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Síndrome do Impostor: a Lenu que há em nós

Quando se sentir uma fraude é um problema de quase todas as mulheres que você conhece, estamos falando, possivelmente, de um problema coletivo. Claro que essa é uma observação que parte de uma amostra reduzida — meu círculo social —, mas ainda acho que a reflexão é válida. Pensar a respeito desse tema, do quanto não é incomum nos sentirmos insuficientes dentro dos espaços que ocupamos, foi conseqüência de estar lendo (no momento, aguardando a publicação do último livro) a Tetralogia Napolitana da Elena Ferrante. E talvez também de constatar certos padrões de comportamento que fui reproduzindo durante minha vida acadêmica.

Eu estudei nos ensinos fundamental e médio em um colégio militar e, para quem não estiver familiarizado com esse tipo de instituição, nesses colégios existe uma tradição de premiar os alunos que se destacam com as maiores notas durante o ano letivo. Recebíamos homenagens em solenidades e, anualmente, ascendíamos um degrau na hierarquia militar. Nunca me senti de fato confortável com esses títulos, principalmente pelo fato de achar que isso criava um clima de competição entre os estudantes. Mas, apesar de ter minhas críticas, foram tantos anos dentro desse formato de ensino, que sinto ter tido uma parcela significativa da minha autopercepção construída a partir do modelo de premiação dos “alunos-destaque”. Eu era os meus resultados.

Levei muito tempo pra perceber que eu media meu valor pelas minhas conquistas, e sinto que levarei mais tempo ainda pra conseguir me desvencilhar totalmente da influência que essa lógica — ainda — exerce sobre mim. E isso é muito menos sobre militarismo do que falei até agora, e muito mais sobre a forma como conduzimos a educação das meninas. Não é coincidência que a Síndrome do Impostor seja tão mais comum em mulheres. Isso porque, independentemente do tipo de educação formal que as mulheres receberam (com ou sem estrelinhas por suas notas), parece existir um padrão de comportamento que é esperado: o de não errar. As meninas são criadas para a perfeição. Talvez isso explique o fato de que muito me identifiquei com algumas falas e sentimentos de Lenu, a narradora da Tetralogia Napolitana.

“Como posso explicar a essa mulher — pensei — que desde os seis anos de idade sou escrava de letras e números, que meu humor depende do êxito de suas combinações, que essa alegria de ter feito bem é rara, instável, que dura uma hora, uma tarde, uma noite?” (História de Quem Foge e de Quem Fica, p. 47).

Comecei a ler A Amiga Genial em março do ano passado. A série é composta por quatro livros e nela acompanhamos a trajetória de duas meninas, Elena ou Lenu, e Rafaella ou Lila. O contexto da história é o pós-Segunda Guerra na Europa, mais especificamente o pós-guerra num bairro pobre de Nápoles, na Itália. Lenu é uma personagem bastante complexa, com muitas nuances que, de forma mais intensa no terceiro livro da série, se sente, de forma permanente, uma farsa e teme ser descoberta ou desmascarada, uma vez que ela sempre julga seus esforços como insuficientes para ser merecedora de suas conquistas.

O livro, escrito de modo brilhante, não cai no simplismo de associar o que Lenu alcança academicamente apenas aos seus esforços pessoais. O enredo se estrutura de modo a fazer com que o leitor note que o sucesso de Lenu nos estudos foi multifatorial — há uma parcela significativa de mérito pessoal, mas também de sorte, de não necessariamente apoio dos pais, mas certamente menos resistência do que enfrentou Lila, sua amiga genial, e de certo auxílio material da professora Oliviero.  Desse modo, a disciplina, a organização, a capacidade intelectual de Lenu é reconhecida por todos, menos pela a própria Lenu. Não é que ela reconheça que o acaso, a sorte, o destino (como preferir) tenha tido um grande papel em seu percurso. Ela atribui todos os seus sucessos a esses elementos, como se o reconhecimento como escritora que ela tanto almejou e para o qual se empenhou durante tantos anos fosse completamente imerecido. Lenu se enxergava como uma  impostora e sempre que se via através desse filtro tão pouco gentil consigo mesma, e ficava paralisada.

Quando o medo de falhar é tão intenso que nem tentar parece uma escolha atrativa para tantas meninas estamos, possivelmente, diante de um sintoma de nossa cultura patriarcal que tanto subjuga as mulheres, nos esvaziando de humanidade. Porque aceitar que nem sempre seremos (e que não precisamos ser) a mãe/dona de casa de postura irretocável, a esposa sempre disponível, a profissional ou a estudante que jamais comete um deslize, é abraçar nossa humanidade. Tentando não esconder minha vulnerabilidade é que estou aprendendo a conviver com a Lenu que existe em mim.

Juliana Albuquerque tem 23 anos, é recifense e estudante de medicina.
Tem certeza que sua vontade de aprender a cuidar de gente tem tudo a ver com seu amor por livros e narrativas. 


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