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Stranger Things: o lugar errado na hora errada de Barb

Não é difícil entender os motivos que levaram Stranger Things a conquistar tanta gente mundo afora. Seja pela sua inegável qualidade técnica, seja pela sua história maravilhosa ou pelos personagens absolutamente adoráveis, Stranger Things é a prova de que é bem possível construir narrativas verdadeiramente incríveis sem apelar para os clichês tão comuns nesse tipo de produção – em especial se tratando de representação feminina.

Atenção: o texto contém spoilers da primeira temporada de Stranger Things.

Embora tenha seus problemas (e nós já falamos sobre muitos deles aqui), a série consegue subverter muitos elementos comuns em produções da década de 80, à qual faz referência, e constrói personagens que, mesmo bastante estereotipados, conseguem encontrar espaço para crescer à altura do próprio potencial, transformando-se nas pessoas complexas pelas quais nos apaixonamos. Ao longo dos oito episódios que compõem a primeira temporada, conhecemos meninos encantadores, meninas chutadoras de bundas e, principalmente, mulheres fortes que não precisam usar capas ou dar porrada para mostrar que são capazes de defender aquilo que acreditam ou aqueles que amam.

No entanto, uma personagem específica tem chamado bastante minha atenção desde que assisti a série pela primeira vez – primeiro, pelo seu pequeno papel na história; depois, pelas opiniões que têm dividido pela internet: Barbara Holland, ou apenas Barb, para os íntimos (à essa altura do campeonato, aproximadamente metade da população mundial).

Interpretada pela maravilhosa Shannon Purser (quem a segue nas redes sociais sabe bem do que estou falando), Barb é a melhor amiga de Nancy Wheeler (Natalia Dyer), a irmã de um dos personagens principais que começa a sair com o garoto mais popular do colégio. Tanto Barb quanto Nancy são adolescentes certinhas, inteligentes e gente boa, que não saem por aí aprontando bobagens, não praticam bullying com os colegas e estudam um bocado. O novo relacionamento de Nancy, no entanto, acaba trazendo algumas mudanças para a vida e, principalmente, para a amizade das duas. De repente, Barb precisa lidar com pessoas que não gosta por causa da sua melhor amiga, a quem ela se dispõe a ajudar ainda que não concorde com suas escolhas. Barb se coloca em situações que a fazem se sentir claramente desconfortável – como acontece quando ela vai para a festinha na casa de Steve (Joe Keery), definitivamente um lugar onde ela não queria estar –, e continua ao lado de Nancy mesmo quando ela ameaça se tornar uma péssima amiga (coisa que ela, de fato, é em muitos momentos), dando apoio e ótimos conselhos que são constantemente ignorados – do contrário, a história não se desenvolveria da mesma forma.

Stranger Things 2

Talvez por isso seja tão fácil gostar e, quem sabe, se identificar com a personagem. Barb não é popular, não está dentro de padrões impostos socialmente, tira boas notas, é tranquila, não faz mal para ninguém, mas ao mesmo tempo não é nem um pouco bobinha – uma característica frequentemente atribuída à essas personagens. Mesmo com sua pequena participação, ela foi capaz de mostrar a pessoa maravilhosa que era e conquistar o coração de muita gente (inclusive desta que vos escreve), o que, muito provavelmente, foi fundamental para iniciar todas as discussões que surgiram internet afora desde o lançamento da série, em julho deste ano.

Entretanto, por mais que eu concorde com muitos pontos que têm sido discutidos e consiga enxergar vários dos problemas apontados em sua trajetória (por exemplo, o fato de que sua morte pode ser tida como um reforço à ideia de que mulheres que não se encaixam em certos padrões podem ser facilmente descartadas e que ninguém realmente se importa com elas), não consigo encarar Barb como a personagem mais interessante da história, uma vez que, para começo de conversa, ela sequer encontra espaço para se tornar essa pessoa. Barb não foi pensada para ser uma personagem maior do que realmente é, e a surpresa dos criadores e do elenco sobre a repercussão da personagem é uma demonstração muito clara disso (inclusive a recente declaração dos Duffer Brothers, criadores da série, de que a personagem não será esquecida na segunda temporada, é uma resposta bem óbvia, que reforça muito da ideia de que eles não estavam realmente interessados na personagem até que ela passasse a ser o centro da questão). O que assistimos, portanto, é apenas um vislumbre daquilo que ela poderia ter sido, não fosse a necessidade dos criadores da série em mover o arco de outra personagem: Nancy Wheeler.

