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Seres Mágicos & Histórias Sombrias: o que aconteceu depois?

Neil Gaiman é, definitivamente, um dos meus autores favoritos. Não há um livro escrito por ele que eu tenha lido e não tenha gostado, então quando soube que ele estaria envolvido na organização de Seres Mágicos & Histórias Sombrias, coletânea lançada no Brasil pela DarkSide Books, tinha certeza de que adoraria cada um dos trabalhos escolhidos para compor o livro. Ao lado de Gaiman está ainda Al Sarrantonio, autor de que não sou tão íntima assim, descrito pela Booklist como um dos mais brilhantes quando o assunto é antologia.

A premissa de Seres Mágicos & Histórias Sombrias é bastante simples e está presente também no cerne dos livros escritos por Gaiman e Sarrantonio: se escritores são os responsáveis por abrir portais mágicos por onde os leitores entram para sonhar, porque não abrir vários desses portais em um único livro? E se esses portais fossem capazes de levar esses mesmos leitores para universos sombrios e mágicos, bizarros e encantadores, apenas com o folhear das páginas? É dessa forma que a dupla reuniu 27 histórias que nos mostram universos particulares, personagens intensos e narrativas inesperadas.

Entre os convidados para participar da antologia, além dos próprios Gaiman e Sarrantonio, estão Joyce Carol Oates, Peter Straub (autor de um dos meus livros favoritos, Ghost Story, também publicado pela DarkSide Books), Chuck Palahniuk e Joe Hill, apenas para citar alguns. O que os une, além do amor pelas palavras, está, como escrito por Neil Gaiman no prefácio da edição, a magia de pegar as palavras e utilizá-las para construir novos mundos — o que todos eles fazem maravilhosamente bem.

“Quando eu era criança, perturbava os mais velhos querendo histórias. Minha família improvisava ou lia histórias de livros. Assim que tive idade suficiente para ler, passei a ser uma daquelas crianças que precisava ter um livro ao alcance da mão. Eu lia um livro por dia, ou mais. Queria histórias, e queria sempre, e queria a experiência que só a ficção podia me dar: eu queria estar dentro delas.”

A citação acima foi retirada do prefácio escrito por Neil Gaiman e cá estou me identificando novamente com suas palavras. Viver dentro dos livros, mais do que em qualquer lugar, é praticamente uma constante em minha existência. Mergulhar em Seres Mágicos & Histórias Sombrias é abrir as portas para para universos ímpares e experiências que vão sempre te deixar perguntando: e o que aconteceu depois? São essas quatros palavras — o que aconteceu depois — que move cada trama presente nessa coletânea e que Gaiman faz questão de frisar nesse mesmo prefácio. Ao ser perguntado por um leitor o que ele escreveria na parede da área infantil de uma biblioteca pública, Gaiman ponderou e respondeu:

“Não sei se escreveria uma citação se fosse eu que tivesse uma parede de biblioteca para desfigurar. Acho que eu só lembraria às pessoas do poder das histórias, de por que elas existem. Eu colocaria as quatro palavras que qualquer pessoa que conta uma história quer ouvir. As que mostram que está dando certo, e que páginas serão viradas: o que aconteceu depois?”

E ele continua: são essas as quatro palavras que uma criança diz quando você faz uma pausa no final da história; são as quatro palavras que se ouve ao final de um capítulo; são as quatro palavras que mostram ao contador de histórias que as pessoas se importam. E é por esses, e tantos outros motivos, que Seres Mágicos & Histórias Sombrias é tão especial a sua maneira estranha e surreal. Particularmente não sou uma pessoa de coletâneas — em geral prefiro mergulhar de cabeça em um calhamaço de 800 páginas do que permanecer por breves momentos em um conto, mas aqui fui arrebatada por quase todas as histórias presentes no livro.

Uma das minhas favoritas foi escrita por Joe Hill, “O Diabo na Escada”. A começar pela maneira como foi pensada, com as frases formando a escada do título no meio das páginas, ao tema abordado, o conto foi um dos mais impactantes e com uma das construções mais interessantes de toda a coletânea. “Sangue”, de Roddy Doyle, te deixa na ponta da poltrona enquanto lê, mesmo que na trama não tenha nada realmente mirabolante; o que te deixa preso, virando as poucas páginas que compõem o conto, é descobrir de que forma o protagonista sairia da situação em que se meteu. “Figuras Fósseis”, de Joyce Carol Oates, uma história macabra sobre irmãos gêmeos e as vidas diferentes que levaram até o momento em que se reúnem definitivamente, é uma das mais sombrias e lúgubres da coletânea com um fechamento perfeito o suficiente para assombrar o leitor por um bom tempo — experiência própria.

