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Seleção Brasileira Feminina: o que está acontecendo?

É um passo para a frente e três para trás. Com esse tipo de dinâmica, o futebol feminino está acostumado, em especial o brasileiro, que segue recebendo migalhas cada vez menores da CBF (Confederação Brasileira de Futebol), da CONMEBOL (Confederação Sul-Americana de Futebol), da FIFA (Federação Internacional de Futebol) e da torcida. Em setembro deste ano, com a demissão de Emily Lima, algumas jogadoras decidiram que já aguentaram o suficiente e o que se viu foi uma confusão generalizada que já estava mais do que na hora de acontecer.

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Quando não estão na seleção

A realidade das jogadoras fora da Seleção é outra, não apenas por serem jogadoras diferentes e de competências diferentes, mas porque são mulheres. Jogadoras como Maria, Maurine e Dani, que jogam no Santos, usam as mesmas estruturas de treinamento e acompanhamento médico do time masculino, estrutura essa que é considerada uma das melhores do mundo, mas ainda estão longe de lotar estádios e vender uniformes aos milhões. Cristiane, que atualmente joga na China, e Érika já passaram pelo próprio Santos e por times como Paris Saint-Germain, vencedor de Champions League feminina.

Em entrevista ao canal Desimpedidos, Marta, capitã da Seleção Brasileira e que atualmente defende o americano Orlando Pride, falou sobre as condições das mulheres dentro do futebol feminino: “as pessoas acham que a Marta ganha milhões igual ganham os jogadores masculinos, né, e no [futebol] feminino isso [ganhar milhões] não existe. Claro que é melhor comparado a quando a gente começou a jogar que não tinha nem salário era ‘ajuda de custo’, a gente tem um salário decente hoje que dá pra gente viver. (…) Nem sempre dá pra ajudar todo mundo [os familiares que mais precisam] como os caras conseguem.” Para título de comparação, Kaká recebeu de salário, em 2016, $6.66 milhões de dólares do Orlando City, mesmo time da Marta, que recebeu $41 mil. Alguns argumentariam que Kaká é o jogador detentor do prêmio de Melhor do Mundo da FIFA, mas o argumento logo cai por terra.

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Andressa Alves, que joga no catalão Barcelona, diz que o apoio do time é gigantesco, e o investimento, ótimo para a imagem do clube, que “aposta muito, valoriza a gente e esse incentivo nos deixa muito fortalecidas.” Depois de Andressa, primeira brasileira a jogar no time, a equipe também contratou Fabi. Desde 2016, o Barcelona faz sua foto oficial de elenco com os dois times principais misturados:

A situação das jogadoras do Orlando, do PSG, do Barcelona e do Santos não chega nem perto da situação de muitas outras, o que é frustrante para qualquer pessoa. Experimente dar o seu melhor dia após dia e ter apenas o mínimo de reconhecimento quando seu colega de profissão tem a terceira maior transferência entre times da história do futebol?

Efeito dominó e a saúde mental das jogadoras

Uma das principais coisas que diferencia Emily de Vadão (além de ser melhor qualificada) é o modo como ela cuida da saúde mental das jogadoras. Ela trouxe para trabalhar com ela a coach Sandra Santos, que cuida não apenas da parte física, mas também do psicológico das jogadoras, mostrando o quanto o trabalho delas é importante.

No dia 27 de setembro, Cristiane, um dos grandes nomes do futebol feminino e ex-jogadora do Paris Saint-Germain, foi a primeira a se manifestar nas redes sociais anunciando sua saída Seleção. Na sequência de vídeos (que começa aqui), ela diz, entre outras coisas, que está “triste por saber que não vou jogar minha última Copa América, minha última Olimpíada, a última Copa do Mundo.” Sobre a comissão de Emily, ela diz que “[a comissão] me mostrou coisas diferentes, a Emily falou comigo e eu voltei. E aí simplesmente tiraram essa comissão sem que a gente conseguisse entender. Todas as outras comissões que passaram tiveram bastante tempo de trabalho, essa não. Por quê? Porque era mulher? Porque trabalhava demais? Porque brigava por nós? São coisas que a gente não consegue entender. São porquês que a gente não vai ter resposta e eu nem sei se quero mais essas respostas.

