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Rita Lobo: 20 anos defendendo a comida de verdade

Depois da corrida pelo papel higiênico, as milhares de fotos de pão nas redes sociais davam a impressão de que a nova onda do panic buying é comprar farinha de trigo e fermento. Dezenas de pessoas decidiram que esse é o momento ideal para aprender a fazer pão. Em Portugal essa onda de “faça seu próprio pão” foi apelidada de “pãodemia”. O Instagram e o Twitter (já que ninguém mais parece usar o Facebook) estão recheados de fotos dos cozinheiros de primeira viagem e quem vive recebendo mensagens dos cozinheiros que acabaram de pegar o bondinho andando é Rita Lobo.

Conhecida por seu blog Panelinha e pelo programa Cozinha Na Prática do GNT, Rita Lobo sempre defendeu que cozinhar é como ler e escrever: você não nasce sabendo, mas todo mundo pode aprender. Quando entendeu que comida era o assunto da sua vida, aos vinte e poucos anos, Rita largou a carreira bem sucedida de modelo para fazer cursos de formação de chefe.

Desde o início da carreira, Rita buscou tornar a informação sobre a preparação dos alimentos acessível. Foi dessa ideia de ensinar e mostrar que cozinhar é possível que ela decidiu criar um blog. Há 20 anos surgia o Panelinha, que agora é um selo editorial pela Companhia das Letras. E nessas duas décadas, Rita Lobo continua defendendo que todo mundo pode aprender a cozinhar e que as pessoas precisam aprender a fazer comida de verdade.

Começando do início, o que Rita chama de comida que não é de verdade são os alimentos ultra-processados. O Guia Alimentar da população brasileira, um importante documento feito pelo Ministério da Saúde com orientações e dicas práticas para cada refeição, define os alimentos ultra-processados como aqueles produzidos por indústrias de grande porte, onde são envolvidas diversas etapas de processamento, diferentes ingredientes e grandes quantidades de sal, açúcar, óleos e substâncias de uso exclusivamente industrial — como substâncias sintetizadas em laboratório. São coisas como macarrão instantâneo, tempero pronto, salgadinho, barrinhas de cereal, bebidas energéticas e muitos outros.

O problema desse tipo de alimento é que eles são extremamente prejudiciais à saúde, com alto teor de sódio, por conta da adição de grandes quantidades de sal e tendem a ser pobres em substâncias com algum valor nutricional. Os sabores desse tipo de alimento são produzidos para serem viciantes e alterar o controle do apetite. Não é por acaso que às vezes é impossível “comer só um”. E ainda existem os ultra-processados “reformulados” — diets e lights — que são vistos como saudáveis mas que, na verdade, não passam de versões diferentes da mesma coisa.

Rita explica, em entrevista ao Universa, que o problema da obesidade, por exemplo, está diretamente ligado ao fato de que as pessoas não cozinham mais. “Todo mundo tem que entrar na cozinha: o problema da obesidade só vai melhorar quando as pessoas voltarem a cozinhar sua própria comida”. Os alimentos ultra-processados, por serem “rápidos e práticos” são muito mais consumidos. Só que lasanha congelada não é comida de verdade.

A pandemia e a necessidade de isolamento social escancararam, para a maioria das pessoas, o que Rita também já dizia: não dá para comer fora todos os dias e não dá para esperar que alguém vá cozinhar pra você, e a gente precisa comer comida de verdade. Então, se nós não cozinhamos a nossa comida, quem cozinha?

Existe uma simbologia muito importante sobre o “estar na cozinha”, que marca a existência das mulheres. “Esquentar a barriga no fogão”, “lugar de mulher é na cozinha”, entre outras expressões reforçam sempre mais do mesmo: a vida, lá fora, o mundo, não é pra vocês. Como a maioria das mulheres, cresci ouvindo que precisava saber cozinhar para estar pronta quando me casasse. Ficar cortando cebolas enquanto assistia aos meus primos brincando de futebol, só me fazia sentir ódio por todo aquele universo. E é sempre importante lembrar que o cozinhar destinado às mulheres é em casa, já que lá fora, nos grandes restaurantes e competições culinárias, esse espaço de prestígio é dos homens.

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) demonstra a diferença das jornadas de homens e mulheres pelo documento do “Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça”. Na edição de 2017, analisando informações de 1995 a 2015, as taxas sobre a responsabilização pelo trabalho doméstico continuaram quase as mesmas ao longo desses 20 anos: mais de 90% das mulheres declararam realizar atividades domésticas (variando entre 94% e 91%). No caso dos homens, entre 1995 e 2015, esse número passou de 46% para 53%.

Os alimentos ultra-processados ganharam força e se tornaram fenômeno mundial não apenas pela praticidade, mas também porque as mulheres não conseguem mais dar conta de toda essa carga exaustiva de trabalho. A Organização Pan-Americana da Saúde, órgão da Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou, em 2018, um relatório sobre o consumo de alimentos ultra-processados na América Latina na última década. O consumo desses produtos aumentou 48% de 2000 a 2013, ficando acima da média mundial de 43%. O relatório de 2014 a 2019 aponta um aumento de 8,3%. Segundo especialistas responsáveis, há uma epidemia de produtos ultra-processados.

