico.

Esther é socialmente bonita, tem um emprego, é estudiosa, tira boas notas e vive na cidade que nunca dorme, Nova York. É também convidada para várias festas e jantares, e os caras a desejam. O produto da mistura demonstra que, em tese, Esther tem de tudo para ser feliz. Sua antítese corrobora que nem beleza, emprego, diploma ou relacionamento são validadores de felicidade, não são caminhos para felicidade. Ao menos, não deveriam ser.

Esse dilema, no entanto, contém nuances. A cartilha da vida manda que Esther — ou cada um de nós — tenha beleza, emprego, diploma, relacionamento, filhos, festas, viagens, uma casa e dinheiro. Se você tem isso ou parte disso, você tem que agradecer, ser feliz e correr atrás do que ainda falta. Se você não tem isso, corra atrás do que ainda falta, pois a felicidade estará lá esperando como um pote de ouro no final do arco-íris. Se você fez tudo isso, ou tem tudo isso, e não é feliz, você só pode estar fingindo ou querendo atenção. Se você é mulher, então, piorou. E Sylvia sabia disso. Ela sabia de tudo isso.

“Acontece que eu não estava conduzindo nada, nem a mim mesma. Eu só pulava do meu hotel para o trabalho e para as festas, e das festas para o hotel e então de volta ao trabalho, como um bonde entorpecido. Imagino que eu deveria estar entusiasmada como a maioria das outras garotas, mas eu não conseguia me comover com nada. (Me sentia muito calma e muito vazia, do jeito que o olho de um tornado deve se sentir, movendo-se pacatamente em meio ao turbilhão que o rodeia.)”

Esther era uma garota normal, tão normal quanto eu e minhas amigas que lemos o livro e ficamos catárticas com tamanha identificação. Esther era uma garota normal porque, para onde olho, eu enxergo gente mal. Em uma sociedade em que o amor é condicional à ideia de felicidade — a tia não gosta de criança que chora —, e essa ideia de felicidade é costurada com o ter e o parecer, é difícil e dói demais admitir que sim, eu estou mal. Estamos muito mal. Mesmo que na cartilha da vida eu — Esther, e você — esteja em dia com quase tudo.

É inegável que o meio em que estamos inseridos não aceita bem que a tristeza é uma emoção a ser validada. Nossa geração é taxada de fraca. O fato de a depressão ser uma das doenças mais incapacitantes do mundo é comumente ignorado. Ao nosso redor cultivamos, querendo ou não, pessoas que diminuem a nossa dor e a dor do colega e parte disso é resultado de uma sociedade que não engole doenças mentais, e que quer, a todo custo, que você seja feliz. E aqui faço um adendo: eu não sou diagnosticada por um psiquiatra, eu só… sinto. Isso é menos? Não é válido sem um atestado? São questões que eu debato comigo mesma, principalmente nos momentos em que, a todo custo, invalido o que sinto. Esther tinha tudo para ser feliz e, ainda assim, não era. Por quê?

A felicidade é um conceito muito bonito. Seu caminho, no entanto, nada tem a ver com o ter e o parecer. Parece óbvio, mas nem sempre é. Felicidade é um estado da mente. No canto da página da minha cartilha comecei a anotar o que, para mim, realmente significa estar feliz. Plenitude. Leveza. Amar. Estar presente. Felicidade é um estado da mente, e se nossa companheira não está bem, não há nada do mundo exterior que a colocará no lugar. E existe algo de extremamente frustrante em ter tudo para ser feliz e o botão emperrar: você chora e diante de si tudo é apático. A mente gira, gira mais um pouco, e, no momento seguinte, nada.

Aprendi que a apatia e o entorpecimento pelo nada é uma maneira de reiniciar o sistema — a máquina perfeita que é o nosso corpo faz isso por nós. Mesmo assim, poucas coisas são mais desesperadoras do que sentir um punhado de nada.

Para Esther, no entanto, reiniciar o sistema não foi o suficiente, e a forma que encontrou de tentar combater tudo aquilo (ou a falta de tudo) — enfrentar algo muito mais profundo do que a veia que corria no seu punho, conforme ela mesma afirma — foi com uma tentativa de suicídio que deu errado. Os capítulos que sucedem o acontecido acompanham as experiências cruamente relatadas da personagem em uma clínica psiquiátrica: seus altos, seus baixos, sua visão de mundo antes e depois. Esther melhora, com a plena consciência de que a redoma ainda paira sob a sua cabeça.