Fran, Rosana e Maurine foram as próximas, e disseram coisas muito parecidas. Falaram de má-administração por parte da coordenação, de desgaste, cansaço, falta de voz e sobre quererem expor “um ponto de vista que mexe com a vaidade e ego de muitos.” Por muitos pode-se entender “homens”. A CBF, em comunicado oficial, reagiu às saídas da maneira mais decepcionante possível e com declarações que beiram ao ridículo e são uma ofensa à inteligência de qualquer um que entenda minimamente de futebol, dizendo que as decisões das atletas serão respeitadas por serem “de ordem pessoal,” mas o coordenador da seleção feminina, Marco Aurélio Lima, foi ainda mais longe ao dizer, para a Fox Sports, que, à Emily, faltava maturidade.

Uma pesquisa de menos de um minuto no menos conhecido dos sites de pesquisa vai dizer que Emily, atualmente com 37 anos, tem experiência como jogadora desde os 13 anos de idade, tendo jogado pela Seleção Portuguesa principal e como técnica desde os 2011 passando por cursos extensos, qualificações da FIFA e começando de baixo, coisa que muito técnico homem acha que não precisa fazer para chegar aos times principais (como Rogério Ceni), passando pela Portuguesa, pela Juventus, pelas Seleções Brasileiras sub-17 e sub-15 e levando o São José a sua melhor fase com uma campanha invejável e transparente. O que pode ser tão desgastante para jogadoras saírem precocemente da seleção depois de 16 e até 19 anos se dedicando ao time?

“Elas não têm o respeito que merecem” em qualquer lugar que seja

Em entrevista ao Estado, Emily disse que acredita que a saída das jogadoras não seja apenas por sua causa, já que o futebol feminino vem sofrendo baixas não é de hoje. O pouco conquistado não é mantido graças a uma coordenação que não poderia se importar menos, e chegar a essa conclusão não é muito difícil, considerando que só no último ano a CBF demitiu Emily e saiu da Copa Algarve por questão de gastos e times fracos enquanto Dunga ficou dois anos no cargo, em sua segunda campanha, com uma seleção de homens que ganham salários astronômicos, ganhando amistosos com seleções medíocres e comemorando como se fossem títulos, chegando ao começo das Eliminatórias da Copa do Mundo de 2018 respirando com a ajuda de aparelhos.

Segundo Emily, não há, por parte de Marco Aurélio, um interesse em sequer gostar do futebol feminino, e isso vai além da diretoria — é um problema estrutural, enraizado na nossa cultura, que dá um passo para a frente e três para trás quando se trata de mulheres e sua posição na sociedade. Para ela, a saída das atletas não coloca o futebol feminino numa posição ainda mais difícil do que a que esteve desde sempre. “É difícil você estar há 17 anos na Seleção e ninguém nunca brigar por você.”

Menos tempo, mais seleções de peso

Não é surpresa o fato de Emily Lima ter tido menos tempo para trabalhar do que qualquer técnico homem que ocupou a posição nos últimos 13 anos. Das 13 partidas disputadas (todas em competições não-oficiais), 7 foram vitórias, 5 derrotas e 1 empate. Para efeito de comparação, o último técnico da Seleção Masculina, Dunga, acumulou vergonhas internacionais na última Copa do Mundo disputada em casa e nas últimas duas edições da Copa América (sendo eliminado ainda na fase de grupos em uma delas). Também não é preciso dizer que as competições disputadas pela Seleção Masculina são oficiais. Emily ficou apenas 10 meses no cargo enquanto Dunga teve duas passagens, a última durando mais de um ano.

