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Shippando Reylo e a reafirmação de tropes românticas tóxicas

Quando consumimos alguma produção cultural, é inevitável não cair na tentação de torcer por determinados personagens ou acontecimentos — o que se intensifica quando há um casal envolvido. Crescemos e desenvolvemos nossas relações diárias moldadas pela busca do amor romântico — socialmente construído e baseado na manutenção do status quo. Nesse contexto, não encontrar alguém com quem passar o resto da vida só pode ter uma interpretação possível: fracasso, de modo que não é uma surpresa que projetemos esses desejos naquilo que consumimos.

Os chamados ships (denominação derivada de “relationship”, relação em inglês) são o que movem grande parte dos fandom no Tumblr e no Twitter. Os debates são apaixonados, intensos e, por vezes, irracionais. Defender um OTP [one true paring] acaba se tornando quase um hobby, uma maneira de expressar gostos e identificação, além do desejo por uma trama rica, complexa e que apresente elementos instigantes e repletos de drama. Toda produção audiovisual e literária precisa ter um bom ship.

Com a franquia Star Wars não seria diferente. Seu histórico e contribuições para a cultura popular e para a sociedade dispensam apresentações: toda uma geração cresceu e formou seu caráter tendo como referência Darth Vader, Luke (Mark Hamill), Han (Harrison Ford) e Leia (Carrie Fisher) e a luta entre o lado sombrio e luminoso da Força. Os ships são também parte essencial desse universo: Anakin (Hayden Christensen) e Padmé (Natalie Portman), Han e Leia e, mais recentemente, com o lançamento da nova trilogia, Rey (Daisy Ridley) e Finn (John Boyega), Finn e Poe (Oscar Isaac), Poe e Rey, e Kylo Ren (Adam Driver) e Rey.

Esse último tem sido motivo de debate desde a chegada do Episódio VII aos cinemas, em dezembro de 2017. Os Últimos Jedi dá sequência a trajetória do novo trio iniciada em O Despertar da Força, que introduziu o relacionamento deveras interessante entre Rey e o alter ego de Ben Solo, Kylo Ren. Com cenas que preparam o caminho para o que estava por vir em Os Últimos Jedi, O Despertar da Força despertou uma legião de shippers do casal.

Na história dirigida por Rian Johnson, o apelo de Reylo praticamente triplicou. Com uma trama baseada não apenas na jornada de Rey em busca de um Luke Skywalker aposentado, mas também da necessidade de descobrir seu lugar no mundo e na guerra em que está lutando para que, assim, possa seguir adiante, completando sua jornada. É nesse momento que seu destino é irreparavelmente amarrado ao de Kylo, que também luta contra sentimentos e emoções turbulentas após assassinar o próprio pai.

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Luz versus escuro. Heroína versus vilão. Bem versus mal. O equilíbrio da Força se reflete, de forma poética até, na relação entre Kylo e Rey, que encontram no outro um ponto de apoio em um momento crítico de suas vidas. “Os oposto se atraem” é, possivelmente, o maior clichê sob qual um romance é sedimentado na cultura popular. E o que pode ser melhor do que os representantes de duas forças contrárias, que lutam há anos em uma guerra que já deixou um rastro inigualável de destruição por toda a galáxia, desenvolverem uma relação baseada nisso, certo? Nem tanto. Na mesma velocidade e proporção que a internet se tornou um local povoado por Reylos shippers também vieram aqueles que problematizaram a construção romântica que envolve os personagens. Seria Reylo, então, um casal abusivo?

Um dos primeiros contatos entre os dois acontece em uma cena em que Kylo tortura Rey para obter informações sobre a Resistência. A cena, vista por muitos como intensa e cheia de tensão sexual, reflete um momento de dominação de um homem sobre uma mulher, que está em uma posição de vulnerabilidade extrema. O diretor do longa, J. J. Abrams teria até, supostamente, confirmado a impressão de um fã de que a cena conteria um subtexto de abuso sexual, denominado como “mind rape.

Os Últimos Jedi acertou especialmente no desenvolvimento de Kylo não apenas como vilão, mas também como personagem, ao humanizar sua jornada e motivações, lhe atribuindo uma backstory cheia de camadas e artifícios morais e emocionais complexos. Com isso, a ligação de Kylo com Rey ganhou força e mais espaço na telona, o que implicou no surgimento de um romance explícito entre os dois em que Rey se torna pivô das revelações entre Ben Solo e Luke, e como ponto de suporte para Kylo, e vice-versa.