Para mim, o que Esther — ou Sylvia — chama de redoma, eu chamo de ondas — algo que, na minha vida, continuamente vem e vai. Quando olho para trás, percebo que essas ondas sempre estiveram presentes. Em algumas fases elas ficam mais suaves e mais perdidas no mar. Nessas épocas tudo é mais fácil: é mais fácil ser feliz quando você sente facilidade em viver. Em outras, no entanto, elas vêm de forma moderada ou com uma força descomunal, então você paralisa, leva o baque, e fica muito difícil “ser feliz” quando viver se torna uma batalha. Soa pedante, às vezes até dramático, mas não deixa de ser muito, muito real.

No começo deste ano, sem motivo algum, uma dessas ondas bateu em mim. Como algo que sempre tive e associei à minha personalidade, e algo que sempre veio e foi, eu esperei que eventualmente ela fosse embora e me deixasse respirar. A onda não foi. Senti-me Esther enquanto espera a redoma levantar.

Aos poucos, perdi o interesse em coisas que sempre gostei de fazer. Ler, assistir série, escrever. Se antes tudo fluía, hoje em dia muito é por obrigação e um dever de mim para comigo mesma, um dever de tentar não deixar a peteca cair. Sei que sou amada, mas, em tempos difíceis, aceito com dificuldade a ideia. Encontros, saídas, festas e socialização não só deixaram de fazer parte da rotina como também tomam um esforço muito grande — para além das características introvertidas, não só sinto minhas energias se esvaindo, como sinto pouca vontade de interagir. Ao lado disso, há aquela sensação inquietante de simplesmente não estar presente. Ver tudo de longe, não fazer parte daquela realidade ou daquele grupo, e uma inabilidade tremenda em sentir qualquer outra coisa além de frustração. No fim do dia, mesmo com tudo e mesmo com todos, só resta o nada, com doses de uma solidão que só quem se prende dentro de si (ou da redoma) sabe o que é sentir.

“Eu não queria tirar a foto porque sabia que ia chorar. Eu não sabia o motivo, mas sabia que se qualquer pessoa falasse comigo ou me olhasse de perto as lágrimas pulariam dos meus olhos e os soluços pulariam da minha garganta e eu choraria por uma semana. Podia sentir as lágrimas se acumulando e se agitando, como água na borda de um copo cheio e instável.”

Diferente de uma fratura, o tratamento da mente leva mais tempo, demanda mais esforço e é estupidamente doloroso. Ninguém que sofre com sintomas e distúrbios da mente está quebrado para ser consertado com uma tala ou um gesso. É um trabalho constante. Nesse caminho da aceitação — de aceitar que não existe problema em não estar bem — e não a falácia do caminho da felicidade, algumas pessoas estarão mais aptas a nos guiar do que outras. Nossos pais, nossos amigos, às vezes cheios das boas intenções (e outras nem tanto), podem fazer mais mal do que bem. Ainda que amemos essas pessoas e que elas nos amem de volta, nem todo mundo é capaz de compreender a real extensão dos problemas da mente humana ou daquilo que sentimos, e apontar o dedo na cara do outro e ditar o que é melhor naquela situação pode não ajudar em absolutamente nada — talvez, até atrapalhe. Somos pessoas diferentes, com lutas diferentes e dores diferentes.

Caminhar, pegar sol, desconectar. Desacelerar. Mudar os ares. Isso auxilia nessas horas. Falar é bom, contudo não são com todas as pessoas que queremos conversar sobre o assunto, da mesma forma que não é todo mundo que está disposto a ouvir o que temos a falar. Mandar sorrir “que passa”, sair de casa para ver gente “que passa”, não ficar pensando “que passa”, são mais desserviço do que qualquer outra coisa. Compreender, validar, compartilhar experiências e não eclipsar pode ser mais interessante nesse momento. Em uma sociedade onde bancar um profissional experiente não é algo acessível para todo mundo, fica difícil mandatoriamente dizer que essa é a única forma possível de ajuda, apesar de ser importante e, na maior parte dos casos, a ideal. Agradeço ter um pingo de privilégio e poder optar, hoje, em cortar gastos para investir na minha saúde mental.

Se eu pudesse tirar qualquer coisa do livro e de toda a identificação que eu senti com ele é que está permitido validar o que a gente sente. Cuidar da nossa saúde mental é tão importante quanto cuidar da nossa saúde física. Muito dos nossos problemas físicos têm origem naquilo que sentimos. Não é fraqueza, não é vergonha, nós não somos de mentira.

Diferente de Esther, até o dia que escrevo esse texto, nunca tive ideações suicidas, não passei por clínica alguma e não faço uso de medicamentos. Como Esther, tenho todo o resto, sinto todo o resto. Se há muito eu precisava de ajuda, foi com a leitura que eu aceitei que realmente precisava de ajuda. Quero ficar bem o suficiente para viver a minha vida e não apenas ser telespectadora dela.