“E EU NÃO VOU EMBORA. Você é que vem a mim.”
Figura Fósseis, Joyce Carol Oates

O trabalho do próprio Neil Gaiman em “A Verdade é Uma Caverna nas Montanhas Negras” integra a coletânea com perfeição ao desenhar uma espécie de conto de fadas no melhor estilo Irmãos Grimm: aqui o autor conta a história de um anão que sai em uma jornada, mas parte dela é apenas um engodo para atingir outro objetivo — esse conto é o exemplo perfeito da tal mágica feita por meio das palavras, um trabalho que não poderia ser de outro escritor que não fosse Neil Gaiman. “Incêndio em Manhattan”, de Joanne Harris, reimagina deuses nórdicos vivendo em Manhattan nos dias de hoje após o Ragnarok, como eles se relacionam com os humanos, dirigem restaurantes e se transformam em estrelas de rock. A premissa lembra, sem muito esforço, Deuses Americanos do próprio Neil Gaiman, mas nem mesmo a falta de ineditismo da trama atrapalha seu desenvolvimento.

Em “Pesos e Medidas”, de Jodi Picoult, acompanhamos a trajetória de um casal que acabou de perder a filha e como cada um navega pelo luto a sua maneira. É um conto intenso e tenso, e é fácil se perder nos sentimentos doloridos de cada um deles — a dor emocional e física extravasa pelas páginas por meio das palavras de Picoult. Vencedora do prêmio New England Bookseller — ela tem mais de 14 milhões de cópias de seus livros vendidas em todo o mundo —, não é à toa que sua narrativa é tão envolvente, mesmo em uma história em que nada parece acontecer de fato e tem tão poucas páginas para explorar. Porém a autora é magnífica ao lidar com os sentimentos de seus protagonistas, como a dor do luto e da ausência, certamente vou procurar por seus outros trabalhos — inclusive seu trabalho no mundo dos quadrinhos com Wonder Woman: Love and Murder.

Outro favorito que é, no mínimo, perturbador, foi escrito por Kat Howard. Em “Uma Vida em Ficção”, a escritora conta a história de jovem que se percebe presa literalmente em um livro diferente cada vez que seu namorado escreve ficção. Ela é sua musa e, como tal, recebe diferentes tramas e backgrounds cada vez que ele se inspira nela para escrever. Pode soar como um elogio no começo, ser a musa de alguém, mas a lisonja começa a ter contornos doentios quando você não consegue mais escapar para a sua realidade. “Pegar e Soltar”, de Lawrence Block, é a história de um serial killer que se chama de vegetariano que gosta de pegar e soltar suas vítimas, mas não exatamente — e esse é apenas um detalhe dessa trama bizarra que me deixou tensa do começo ao fim.

“O som mais alto do mundo é a ausência de uma criança. Sarah se viu esperando no momento em que abriu os olhos de manhã: aquela fita de cetim de uma risadinha ou o baque de um pulo da cama — mas só ouviu o chiado da cafeteira que Abe devia ter deixado programada na cozinha na noite anterior, cuspindo furiosamente enquanto terminava de ferver.” Pesos e Medidas, Jodie Picoult

“O Diário de Samantha”, escrito por Diana Wynne Jones, é uma história que se passa no ano de 2233 e acompanha o final de ano da protagonista, uma modelo de sucesso. A trama parece banal com Samantha comentando a respeito das festas, dos padrastos (sim, no plural) e dos pretendentes que sua mãe tenta empurrar em sua direção. As coisas começam a ficar extremamente estranhas quando um admirador secreto envia uma série de presentes estranhos para a casa da modelo — embora esse não seja, de fato, um dos contos favoritos, a urgência em saber o que estava acontecendo levou a melhor sobre mim. Aqui não há, realmente, seres mágicos ou histórias sombrias, mas vale a nota apenas pela bizarrice de toda a situação.

Em “As Estrelas Estão Caindo”, é a vez de Joe R. Lansdale explorar os piores contornos da alma humana ao contar sobre o retorno de um veterano de guerra ao lar. Ao chegar, ele descobre que muitas coisas mudaram, e não para melhor. Esse é um conto perturbador sobre assassinato, vingança e o vazio que daqueles deixados para trás. Por último, mas não menos importante, está ainda “O Terapeuta”, de Jeffery Deaver, uma história sombria sobre o personagem título que parece um cara muito legal e solícito até que a gente descobre que a não é bem assim. A reviravolta não é exatamente uma surpresa, mas a maneira como Deaver faz a narrativa crescer em tão poucas páginas vale muito a pena.

Além das 27 histórias que compõem a antologia, a edição brasileira de Seres Mágicos & Histórias Sombrias é única no mundo visto que toda a experiência de leitura é potencializada por um trabalho soberbo do artista norte-americano Jason Limon — é ele quem ilustra com delicadeza a capa da edição além dos detalhes do miolo do livro em capa dura, mais uma edição belíssima da DarkSide Books. Com tradução de Regiane WinarskiSeres Mágicos & Histórias Sombrias é uma homenagem aos contadores de histórias e os mundos que eles criam com o poder especial que possuem, de transformar as palavras em jornadas completas munidos apenas com a imaginação. Durante a leitura pude ir para universos completamente novos, conhecer novos autores e, claro, me perguntar o tempo inteiro “o que aconteceu depois?”, e virar a próxima página.

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora DarkSide Books.


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