Quando Emily assumiu, se propôs a convidar Seleções mais fortes para jogos amistosos, uma vez que, apesar de possuir seis títulos de Copa América, isso não significa muito já que as seleções sul-americanas estão abaixo do nível do futebol brasileiro. Mesmo que a Seleção Feminina estadunidense possa ser considerada mais próxima em nível, a Copa América é o “nome fantasia” do campeonato disputado pelas seleções da CONMEBOL (Confederação Sul-Americana de Futebol), enquanto a Seleção estadunidense faz parte da CONCACAF (Confederação de Futebol da América do Norte, Central e Caribe) e, portanto, não disputa esse campeonato.

Das competições que disputou e perdeu, a primeira, contra a Alemanha, mostrou que o histórico de derrotas da Seleção brasileira frente à alemã ainda vai demorar um pouco para ser quebrado. O resultado é consequência de uma série de fatores, como metade das jogadoras titulares não serem liberadas por seus clubes para jogar uma partida não oficial e as convocadas sentindo ainda o cansaço do Campeonato Brasileiro. Fosse a Seleção masculina, o olhar para a derrota seria diferente: nem todos os jogadores estavam presentes, a Alemanha estava em casa… Os jogos a seguir, por mais que tenham sido de correção de erros e novos testes, não se mostraram fáceis, mas não desanimaram as meninas: Japão, Estados Unidos e Austrália foram alguns dos times enfrentados pelas brasileiras e Emily somou 24 gols tomados em 13 jogos.

A Seleção não ganhou dos grandes. E para ganhar dos grandes em uma Copa do Mundo e em uma Olimpíada é preciso trabalho em sequência — trabalho feito com amistosos, que Emily pediu para trabalhar o time. Treinar o time feminino em circunstâncias onde suas principais jogadoras não podem ser convocadas é dar murro em ponta de faca. E muito embora as jogadoras tenham pedido a permanência da comissão, ficou bem claro que a premissa de “precisar dar resultado” só funciona para o time feminino, vide novamente o exemplo de Dunga e sua permanência apesar dos péssimos resultados.

As próximas competições oficiais da Seleção feminina serão a Copa América, a ser realizada no Chile em abril de 2018, e a Copa do Mundo, a ser realizada na França, em junho de 2019. Não fosse pela correria de Emily, a Seleção não disputaria, em 2017, um jogo sequer, já que a CBF decidiu não participar da edição desse ano da Copa Algarve, tradicionalíssimo torneio feminino, alegando que “a competição já não tem a mesma força e o custo é muito alto para estar nela neste momento”, sendo que entre as Seleções confirmadas estavam times como Espanha, Japão, Austrália, Suécia e China.

Além de treinar a Seleção principal como se deve, Emily também se dispôs a ficar de olho na base feminina, fazendo com que elas treinassem praticamente juntas com a principal.

E agora?

Felizmente, a Seleção, apesar de tudo, ainda acredita em si mesma o suficiente para saber que a única coisa que falta é o que vem sendo pedido há anos: igualdade de gênero e respeito. No dia 6 de outubro, algumas meninas publicaram em suas redes sociais uma carta aberta à CBF que foi enviada para a FIFA. Na carta, que você pode ler na íntegra aqui, as meninas falam, entre outras coisas, sobre o quanto são negligenciadas na atual situação do esporte aqui no Brasil.

O péssimo tratamento das mulheres como líderes e jogadoras por muitos anos. Esses são apenas alguns exemplos recentes: a técnica Emily Lima, apesar do apoio das jogadoras, expressado numa carta endereçada à CBF, datada de 19 de setembro, foi abruptamente demitida; e cinco jogadoras de destaque — Cristiane, Rosana, Andreia Rosa Francielle e Maurine — se aposentaram, exaustas dos anos de desrespeito e falta de apoio.

(…)

A falta de mulheres em papéis de liderança na CBF; a ausência de qualquer estrutura dentro da CBF que permita que mulheres façam parte da gerência e da administração do futebol; e a ausência de voz daquelas que vivenciaram o futebol feminino, em decisões sobre o futebol feminino.

O fracasso em apoiar e estimular o futebol feminino em todos os níveis do esporte, desde a grama do campo até o Brasil como um todo. Nós, as jogadoras, investimos anos das nossas próprias vidas e toda a nossa energia para construir essa equipe e criar toda essa força que o futebol feminino tem hoje.