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12 comentários

    1. Grazi, sinto muito que você se sinta assim. Só tenho a desejar que as coisas melhorem pra todas nós.
      Obrigada pelo comentário, significa muito.
      Beijo!

  1. “E existe algo de extremamente frustrante em ter tudo para ser feliz e o botão emperrar”. Sim, com certeza sim.

    Me identifiquei muito com o teu texto, Ana. Sempre defini o que eu sinto como ondas. É algo que vai e vem. Às vezes suave, às vezes mais forte. Já fiz terapia e uso de medicamentos, fui “liberada” e me sentia “curada”, mas hoje acredito que isso não existe. Vez ou outra, o sentimento (ou ausência deles) retorna. A diferença é que aprendi a conviver com isso (e a querer viver, apesar de), vou seguindo com a vida, esperando os momentos em que a vida parece boa e o que tenho é suficiente (às vezes acontece é é maravilhoso) . Desapegar da ideia de felicidade é difícil (pra mim, é impossível) e nem sei se é certo desistir da ideia, mas esquecer um pouco (com livros, filmes – são as minhas muletas), pelo menos, torna tudo um pouco mais leve.

    1. Oi, Jana! Acho que não é certo abdicar da ideia de felicidade, o que me deixa meio assim é essa imposição doida que todo mundo tem que estar feliz o tempo inteiro. Eu mesma me culpo por não estar, e no fim do dia isso faz mais mal do que bem. Ainda bem que aos poucos a gente aprende que não tem problema algum não estar bem o tempo inteiro.
      Espero que você esteja em seus momentos leves e que as coisas estejam fluindo. Tô muito feliz pelo retorno que tive com o texto, então obrigada pelo comentário.
      Abraços, e fica bem!

  2. Quando eu tinha 15 anos tentei suicídio, e a coisa que mais ouvi dos meus amigos é que tinha feito aquilo para chamar a atenção, na época, eu tinha um ex super babaca, que fez questão de contar para escola inteira o que tinha acontecido e vinha gente do nada falar comigo sobre o assunto, eu não sei nem dizer o quão horrível foi a proporção que tudo tomou, porque minha tia queria me internar num manicômio, minha mãe por ter convivido com uma mãe depressiva, não aceitava que eu tinha depressão (?) a maioria dos meus amigos se afastou, eu deixei o colégio porque não aguentava mais. Foi aquela bola de neve. Tentei psicólogos diferentes, tratamentos diferentes e etc, e foi só com terapia alternativa através de fitoenergética e meditação que consegui seguir em frente. Não é fácil, se sentir saudável numa sociedade doente já é um grande ponto para entender que ninguém tá bem. Todo mundo enfrenta uma batalha interna. É preciso ser gentil. Eu ainda não li Redoma pois, acho que é um gatilho muito pesado para mim, ainda mais final de ano, quando despendo muita energia, mas quero ler um dia. Obrigada pelo texto, Ana. ❤️

    1. Oi, Carol! Desculpa a demora em responder o comentário, mas estava absorvendo tudo o que foi compartilhado, todo o retorno maravilhoso e inesperado que eu tive com o texto.
      Tua história me impressionou e eu sinto muito que você tenha passado por tudo isso. Só tenho a te desejar tudo de melhor no mundo. Fico feliz em saber que você encontrou algo que funciona pra você, é bom (e importante!) ter todo o auxílio nessas horas. Realmente, todos enfrentamos uma batalha, mas espero que você não tenha mais tantas pessoas tóxicas por perto – algumas batalhas são dignas de luta, outras não, pessoas também. Nunca vai ser egoísmo.
      O livro realmente é pesado e compreendo teus receios. Na hora que você se sentir preparada, dê uma chance. É um livro importante e que marca muito.
      Obrigada pelo comentário, por compartilhar tudo isso. Fica bem. ♥

  3. Obrigada por esse texto! Esse é um dos meus livros favoritos. Li a primeira vez quando tinha 16 anos e me marcou muito, além de me ajudar a compreender uma fase difícil que enfrentava.
    Assim como você menciona, sempre vem essas ondas na minha vida, as vezes chegam mais brandas, as vezes mais intensas.
    Espero que as coisas melhorem para todas nós! <3

    1. Espero também, Isabelle. É um trabalho longo e nem sempre fácil, mas ficar bem é o objetivo. Não feliz nem saltitante, só bem. Bem é o suficiente. Beijo. ♥

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