Categorias: HISTÓRIA, LITERATURA

Svetlana Aleksiévitch e a face feminina da guerra

Se abrirmos um livro de história, inevitavelmente nos depararemos com uma série de guerras — algumas maiores e outras menores — que permeiam nosso passado. As guerras, ao que parece, são tão antigas quanto o nosso mundo, dito civilizado, e, para o bem ou para o mal, fazem parte das nossas identidades nacionais. Assistimos às guerras diariamente e naturalizamos tanta barbárie e horror em nome de um monte de coisas: ideais, a paz mundial (atingida por meio da violência), crenças… (dos interesses econômicos é melhor não falar tanto assim). Aceitamos as guerras como parte de nossa história, e falamos muito sobre elas, especialmente sobre as duas grandes guerras da história do mundo. O livro-reportagem A Guerra Não Tem Rosto de Mulher (Companhia das Letras, 2016), da bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, poderia ser só mais um dos numerosos trabalhos que discutem a Segunda Guerra. Mas não é. Originalmente publicado em 1985, o livro busca contar as histórias (em grande parte esquecidas) das mulheres soviéticas que estiveram na linha de frente. Porque, sim, elas estiveram lá. E foram muitas.

No capítulo que abre o livro, Svetlana Aleksiévitch discute o propósito dele, lembrando que, ao mesmo tempo em que “já aconteceram milhares de guerras — pequenas e grandes, famosas e desconhecidas. E o que se escreveu sobre elas é ainda mais numeroso”, “tudo que sabemos da guerra conhecemos por uma ‘voz masculina’”. Das mulheres que estiveram na guerra, havia o silêncio. Estudos apontam que cerca de 1 milhão de mulheres estiveram envolvidos nas forças armadas durante a Segunda Guerra na União Soviética, 470 mil na Grã-Bretanha, 350 mil nos Estados Unidos. Os números podem variar de um levantamento para o outro, mas estão sempre na casa dos (muitos) milhares. Com que frequência pensamos sobre essas mulheres?

Foi apenas quando tive a oportunidade de estudar — academicamente mesmo — a segunda temporada de Downton Abbey, que se passa durante a Primeira Guerra Mundial, que realmente comecei a pensar na existência da participação feminina da guerra. A Primeira Guerra usou a força de centenas de milhares de homens — que estiveram no front e perderem a vida ou voltaram física ou mentalmente debilitados —, de modo que o mercado de trabalho foi obrigado a abrir espaço para as mulheres, que ficavam. Chamava-se home front, os esforços para a vitória dentro de casa. As mudanças no mercado de trabalho, que criaram mais oportunidades para as mulheres, foram muito importantes e representaram uma guinada para torná-las mais independentes e dar a elas mais possibilidades.

Mas e quanto às mulheres que não ficaram no home front? Na Segunda Guerra, foram milhares delas. Em 2013, li um livro que mudaria o jeito como enxergava as guerras. Era Codinome Verity (iD, 2013), da americana Elizabeth Wein, centrado em uma piloto de avião e uma agente de espionagem britânicas atuando durante a Segunda Guerra. Antes disso, jamais havia me ocorrido que mulheres teriam participado ativamente dos esforços de guerra em diferentes países, mas elas sempre estiveram ocupando diversos espaços. Wein explica que as histórias de suas personagens são completamente fictícias, mas inspiradas na História de fato.

Durante a Segunda Guerra, em países como o Reino Unido e os Estados Unidos, houve muita propaganda para recrutar mulheres para as forças armadas, especialmente para liberar os homens que estavam “presos” em posições administrativas para o combate. Mas, na Grã-Bretanha, muitas mulheres passaram a trabalhar em conjunto com os homens na defesa antiaérea, por exemplo, num programa do qual o próprio primeiro-ministro à época, Winston Churchill, era um entusiasta. Essas mulheres, que em muitos casos viviam em acampamentos militares mistos e recebiam o mesmo treinamento que os recrutas homens, eram treinadas e aptas a manipular armamento. No entanto, em plena década de 1940, um ataque desses às noções convencionais de feminilidade não era bem visto pela nação. Numa tentativa de aplacar os ânimos, foi determinado que essas mulheres não poderiam ser responsáveis por atirar, embora pudessem fazer todo o resto.

À esquerda, um pôster que convidava as mulheres americanas a se unirem à Marinha e liberar os homens para lutar; no meio, o famoso “We Can Do It!”, que buscava exaltar as mulheres trabalhadoras; à direita, pôster da Auxiliary Territorial Service que dizia: “eles não podem progredir sem nós”.