É verdade que, ainda que seja um artifício tão velho quanto o mundo, utilizar a morte de um personagem – seja quem for –, para dar motivações para que outro se desenvolva é, por si só, uma alternativa bastante problemática. O caso de Barb se torna um pouco pior se pensarmos que, mesmo que ela e Nancy sejam retratadas como parte de um mesmo grupo e tenham perfis muito similares, as duas recebem tratamentos muito diferentes dentro da história, especialmente no ambiente escolar. Nancy é extremamente magra, não usa óculos, tem uma altura padrão e consegue se misturar bem com o grupo de Steve, muito diferente do que acontece com Barb – que se parece muito mais com as pessoas deslocados que conhecemos (ou somos) na vida real. Considerando a sociedade em que vivemos, escolher quem morre e quem sobrevive nesse caso não parece uma alternativa aleatória, algo que não implica o reforço de certos estereótipos. Além do mais, a forma como todos os personagens lidam com o desaparecimento de Barb é um reflexo doloroso de como mulheres como ela são frequentemente tratadas na ficção.

Ah, então quer dizer que se eu não for magra, não tiver uma beleza padrão e namorar o cara mais popular da escola, eu vou ser a pessoa sentada sozinha na beira da piscina, esperando para ser sugada para um vortex alienígena? Pois é.

Stranger Things 3

No entanto, ao escolher Barb como uma das principais vítimas do Demogorgon (Mark Steger), Stranger Things subverte alguns estereótipos comuns em produções do gênero, coisa que, embora não anule os problemas levantados anteriormente, acrescenta mais nuances à discussão. É o que acontece, por exemplo, quando consideramos que, ainda que a caçada de Nancy pudesse ser motivada por milhões de motivos diferentes, ela se apoia justamente na sua amizade com Barb. Diferente de personagens femininas que têm seus arcos frequentemente movidos pelos seus relacionamentos amorosos, a jornada de Nancy começa graças ao desaparecimento da sua melhor amiga. Por causa de Barb, ela subverte sua imagem de moça certinha do colegial e mostra um lado que, do contrário, estaria enterrado até agora.

É graças à relação das duas personagens que descobrimos que Nancy, afinal de contas, é uma menina extremamente corajosa, não só porque sabe manusear uma arma e atirar melhor do que Jonathan (Charlie Heaton), mas principalmente porque não mede esforços para salvar sua amiga e não pensa duas vezes ao colocar sua vida em risco por ela, mesmo quando não sabe com que tipo de criatura está lidando – o que é muito mais do que muita gente por aí seria capaz de fazer. Além disso, é a partir do sumiço de Barb que Nancy reconhece os próprios erros, reconhece que vinha sendo uma péssima amiga e tem uma quebra de encantamento com o universo ao qual foi apresentada quando começou a sair com Steve. Ao perceber que aquelas pessoas realmente não dão a mínima para o que está acontecendo, Nancy tem a chance de mostrar para Steve e todos aqueles que a rodeiam que não vai deixar de ser a pessoa que verdadeiramente é, muito menos vai abandonar as pessoas que sempre estiveram com ela só porque, de repente, começou a namorar o cara mais popular da escola e sair com seus amiguinhos igualmente populares.

Nesse sentido, a série dá um passo para trás quando decide deixar Steve e Nancy juntos ao final da primeira temporada – uma escolha que não apenas passa a ideia de que mulheres sempre vão precisar ficar com alguém no final (algo que, particularmente, me incomoda muito profundamente), como passa a falsa impressão de que tudo está bem na pequena cidade de Hawkins. E aí que tá, porque embora mereça um final bacana, Nancy não precisa de um cara ao seu lado, muito menos de um cara que viu seus amigos a difamarem na frente de toda a cidade e não fez absolutamente nada. É bem verdade que ele dá uma virada, se redime e mostra que, afinal de contas, não é um babaca tão grande assim, ou quase isso. Mas até quando? Até que seja contrariado novamente? Deveríamos realmente acreditar que essa é uma mudança real? Fica aí a questão.

Da mesma forma, após encontrar Will, a cidade entra num estado em que os acontecimentos da temporada parecem ser facilmente esquecidos por todos. A família do garoto desaparecido está novamente reunida, o Demogorgon foi aparentemente vencido e os responsáveis provaram do próprio veneno, ou seja, todos podem retornar aos seus postos e continuar vivendo suas vidinhas numa boa como se tudo estivesse resolvido. O problema é que não está. Barb foi morta, para muitos continua desaparecida, sua família sequer sabe o que aconteceu com ela e, mesmo assim, aqueles que sabem o que de fato aconteceu não parecem fazer muita questão de se lembrar e tomar qualquer atitude a respeito, muito menos de parar para pensar que, opa, não está tudo tão bem assim. Então deixem a família não saber de nada, deixem o corpo da menina apodrecer num universo paralelo. De novo, parece que ninguém se importa realmente com o trágico fim de Barb.