Outro dado do estudo do IPEA aponta que têm crescido o número de lares “chefiados” por mulheres. Elas então são obrigadas a conciliar a jornada em casa e o cuidado infantil, com o trabalho externo — e muitas vezes precisam fazer isso sozinhas. É como ter três trabalhos, onde dois são em tempo integral, 24/7, sem direito à férias e muito menos salário. E, segundo Rita Lobo, o consumo de ultra-processados não vai mudar a menos que uma coisa seja feita: homens e mulheres precisam voltar a cozinhar sua própria comida, mas precisam fazer isso juntos, dividindo essa tarefa. Em entrevista ao Universa, disse:

“A gente precisa voltar a comer a comida como no tempo dos nossos avós, mas, de outro jeito, e só tem um jeito: homens e mulheres na cozinha. A mulher sozinha não dá conta, e o que vai acontecer é que as pessoas vão continuar comendo nuggets e lasanha se os homens não entrarem na cozinha junto com as mulheres.” 

As pessoas estão descobrindo agora que não dá pra comer fora todos os dias, e que dentro de casa também não dá pra viver de comida pré-pronta. E, além disso, que cozinhar é sim muito possível. E nada disso significa que seremos todos chefes de cozinha (“desgourmetiza, bem!’”, é o que Rita diz). A comida saborosa e de verdade pode ser o arroz com feijão de todo dia. Rita Lobo também está longe de defender que o essencial é só comer produtos naturais ou orgânicos. É possível encontrar um meio termo de consumo consciente e saudável, ideal para nossa vida diária. No programa “Coma Comida de Verdade do Cozinha Prática com Rita Lobo, ela ressalta a recomendação do Guia Alimentar da população brasileira de que precisamos aprender a comer comida, e não nutrientes.

Segundo o Guia, a combinação de alimentos é o que proporciona a nutrição necessária para uma boa saúde. E, ainda, a forma como os alimentos são preparados e o modo de comer fazem parte da formação cultural e são, também, fonte de sentimento de pertencimento e bem estar. A alimentação está além da simples manutenção da subsistência: comer é vida, é cultura, é pertencimento.

Tanto Rita Lobo quanto o Guia Alimentar da população brasileira recomendam o consumo dos alimentos minimamente processados ou in natura. Os minimamente processados são coisas como arroz, feijão e grãos ensacados em geral, ou cortes de carne congelados, leite pasteurizado. Alimentos in natura são aqueles adquiridos diretamente de plantas ou de animais. Ao contrário dos ultra-processados, eles demandam preparação e atenção para serem feitos.

O Guia, que é baseado nos hábitos culinários da população brasileira, aponta que a tradição de habilidades culinárias vem se perdendo, mas isso não significa que não possa ser aprendido. Para quem cresceu no interior, como eu, era comum estar lá assistindo a mãe, tias e avó cozinhando e grande parte das receitas sendo feitas de olho, sem medida nem livros de receita. Minha avó sabia qual seria a cor do doce de leite só pelo braço de quem mexia o tacho.

Na verdade, até o século XIX os livros de receitas não levavam medidas. Eliza Acton foi a primeira escritora a fazer um livro de receitas com quantidades precisas. Antes, o mínimo que se esperava era que quem fosse cozinhar já soubesse o ponto certo de cada coisa. Esses livros, é claro, eram feitos para as mulheres que passaram a infância inteira assistindo suas mães sovando pães, batendo bolo e mantendo um olho no fogão e outro nas crianças. O que torna essas cozinheiras tão experientes são os longos anos que passaram fazendo essa ou aquela receita. Em “A receita do frango ensopado da minha mãe”, a incrível cronista culinária Nina Horta, depois de explicar a receita, escreve “Tudo depende muito da panela, do próprio frango, do fogo… a experiência de repetir e repetir é que vai te ensinar.” Cozinhar é aprender pela repetição, é treino.

Aceitamos cegamente que algumas coisas só são possíveis se houver talento, jeito. Essa é só mais uma forma de determinar uma “habilidade natural”, que não é nada mais que uma forma específica de socialização. Se você cresce sempre vendo outras pessoas cozinhando e desde nova é ensinada e incentivada a fazer igual, é muito difícil não desenvolver alguma habilidade. E esse “jeito” é, muitas vezes, determinado pelo gênero. Da mesma forma que mulheres que não são naturalmente aptas para serem mães, ou não são mais delicadas, também não existem pessoas mais ou menos aptas a cozinhar (e aqui fala uma pessoa extremamente desastrada na cozinha que aprende tudo na marra da repetição mesmo).

Portanto, só é possível aprender a cozinhar se você fizer, se colocar a mão na massa. E faz de qualquer jeito, se der errado, tenta de novo amanhã. O grande apresentador e cozinheiro Paulo de Oliveira, do Larica Total, já dizia: “não fica tentando fazer bonitinho, pô ‘será que é assim que faz?’, faz! Faz! Pega e faz! Cozinha é laboratório de experiência”.

O momento não é bonito, não podemos romantizar uma pandemia mundial e dizer que ela mudará a vida das pessoas e vai fazer todo mundo se alimentar melhor. E você pode até acordar bem, mas o país não colabora. A coisas estão difíceis, angustiantes e se você não está afim de cozinhar, não se force. Mas, se por acaso existem coisas nesse mundo que são capazes de nos distrair das notícias ruins de todo dia, pode ser que cozinhar seja uma delas. E, então, dando essa chance para a cozinha seja como forma de terapia, desenvolvimento pessoal talvez as pessoas possam entender o que Rita Lobo repete há 20 anos com seu blog, editora, programas de TV e entrevistas: aprender a cozinhar é possível, e essencial, pra todo mundo.