No entanto, nada do que foi visto na Grã-Bretanha — o que já era bastante extraordinário e novo, levantando rejeição significativa — se comparava ao que aconteceu na União Soviética e que Svetlana Aleksiévitch tenta recuperar em alguma medida em A Guerra Não Tem Rosto de Mulher. Lá, não só um número muito maior de mulheres foi mobilizado como a integração no serviço militar foi a mais expressiva, sendo que era permitido às mulheres ocuparem posições de combate abertamente, podendo, inclusive, disparar as armas que operavam. Talvez tenha feito toda a diferença o fato de Hitler ter tentado invadir a União Soviética — tempos de desespero pedem medidas desesperadas e, dentre os relatos coletados por Svetlana em seu livro, é perceptível que muitas das mulheres que queriam servir (mesmo quando isso ainda não era permitido) sentiam que era sua obrigação proteger fosse a pátria ou o ideal comunista.

“Logo veio o recrutamento do Comitê Central do Komsomol da Juventude, pois os alemães já estavam nos arredores de Moscou, e todos tinham que sair em defesa da pátria. Como é que Hitler ia tomar Moscou? Não vamos deixar! Não era só eu… Todas as meninas manifestaram o desejo de ir para o front. Meu pai já estava combatendo. Pensávamos que seríamos as únicas… Que éramos especais. Mas, quando chegamos ao centro de alistamento, havia um monte de garotas. Levei um susto!”

Mas eram medidas desesperadas de fato, e o que estudos como o citado anteriormente demonstram é que, embora ter mulheres na linha de frente fosse um grande desafio aos papéis de gênero tradicionais, essa mudança temporária na ordem convencional das coisas não teve um efeito duradouro, e sim restrito à duração da guerra na maior parte dos casos. Nem sempre — porque as experiências foram, afinal, plurais e não uma coisa única. Mas em geral.

Svetlana Aleksiévitch conduz um grande trabalho de reportagem, indo conversar com dezenas de mulheres que participaram ativamente da guerra de alguma maneira: como soldados ou enfermeiras, pilotos ou partisans, esposas ou amantes, comandantes ou subordinadas, ou ainda nenhuma dessas coisas. Svetlana reúne esses relatos por proximidade do principal fio condutor de cada um deles. Alguns tomam dezenas de páginas, outros são uma única frase. Ela explica que, em seu livro, não queria falar de alguém grande, e sim de muitos “pequenos grandes seres humanos” porque sem eles não existe avanço de ideia nenhuma. A Guerra Não Tem Rosto de Mulher é um retrato disso. O que Svetlana Aleksiévitch faz, acima de tudo, é dar voz a dezenas de mulheres que estavam caladas: fosse as que tinham muito a dizer, fosse as que não conseguiam falar tanto assim.

“Tudo pela vitória!” dizia o pôster, cuja mensagem era complementada mais abaixo: “Front de mulheres da URSS”.

Uma constante nos muitos relatos coletados por Svetlana é a sensação de não se sentir exatamente mulher ao ter os cabelos cortados, ao vestir uniformes e calçados masculinos, ao, muitas vezes, não menstruar durante meses ou anos. Uma das mulheres relata ter chegado a chorar ao vestir um vestido novamente, outra conta sobre o vestido de noiva que fez usando pequenos pedaços de gaze, e outra, ainda, relata a alegria do dia em que as mulheres de sua unidade foram tingir as sobrancelhas. Embora não exista nada que seja de fato intrinsecamente feminino em vestidos e salões de beleza, essas são coisas que depreendemos socialmente como parte de nossa identidade, e não é de se estranhar que, ao serem privadas delas, tantas mulheres se sentissem tão sem chão.

Outra temática recorrente nos relatos é que a guerra não era coisa de mulher. Vinha dos homens, mas vinha também das próprias mulheres. Uma das entrevistadas diz: “Isso não era coisa de mulher: odiar e matar”. Será que odiar e matar é mesmo coisa de alguém? A diferença é que temos séculos de naturalização da participação masculina na guerra: tornamos grandes atiradores de elite heróis, veteranos de guerra são extremamente condecorados. Odiar e matar não era realmente o problema nesse caso; o problema era que uma mulher o estivesse fazendo, e uma mulher deveria estar em casa cozinhando o jantar. Só que, naquele momento, elas eram simplesmente necessárias. Só naquele momento. Um assunto relembrando constantemente nos relatos é o esquecimento dessas mulheres: muitas foram consideradas indignas de um casamento; muitas voltaram para casa depois de terem abandonado os estudos para se juntar aos esforços bélicos, não tendo formação alguma para exercer outra atividade. Muitas ouviram que não deveriam expor suas condecorações de guerra porque aquilo, de novo, não era coisa de mulher.