A carta também diz que, apesar da FIFA ter colocado em prática reformas que colocam como obrigatória a inclusão de mulheres em seu próprio conselho e em todos os níveis de administração do futebol, bem como nas suas Confederações, a CBF ainda não tem nenhuma mulher em seu conselho administrativo. “Não há nenhum caminho relevante para ex-jogadoras entrarem na CBF e ajudarem a gerir o próprio jogo delas”, o que seria o mínimo do mínimo.

“Os eventos da última semana — onde as vozes das jogadoras foram ignoradas, e algumas agora estão se aposentando em protesto — são o resultado de um longo histórico de portas fechadas.”

A carta é assinada pelas veteranas Tafarel, Sissi, Juliana, Formiga, Cristiane, Fran, Rosana e Andréia (essas quatro últimas tendo anunciado aposentadoria após a saída de Emily), “motivadas por um desejo de que todas as mulheres e meninas que seguem os nossos passos possam ser capazes de alcançar mais do que nós, dentro e fora do campo”, e faz diversos pedidos, visando obrigar a CBF a rever suas práticas, e um deles, a criação de um Comitê para Desenvolvimento do Futebol Feminino, aprovado em reunião na CBF no dia 17 de outubro. Pela primeira vez, em 29 anos da primeira convocação da Seleção Feminina no país, a Confederação vai ter um comitê especial para cuidar apenas de assuntos relativos a ela. Na reunião, estavam presentes o presidente da CBF, Marco Polo del Nero, seu vice, Antônio Carlos Nunes, e algumas das signatárias da carta aberta: Tafarel, Juliana, Sissi, Cristiane e Formiga.

O comitê, por enquanto, conta com a presença de quem estava na reunião e ainda propôs mais algumas ações como criação do Departamento de Futebol Feminino, sob a gestão de uma mulher e inclusão de mulheres em todos os níveis de decisões, conforme orientação da FIFA. A primeira reunião do comitê acontece ainda em 2017, no dia 9 de novembro.

O depois da demissão de Emily, da saída das meninas da seleção, da carta aberta e da criação do comitê também fala muito sobre como o futebol feminino é visto dentro do feminismo. Ou como não é visto, no caso. É possível contar nos dedos os veículos feministas que falam sobre as condições das mulheres dentro do esporte e, mesmo que as jogadoras falem sobre seu descontentamento e seu cansaço por serem tratadas do jeito que são em seu ambiente de trabalho, pouquíssima gente considera o futebol um ambiente de trabalho e só olha para o esporte quando algum jogador homem dá uma declaração polêmica. Por mais que as jogadoras gritem, nada adianta se a ninguém ouvir. E se as mulheres não estão ao lado delas nesse momento para abraçar e ouvir suas reclamações, então quem está?

Riscar o nome do Neymar da camisa da Seleção e escrever o nome da Marta é muito bonito na foto, mas quantos pais e mães vão com os filhos ao estádio para assistir as meninas jogarem no resto do ano? O amor, o respeito e a consideração pelo futebol feminino não pode existir só quando o time masculino vai mal ou vai polêmico. Por fim, faço das palavras de Marta ao final da campanha da Seleção na Olimpíada Rio-2016 as minhas: não desistam do futebol feminino.


Fontes: dibradoras (1), dibradoras (2), Estado (1), Estado (2), Desimpedidos e ESPN.

2 comentários

  1. Que texto excelente!!
    Uma coisa que me deixa muito chateada é a falta de informação com relação ao futebol feminino. Tenho dificuldade em encontrar notícias sobre ele. Gostaria de ir aos jogos, mas não encontro um veículo de informação que anuncie sabe? E isso é super frustrante.

    1. Brigada por gostar do texto, Pri 🙂
      É bem difícil encontrar quem anuncie mesmo, mas na página do Facebook das ~dibradoras às vezes elas falam, e no Twitter @donasdabola. Às vezes as próprias equipes fazem isso, como Santos, que sempre fala quando serão os jogos, e na grande maioria das vezes eles são transmitidos online através da Santos TV no Youtube.

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