Por outro lado, série faz um paralelo interessante com outras produções que constantemente optam por apostar em vítimas que possuam algum tipo de segredo ou que tenham feito algo errado, como uma espécie de castigo que reflete muito dos valores morais que são impostos socialmente – uma teoria defendida, inclusive, por pessoas como Stephen King. Mesmo que em muitos casos não exista uma intenção real de promover tais valores (embora seja bem complicado pensar numa produção que nem sequer reflete sobre ideias que está vendendo, a gente sabe que elas existem), é muito mais fácil assistirmos personagens se tornarem vítimas dentro de uma história quando esses mesmos personagens são pessoas ditas promíscuas, que bebem demais, praticam algum tipo de ato ilícito, usam drogas ou façam qualquer coisa que seja moralmente condenável, do que o contrário.

Quando falamos sobre mulheres, essa moralidade disfarçada de monstros horríveis e crimes bárbaros vem também acompanhada de uma outra questão: a de que mulheres deveriam permanecer virgens – um conceito que deveria estar morto e enterrado, mas que infelizmente não está. Imediatamente, meninas que têm uma vida sexual ativa são condenadas simplesmente por terem uma vida sexual ativa (algo que acontece especialmente em filmes voltados para o público adolescente), enquanto aquelas que “se preservam” são salvas pela sua pureza, como se nossas escolhas (ou não-escolhas) sexuais determinassem se somos dignas de viver ou se devemos morrer e arder no fogo do inferno.

Stranger Things 4

É por isso que a morte de Barb assume certo propósito aqui. Embora continue sendo problemática em vários níveis, moralmente falando, Barb seria a garota correta, que estuda muito, é gentil, boa amiga, não veste “roupas impróprias” (o que quer que isso seja), não bebe, não usa drogas e não convive ou se envolve com pessoas que possam ser inadequadas. Nancy, por outro lado, age mal com a amiga, mente para a própria mãe, transa com o menino mais popular da escola, perde a paciência com o irmão e ainda que seja uma menina inteligente e estudiosa, que não usa roupas “impróprias” (pode não parecer, mas eu me sinto realmente idiota usando esses termos), ela tem uma aparente pré-disposição muito maior a tomar decisões equivocadas do que sua melhor amiga (pelo menos até onde pudemos conhece-la). Levando isso em consideração, não seria difícil pensar que, numa narrativa tradicional, quem levaria a pior seria Nancy e não Barb. No entanto, o que acontece é justamente o contrário – o que talvez seja o grande diferencial de Stranger Things.

Não existem argumentos que façam a morte de Barb ser um episódio menos doloroso ou que anule toda a frustração de ver uma personagem tão gente boa sofrer dessa forma. No entanto, se filmes e séries de terror são um constante lembrete dos valores morais que existem na nossa sociedade, Stranger Things nos lembra que, embora não existam Demogorgons de verdade no mundo (pelo menos, até que se prove o contrário) (por favor, não provem o contrário), não importa quão bom você seja, coisas ruins acontecem. Barb é uma ótima pessoa, que sem dúvida teria um futuro incrível pela frente e que merecia viver uma vida longa e feliz, mas que mesmo assim encontra um fim trágico. Ela não é punida por algo que fez ou deixou de fazer. Ela não está sendo castigada pelo universo ou por uma força superior. Barb simplesmente estava no lugar errado, na hora errada.

Por mais triste que seja, a verdade é que, no mundo em que vivemos, não importa se somos crianças, adultas ou idosas, se a nossa roupa é curta ou não, se temos uma vida sexualmente ativa ou nos guardamos para o casamento, se somos garotas estudiosas ou não damos a mínima para isso, se estamos andando sozinha por um lugar escuro, se fomos sozinhas para uma festa. Coisas ruins acontecem e nós ainda somos vítimas de violências absurdas independente do que fazemos ou deixamos de fazer. Infelizmente, nem todas temos as chances sermos salvas – e essa é justamente a mensagem que Stranger Things, no final das contas, deixa para todas nós. Barb não será esquecida e continuaremos a problematizar aquilo que deve ser problematizado, mas ela também será um lembrete de que, infelizmente, o mundo às vezes é só um lugar horrível, com pessoas e criaturas horríveis, e que a vida, afinal de contas, não é justa com ninguém.

3 comentários

  1. Moral da história: bonzinhos só se fodem.
    E bem, estou esperando pela segunda temporada para saber como desenvolve essa coisa toda.

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