“Eu não usava nem as condecorações. Em uma ocasião as tirei e não pus mais. Depois da guerra eu trabalhava numa fábrica de pão. Fui a uma reunião, e uma diretora do conglomerado, também mulher, viu minhas medalhas e falou na frente de todos: ‘Por que está usando isso, como se fosse um homem?'”

Aos homens, a admiração. Às mulheres…

“No começo nos escondíamos, não usávamos nem as medalhas. Os homens usavam, as mulheres não. Os homens eram vencedores, heróis, noivos, a guerra era deles; já para nós, olhavam com outros olhos.”

Diversas mulheres entrevistadas por Svetlana relatam as emoções contraditórias que sentiam. Ao mesmo tempo em que queriam defender sua pátria, era difícil atirar, era difícil ferir, era difícil matar — especialmente quando o inimigo abstrato chamado Alemanha nazista ganhava um rosto que, às vezes, era o de um garoto. Se pararmos para pensar, é complicado reclamar o título de heroína por acabar com vidas alheias. Guerras são problemáticas por natureza. Só que o motivo para que tantas dessas mulheres caíssem no esquecimento não era esse.

Não foi o caso de todas, claro. Há relatos de mulheres participando de eventos comemorativos da vitória e sendo muito exaltadas. Há relatos de mulheres que conheceram seus companheiros durante a guerra e viveram longos casamentos. Há uma infinidade de relatos e Svetlana explica que era exatamente isso que ela queria: não um livro sobre a guerra, mas sobre o ser humano na guerra. A guerra que, ela viria a descobrir, é vida também. Porque apesar de toda a morte e a destruição, o ser humano continua vivendo e continua buscando aquilo que faz com que nos sintamos humanos, seja lá o que for. Seu livro também é sobre como essas buscas se dão para diferentes pessoas.

Em A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, Svetlana Aleksiévitch contesta a versão que conhecemos da guerra como um território exclusivamente masculino no qual homens trabalharam por um objetivo comum. A participação de mulheres na guerra ainda não é uma imagem natural para nós. Naturalizamos o horror da guerra, e ela se apresenta como parte essencial da história — e, infelizmente, da realidade — do mundo em que vivemos. Mas sua face feminina ainda nos é estranha. O que Svetlana faz, acima de tudo, é ajudar a demonstrar o quanto, mesmo majoritariamente esquecida pela história, a participação feminina foi essencial.

Para conhecer mais sobre os pôsteres que ilustram esse texto:


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1 comentário

  1. Miga, primeiramente parabéns pelo texto. Ao longo da leitura, fui lembrando de algumas coisas, como as “Bruxas da Noite” (acho que era esse o nome), um grupo de mulheres soviéticas que voavam durante a 2ª GM e atacavam os alemães de um jeito muito ousado e diferente. Elas desligavam as luzes antes de atacá-los, de forma que eles não vinham de onde estavam vindo os tiros. É engraçado, eu também não tinha pensado sobre a participação das mulheres na guerra até cursar uma disciplina na nossa valorosa UFRGS sobre História das Mulheres. Foi ali que, pela primeira vez, eu pensei: puxa, mulheres foram pra Guerra, WOW! Acho que isso vem do fato, como tu mesma colocou no texto, de que a gente não associa morte e ódio às mulheres, quando na verdade isso não deveria ser associado a ninguém. Estou com um livro aqui em casa chamado “Mulheres do Nazismo”, que dá voz a mulheres que participaram ativamente do regime nazista. Lembro de ter ficado bem chocada com a sinopse, para mim nazismo + mulheres = inconcebível. É difícil pensar que qualquer coisa, até mesmo a maldade, tenha rosto de mulher.

    Tu falou brevemente sobre a volta das mulheres da guerra e de como isso foi doloroso pra elas, e eu lembrei de um livro chamado “A mística feminina”, de uma autora chamada Betty Friedan. Ela discute porque, depois desse período de abertura pras mulheres, os EUA mergulharam em uma realidade totalmente oposta nos anos 50, com o aumento das taxas de natalidade, mulheres abandonando universidades ou se valendo delas para arranjar um marido. É um tiro a cada página e me faz pensar como, infelizmente, as mulheres só tiveram valor enquanto “taparam buracos”, depois disso, elas podiam voltar bem felizes pra casa, pois não se precisava mais delas. A Betty também fala de toda a campanha midiática pra fazer com que a mulher pensasse que seu lugar era como esposa e mãe. Nossa, enfim, coisas que teu texto levantou aqui na minha cabeça, haha!

    Enfim, assim que puder vou ir correndo ler a Svetlana! Recentemente estava lendo a literatura russa escrita sobre os gulags, não encontrei nenhuma escritora que falasse sobre o assunto até o momento, ainda que as mulheres também fossem mandadas pra Sibéria, com penas tão duras quanto a dos homens.

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