Se no primeiro filme Rey estava diante de Kylo confusa e vulnerável fisicamente, na sequência da trilogia essa fragilidade se apresenta de forma emocional. Após a morte de Han (Harrison Ford), e com Finn (John Boyega) em coma, Rey parte em busca do herói que acredita ser a única esperança da Resistência, mas também a única esperança para si; alguém que pode lhe dar respostas e ajudar a entender o que é essa força que não estava antes lá, mas agora domina todas as suas ações. Quando tudo o que ela encontra é um beco sem saída, o roteiro a leva para a única pessoa que é capaz de compreender o que ela está passando e vivenciando.

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Kylo é um personagem cheio de nuances, com um espectro que varia do tom mais escuro até cores mais claras, e não desmereço sua trajetória, cheia de figuras controversas e formadores de caráter ausentes e tão problemáticos quanto a pessoa que ele se tornou. Contudo, como na reflexão publicada sobre o casal pelo site Nebulla, “Kylo não quer alguém com quem dividir a vida, ele quer uma companheira que lhe forneça afirmação, amor na forma de validação da sua superioridade perante os outros”, o que é possível de observar na maneira como ele cerceia Rey da sua rede de suporte, se aproveita de sua dúvida quanto a sua importância como pessoa e Jedi na guerra que se desenrola apenas para isolá-la daqueles que a acolheram, tentando convencê-la de que a única saída é uma aliança entre os dois, em que ela se tornaria parte da destruição do sistema Jedi que domina as relações do Império (os fins podem ser admiráveis; os meios, nem tanto). Além disso, em toda a história, para quem possui o mínimo de conhecimento sobre relacionamentos abusivos (veja também: 15 sinais que ajudam a definir um relacionamento abusivo), uma cena é suficiente para a sirene vermelha soar na cabeça. São usadas táticas que fazem Rey acreditar que não é querida, que sua presença não faz diferença para a Resistência, o que a distancia de seu melhor amigo, Finn, e a joga diretamente na presença de alguém que afirma que sua existência não significa nada, a não ser para ele.

A conexão entre os dois personagens, por mais diferentes ideologicamente, acontece, principalmente por encontrarem um no outro uma forma de validação e apoio. Exceto que, no caso de Star Wars, a trama se desenvolve de forma quase unilateral, centrando Rey sob a ótica de salvadora de Kylo, como se o amor fosse suficiente para curar todas as feridas e a única forma de se alcançar a redenção. Assim, Kylo irá mudar por Rey, irá buscar ser alguém melhor, não cometerá genocídios, matando até mesmo os próprios familiares, ou sentindo inveja da Força que habita outras pessoas. Não importa se ele tentou matá-la no passado, ou ao seus amigos, desde que Rey escolha permanecer ao seu lado. Com amor suficiente, será possível recolocá-lo de volta nos trilhos e equilibrar suas ações desmedidas, violentas e perigosas.

São impressões como essa que, repetidas vezes, criam um padrão que grita que, se há amor, tudo pode ser resolvido e qualquer um, salvo. Ainda pior, o modelo reforça a dificuldade em se reconhecer um relacionamento abusivo e ajuda a abafar atitudes simbólicas, violentas e tóxicas travestindo-as como cuidado, preocupação e amor. No caso de Reylo, ainda estamos a um ato do derradeiro final e, com astúcia e jogo de cintura, o relacionamento dos dois pode subverter o estigma abusivo que o cerca, além de dar novos significados e desdobramentos para a “redenção de um homem através do amor de uma mulher”. Especialmente se levarmos em consideração a escolha feita por Rey no ponto de virada final da trama do longa.

É preciso aguardar para ver qual será o caminho traçado pela franquia. Mas, enquanto isso, é interessante refletir sobre o que foi trilhado pelos personagens quando juntos, até agora. Somos moldados a responder a certos estímulos antes mesmo de termos consciência de que somos seres sociais, induzidos a consumir sem refletir o que está sendo posto à mesa — e por isso é tão importante buscar pontos de vista divergentes e visualizar uma situação de forma mais ampla.

Gostar e apreciar determinados produtos é o objetivo da maioria das pessoas quando decidem sentar em uma sala de cinema por duas horas ou ler um livro em uma tarde ensolarada de domingo. Entretanto, a questão é que gostar de algo não deveria, necessariamente, implicar a não consciência das questões problemáticas reproduzidas pela trama. Felizmente, é possível problematizar e se divertir com o objeto da reflexão; esses itens ainda não se tornaram excludentes.